– Escreve as coisas que tens visto.
Apocalipse, 1, 19.
Atravessando as chamas do Purgatório, sobem Virgílio, Estácio e Dante uma escada onde o sono vence o florentino. Despertando, ouve Virgílio anunciar terminada a missão que Beatriz lhe confiara. Nada mais terá a dizer-lhe pela voz ou pelo aceno: – Non aspettar mio dir più nè mio cenno.1 E não fala mais. Admira-se das maravilhas vistas e, quando Dante procura-o, não mais o vê. A grande alma pagã regressara ao nobile castello, afastando-se das proximidades da Redenção paradisíaca. A Voz e o Gesto valiam, para ele, a mesma função transmissora. O Povo concorda.
Debatemos a origem da voz articulada e a época do seu aparecimento. Falaria o Homem Musteriano, o infra-homem de Neandertal? A maioria dos etnólogos é pela afirmativa, concedendo-lhe rudimentos de linguagem. Nenhum fundamento anatômico evidenciará a decisão. Teria, provavelmente, a sua linguagem, meio de convívio do pensamento, que não é privativo da espécie humana. Indiscutível é que falava o Homo sapiens do Paleolítico superior, o alto, robusto e equilibrado povoador do Aurinacense. Pintando, esculpindo, gravando. The beginning of sculture, engraving, and fresco are traceable to the Aurignacian epoch, escreveu MacCurdy. Não podia evidentemente ser o Homo alalus. E houve época no Mundo em que o Homem, em qualquer escala anterior à sua mutação, fosse incomunicado, mudo, silencioso? O Gesto, antes das interjeições e onomatopeias, supriria essa deficiência oral. Dante, há sete séculos, proclamava a comunicação tátil entre as formigas.2 Traduz Xavier Pinheiro:
Assim da negra legião saída,
Em marcha, toca em uma outra formiga,
Por saber do caminho ou sorte havida.
Toda a bibliografia sobre o Gesto, tradutor da Ideia e primeira linguagem humana, demonstra a universalidade de alguns acenos sobre os próprios vocábulos mais essenciais e vivos. Há gestos cobrindo áreas demarcadas de uso, jamais correspondentes à equivalência verbal. De sua valorização como documento psicológico, anormal e normal da sinergia nervosa, potência de evocação, indispensabilidade como fórmula complementar da voz, elemento excitador do desenvolvimento cerebral. Pai da Inteligência, todas as pesquisas ainda não fixaram os justos limites da grandeza positiva no alcance da repercussão comunicante. A geografia de determinados ademanes, antiguidade de uns e modificação de outros, os instintivos e os convencionais, com ampla franja intermediária dos gestos interdependentes, de novas atitudes provocadoras de sua utilização, os processos mecânicos e renovadores da significação, levam os problemas da investigação e da análise a um nível distinto de exame e de cultura especializada. O estudo do Gesto, o gesto popular e geral e o gesto dos profissionais, característicos como uma “permanente” etnografia, os típicos ligados a uma ação e os indefinidos, tendentes à abstração negaceante, consistiriam uma sistemática tão preciosa quanto, no campo filológico, é a Semântica.
O Gesto é anterior à Palavra. Dedos e braços falaram milênios antes da Voz. As áreas do Entendimento mímico são infinitamente superiores às da comunicação verbal. A Mímica não é complementar mas uma provocação ao exercício da oralidade. Sem gestos, a Palavra é precária e pobre para o entendimento temático. Antes das interjeições primárias, a Mão traduzia a mensagem útil. Le primitif, qui ne parlait pas sans ses mains, ne pensait pas non plus sans elles, observou Levy-Bruhl. A musa Polinia falava pelo gesto: – Loquitur Polyhymnia gestu, informa o poeta Ausônio. Era justamente a Deusa da Retórica.
Manual Concepts, de Cushing, grupos de gestos valendo uma exposição verbal, unanimemente compreendida. O abecedário dos mudos e surdos-mudos pela posição dos dedos ou dos braços, traduzindo letras do alfabeto no código da linguagem naval. Para pospasto, sugiro “Homem Falando, Homem Escrevendo”.3
O Gesto é a comunicação essencial, nítida, positiva. Não há retórica mímica, apenas reiteração da mensagem. Essa limitação recorda o inicial uso entre seres humanos, quando o metal era pedra e a caverna abrigava a família nas horas da noite misteriosa. “Aprende com os mudos o segredo dos gestos expressivos”, aconselhava Leonardo da Vinci. A Palavra muda. O Gesto não.
Os livros documentaram no Tempo a minha observação contemporânea, ajustada em lógica formal, clara e simples. Desejei divulgar uma tarefa que me ocupou, anos e anos, no encantamento da revelação pessoal. A bibliografia citada é no plano justificador e não dos critérios interpretativos no rumo das hirtas sistemáticas, como antecipações imutáveis na sempre mutável percepção visual, sugerindo modelo para as nuvens e contorno para os ventos.
Na Ronda do Tempo (UFRN, Natal, 1971), que é o meu diário de 1969, escrevi em 21 de dezembro: – “Desde finais de 1966 penso escrever a História de nossos Gestos. Vou adiando, como velho prolonga noivado. Mentalmente surpreendo-me ‘ouvindo’ certos capítulos”. Premeditação confessada.
Nossos porque, mesmo universais, os observara no Brasil.
Evitei o solene pedantismo expositor, alijando a presunção de uma Teoria Geral, invariável nas substituições preferenciais, instantâneo sempre retocável das conclusões favoritas, mutáveis e sucessivas como em desfile de passarela. Fui pedreiro com materiais dispersos e longínquos, mas a construção obedeceu ao plano obstinado do único operário, tendo na vida honesto estudo, com longa experiência misturado, na confidência camoniana. Semelhantemente ocorreu em Civilização e Cultura (1973), típica individual research, distante da compilação maquinal e atraente como salada de frutas.
Será uma laboriosa inutilidade, reminiscências de livros e reparos na jornada invisível em que marchamos no rumo da noite imóvel. Os Gestos são moedinhas de circulação indispensável e diária, mas ignoramos sua emissão no Tempo. Não é possível precisar a data da cunhagem mas tentei revelar as coincidências da presença anterior na comunicação humana. Nada mais.
Luís da Câmara Cascudo
Natal, RN, dezembro de 1973