PIGARRO E TOSSE

Tossir, pigarrear, assoar­-se para chamar a atenção de alguém, é fórmula largamente espalhada pelo Mundo. Sua aplicação internacional garante­-lhe a comunicabilidade interpretativa. Os interessados compreendem exatamente o recado, em qualquer paragem da Terra. Seja qual for a nacionalidade do pigarreador, o sinal gutural leva a mensagem significativa, facilmente traduzível para todos os idiomas, letrados, classe, idade e nível de cultura. O Pigarro tem mais antiguidade no plano autoritário. Partindo de pais e chefes, assume valores inauditos de admoestação, desapoio, índices preventivos para mudar a direção da conversa, não insistir num ângulo de observação, ou evidenciar a inoportunidade dos reparos expendidos. Há pigarros que salvam situações e outros que condenam, irremissivelmente, o desavisado conversador. Alguns valem misericordiosos gritos de alarma: “Cuidado! Não fale nesse assunto! O homem é inimigo de quem está sendo elogiado!” “Bem-casado, coisa nenhuma! Está se divorciando!” O Pigarro paterno ou magistral, arauto das reprimendas e ajustes dispensáveis e humilhantes? O pigarro clássico do general Pinheiro Machado (1852­-1915), dominador no Senado, sacudindo a atenção correligionária para a votação decisiva, dizia­-se inesquecido e ninguém o recorda no Brasil. A tosse miúda e baixa de Afonso Pena (1847­-1909), Presidente da República, quando discursava. O pigarro alto e sonoro do marechal Deodoro da Fonseca (1827­-1892), o Proclamador da República, zangado, puxando as suíças. A tosse artificial do Imperador D. Pedro II, entremeando os já sei, já sei, índice de que a resposta não o agradara, era citada por todos os frequentadores do palácio de São Cristóvão. O pigarro lento e meditativo de Ruy Barbosa ouvindo informações que o impressionavam. Foram, pigarros e tosses, tiques característicos desses homens famosos, associados às reações psicológicas inevitáveis. Eram manifestações denunciadoras de processos íntimos, estados interiores que se revelavam nessas marcas, conscientes ou inconscientes, de reprovação, aceitação, comando.

Naturalmente o Pigarro e a Tosse têm conteúdo etnográfico, quando intencionais. Valem, então, uma linguagem porque há verdadeiros diálogos através de pigarros. Ainda constituem um poderoso fixador de interesses no plano da sinalização amorosa. É um insubstituível da presença enamorada. Muito mais popular que o assovio. Pigarrear, tossir, assoar­-se à porta da namorada, é um dos mais claros informadores de coordenada topográfica. “Estou aqui! Olhe eu aqui!” – dizem tosse, pigarro, assoamento, fictícios.

Difícil deparar uma criatura que não tenha escarrado e tossido com intenção erótica, intercâmbio sem palavras, mas cheio de recheios radiculares. O padre Domingos Caldas Barbosa, na sua Viola do Lereno, traduzindo para os peraltas e sécias de Lisboa de D. Maria Primeira a Doçura de Amor, não esqueceu, nas últimas décadas do século XVIII, de indicar o assoar­-se a tempo como inseparável de um bom código do namoro fidalgo:

Um ir ver­-me da janela

Com um modo curioso,

E então assoar­-se a tempo

É bem bom, é bem gostoso.

Júlio Dantas, recenseando as técnicas da conquista erótica em O amor em Portugal no século XVIII, incluiu no “Namoro de Estafermos e de Estaca”, o infalível pigarro, chamando­-o “escarrinho”. Denominou­-o a mais viva, a mais eloquente, a mais fundamental expressão da ternura portuguesa nos séculos XVII e XVIII: o escarrinho! “A primeira coisa que a faceira tinha de aprender bem era responder com elegância ao “escarrinho”. Era um requinte do bom­-tom fazer­-se de resfriado. “O namoro de estafermo, quanto mais assoado mais fidalgo, quanto mais constipado mais distinto.” Lembra que o Padre José Agostinho de Macedo, no seu poema Besta esfolada, falava dos peraltas “que apanhavam a cacimba e o relento da noite debaixo das janelas da amada até o despontar da estrela-d’alva, e não levavam para casa senão um escarrinho”. Era o mesmo na Espanha aristocrática de Filipe V, neto de Luís XIV. O Barão de Montesquieu, na LXXVIII das Lettres Persanes, em 1715, registara: Ils sont des premiers hommes du monde pour mourir de langueur sous la fenêtre de leurs maîtresses; et tout Espangnol qui n’est pas enrhumé ne saurait passer pour galant. Era parte essencial no armorial da paixão típica do hidalgo espanhol escarrar e tossir debaixo das janelas do seu amor. Era tradução do sentimento, exteriorização apaixonada do sofrimento, obediência ao protocolo, comprovação de alta finura e graça em matéria de conquista. Pelo pigarro aferia­-se o conhecimento erótico do namorado e sua disposição positiva na prática amatória.

Para a resistência do uso na Europa é de deduzir­-se tempo para sua criação e possibilidade de origem comum na irradiação para o continente americano. Tito Mácio Plauto (250­-184 antes de Cristo) parece­-me o mais antigo registo. Na sua comédia Asinaria, III ato, o Parasito redige para o Diábolo uma longa lista de obrigações que a moça Filenia deverá cumprir. São exigências meticulosas de ciumento recato. Entre estas, versos 773­-777, há a precaução prudente de Filenia não tossir de determinada forma nem assoar­-se conforme sua vontade, porque estes gestos poderão ter duplo sentido, para outro namorado. É realmente viva a suspeita da existência destes sinais na Roma de Catão e quando o cartaginês Aníbal ainda era uma ameaça assombrosa. O Pigarro como expressão de autoridade, de poder social, seria comum em Roma. Noutra comédia de Plauto, Persa, do ano 174 antes de Cristo, há uma menção nítida. O escravo Sagaristio, ato II, cena V, fingindo­-se pessoa de importância, diz: Magnifice conscreabor! Vale como se dissesse: “Escarremos com majestade!”. O tradutor Naudet escreveu: Toussons comme un personnage important! Suficiente. O poeta Aulo Albio Tibulo, contemporâneo do imperador Augusto, Elegia, VI do I livro, evoca o rapaz apaixonado rondando a casa do seu amor, passando, fingindo afastar­-se e voltando, tossindo cem vezes diante da porta. O poeta português Antônio Ribeiro Chiado, falecido em 1591, no seu famoso Avisos para Guardar, adverte: “Guardar do homem que tosse/ E fala pelo falsete!” É uma pequenina documentação evidenciando a contemporaneidade do milênio na linguagem popular da Tosse e do Pigarro, que o colonizador português replantou na amada terra do Brasil. Ver Escarrar.