Desde quando sorrimos? Será muito posterior ao riso. Na pré-história circulariam raras motivações para rir. A visão das iguarias rústicas e copiosas justificavam a exaltação plectórica dos berros e nunca a sonora explosão das gargalhadas. Sorriso é gesto de percepção requintada, entendimento sutil, contenção ao excesso demonstrativo. É um documento denunciador de meio cenário, compreensivo, existência de um ambiente idôneo para a comunicação discreta e breve que o sorriso contém, sub-ridere, sob-o-Riso, o riso no pedal da surdina, baixo cifrado, disfarçado, tênue mas incisivo, nítido, suficiente. O riso opina ostensivamente. O sorriso é uma sugestão, mensagem cuja tradução depende da inteligência receptora. Em área tão diminuta, a ondulação labial alcança todas as gamas da linguagem humana. O Gesto, em sua unidade, impressionará todos os níveis da Compreensão. Todas as criaturas entendem a voz silenciosa da confidência, a um tempo pública e privada porque na presença do grupo seria destinada a um único interesse. O sorriso documenta-se nas sociedades hierarquizadas, civilizações já tradicionais, com cerimonial e pompa. O mais antigo sorriso, esculpido em mármore nuns lábios femininos, olha-se ainda na Niké, de Delos, obra de Arquemos, 550 anos antes de Cristo. Salomão Reinach comentou: “Ela sorri desjeitosamente, sem dúvida, com um rictus muito acusado, uma boca seca, pômulos salientes, mas enfim o sorriso existe, e não o havíamos encontrado anteriormente. As divindades egípcias, caldaicas, assirianas, são muito pouco humanas para sorrir. Elas são careteantes ou indiferentes. Com a Niké de Delos, a Arte já não se contenta em imitar as formas. Procura, começa a exprimir dos sentimentos, a vida interior. É uma grande descoberta e o anúncio de uma Arte Nova”.52 Muito mais que o movimento e o equilíbrio no joelho flectido, o sorriso seduz Salomão Reinach. Estará nas bailarinas dos Reis e dos Deuses, pela Ásia e África setentrional. Um sorriso fixo, indeformável em lábios de pedra, evidenciando não apenas a Antiguidade dinâmica mas a integração ornamental com uma finalidade de tração decorosa e de excitamento comedido, regulados nos padrões sagrados das predileções dinásticas. O sorriso participa da liturgia majestática. Até presentemente, as bailarinas bailam sorrindo. Socialmente é complementar, moldura, traje, na missão comunicante. Saber sorrir, na infiltração irresistível, é vocação, exercício, raciocínio ou milagres da Intuição misteriosa. Provocação. Convite. Desafio. Repulsa. Promessa de prêmio e castigo. Sorriso de Intelectuais. Onipotências efêmeras, de Amorosas, de Aliciadores profissionais. Sorriso molhado de lágrimas, de Andrômaca, despedindo-se de Heitor.53 A intensidade mental multiplica o conteúdo, sublinhando a destinação real da frase ou do olhar. Ironia. Afeto. Perfídia. On ne ri plus, on sourit aujourd’hui, poetava o Cardeal de Bernis, há duzentos anos. Sorriso de crianças reconhecendo as mães. Das matronas, noivas, personagens de teatro e televisão. Da Espontaneidade ao Automatismo. Do smile ao smirk. Na mesma boca, sorriso diferente. Aparentar finura astral. Sorriso de candidato e do empossado no cargo. Fingir compreender. Sorriso filtrado entre as esponjas da Decepção e da Angústia. Esses elementos não se incluíram no Sorriso paleolítico mas foram surgindo, alojando-se no complexo dos lábios eloquentes, contemporâneos ao beijo, intencional, devoto, sexual. Sorriso é gesto adquirido no exercício convivial nos caminhos do Tempo. L’Ange du Sourire, tão raro, da fachada da catedral de Reims (século XIII), junto a Saint-Nicaise, abençoe a evocação de sua presença, irmão de Niké de Delos.