Eu tinha dezoito anos e aquele homem de quem eu já esqueci os traços fisionómicos batia as minhas respostas à máquina à medida que eu declinava o meu estado civil, o meu endereço e uma pretensa qualidade de estudante. Ele perguntou-me como ocupava os meus tempos livres.
Hesitei durante alguns segundos:
– Vou ao cinema e às livrarias.
– Com certeza que não vai só ao cinema e às livrarias.
Ele mencionou o nome de um café. Tive de lhe repetir várias vezes que nunca lá tinha posto os pés, mas percebi que ele não me acreditava. Por fim, resolveu-se a escrever a frase seguinte:
«Eu passo os meus tempos livres no cinema e nas livrarias. Nunca frequentei o Café da Tournelle, n.º 61, no cais do mesmo nome.»
De novo perguntas sobre a forma como passava os meus tempos livres e sobre os meus pais. Sim, frequentava aulas na Faculdade de Letras. Não corria nenhum risco em lhe contar esta mentira porque me tinha inscrito naquela Faculdade, mas unicamente para prolongar o adiamento do serviço militar. Quanto aos meus pais, tinham ido para o estrangeiro e eu ignorava a data do regresso, e era possível que nunca mais voltassem.
Então, ele mencionou o nome de um homem e de uma mulher e perguntou-me se eu os conhecia. Respondi-lhe que não. Pediu-me para pensar bem. O facto de eu não dizer a verdade, poderia acarretar-me graves consequências. Esta ameaça fora proferida num tom calmo, frio. Não, realmente eu não conhecia essas duas pessoas. Ele bateu a minha resposta à máquina depois estendeu-me a folha, onde em baixo se encontrava escrito: leitura feita, confirma e assina. Nem sequer li o meu depoimento e assinei com uma esferográfica que estava por ali.
Antes de sair, quis saber a razão daquele interrogatório.
– O seu nome figurava na agenda de uma pessoa.
Mas não me disse quem era essa pessoa.
– Voltaremos a convocá-lo se precisarmos de si.
Ele acompanhou-me até à porta do escritório. No corredor, num banco de couro, estava sentada uma rapariga de uns vinte e dois anos.
– Agora é a sua vez – disse-lhe ele.
Ela levantou-se e trocámos um olhar. Pela porta que ele deixou entreaberta, vi-a sentar-se no mesmo lugar onde eu tinha estado antes.
Encontrei-me novamente no cais. Eram mais ou menos cinco horas da tarde. Caminhei na direção da Ponte Saint-Michel com o fito de esperar pela saída daquela rapariga após o interrogatório. Mas eu não podia ficar plantado em frente da entrada do edifício da polícia. Decidi refugiar-me no café que fazia esquina para o cais e para o Boulevard du Palais. E se ela tivesse ido pelo caminho oposto até à Pont-Neuf? Mas eu não tinha pensado nisso.
Estava sentado por detrás do vidro da esplanada, com o olhar fixo no Quai des Orfèvres. O seu interrogatório foi mais longo que o meu. Anoitecia quando a vi caminhar em direção ao café.
No momento em que ela passava em frente da esplanada, bati com as costas da mão no vidro. Reconheceu-me surpreendida e veio ter comigo.
Sentou-se à mesa como se já nos conhecêssemos e tivéssemos marcado encontro. Foi ela quem falou primeiro:
– Ele fez-lhe muitas perguntas?
– O meu nome estava escrito na agenda de uma pessoa.
– E sabe quem era essa pessoa?
– Não me quiseram dizer. Mas talvez me possa informar.
Ela franziu o sobrolho.
– Informá-lo de quê?
– Acho que o seu nome também aparecia escrito nessa agenda e foi interrogada pelo mesmo motivo.
– Não. Eu fui para testemunhar.
Parecia preocupada. Tive até a impressão de que se esquecia a pouco e pouco da minha presença. Fiquei calado. Ela sorriu-me. Perguntou-me a idade. Respondi-lhe que tinha vinte e um anos. Acrescentei mais três anos: a idade da maioridade, naquela época.
– Trabalha?
– Sou agente livreiro – disse-lhe ao acaso num tom que me esforçava para que fosse firme.
Ela observava-me, pensando sem dúvida se podia confiar em mim.
– Faz-me um favor? – perguntou-me.
Praça do Châtelet, ela quis apanhar o metro. Era hora de ponta. Estávamos comprimidos ao pé das portas. Em cada estação, os que desciam empurravam-nos para o cais. Depois voltámos a subir para a carruagem com os novos passageiros. Ela encostou a cabeça no meu ombro e disse-me sorrindo que «ninguém nos poderia encontrar no meio daquela multidão».
Na estação da Gare du Nord, fomos levados pela onda de passageiros que iam para os comboios dos subúrbios. Atravessámos o átrio da estação e na sala dos cacifos automáticos ela abriu um e tirou uma mala preta de couro.
Eu carregava a mala que pesava muito. Achei que ela devia conter tudo menos roupas. Novamente o metro, a mesma linha, mas na outra direção. Desta vez tivemos lugares sentados. Descemos na Cité.
No extremo da Pont-Neuf, esperámos que o sinal passasse a vermelho. Eu sentia-me cada vez mais ansioso. Perguntava a mim próprio qual seria a receção de Grabley à nossa chegada ao apartamento. Não deveria eu falar-lhe de Grabley, de forma a ela não se sentir apanhada de surpresa com a sua presença?
Seguimos ao longo do edifício da Monnaie. Ouvi bater as nove horas no relógio do Instituto.
– Tem a certeza de que eu não vou incomodar ninguém ao ir para sua casa? – perguntou-me ela.
– Não. Ninguém.
Não havia nenhuma luz nas janelas do apartamento que davam para o cais. Ter-se-ia Grabley retirado para o seu quarto que dava para o pátio? Normalmente, ele estacionava o carro no meio da pequena praça entre a Monnaie e o Instituto, mas não se encontrava lá.
Abri a porta do quarto andar e atravessámos o vestíbulo. Entrámos no escritório do meu pai. A luz vinha de uma lâmpada nua pendurada no teto. Não havia mais nenhum móvel à exceção de um velho canapé de ramagens cor de vinho.
Pus a mala ao pé do canapé. Ela dirigiu-se para uma das janelas.
– Tem uma bela vista…
À esquerda, a extremidade da Ponte das Artes e o Louvre. Em frente, a ponta da ilha da Cité e o jardim do Vert-Galant.
Sentámo-nos no canapé. Ela olhava à sua volta e parecia admirada com o vazio da casa.
– Vai-se mudar?
Disse-lhe que, infelizmente, nós devíamos deixar aquele lugar dentro de um mês. O meu pai tinha partido para a Suíça para ali acabar os seus dias.
– Porquê a Suíça?
Era realmente muito complicado explicar-lho, naquela noite. Encolhi os ombros. Grabley estava a chegar de um momento para o outro. Qual seria a sua reação ao ver aquela rapariga e a mala? Receava que telefonasse para a Suíça para o meu pai e que este, num derradeiro assomo de dignidade em relação a mim, pretendesse ainda assumir o papel dos pais nobres falando-me dos meus estudos e do meu futuro comprometido. Mas seria totalmente inútil da sua parte.
– Estou cansada…
Convidei-a a estender-se sobre o canapé. Ela não despiu o impermeável. Lembrei-me de que o aquecimento não funcionava.
– Tem fome? Vou buscar qualquer coisa à cozinha…
Ela estava no canapé, com as pernas dobradas, sentada sobre os calcanhares.
– Não vale a pena. Só qualquer coisa para beber…
Já não havia luz no vestíbulo. A claraboia do enorme corredor que levava à cozinha iluminava a casa com uns reflexos pálidos, como se fosse luar. Grabley tinha deixado aceso o candeeiro do teto da cozinha. Em frente do antigo monta-cargas, uma tábua de passar a ferro em cima da qual reconheci as calças e o seu fato príncipe de Gales. Era ele próprio que passava as camisas e os fatos. Em cima da mesa de bridge, onde eu às vezes comia com ele, estava um frasco de iogurte vazio, a casca de uma banana e uma carteira de Nescafé. Ele tinha jantado lá nessa noite. Encontrei dois iogurtes, uma fatia de salmão, alguma fruta e uma garrafa de whisky quase vazia. Quando voltei ela lia uma das revistas que Grabley empilhava há várias semanas em cima da lareira do escritório, revistas «ligeiras» como ele próprio dizia e pelas quais tinha uma grande predileção.
Coloquei o tabuleiro à nossa frente, no chão.
Ela deixou ao seu lado uma revista grande aberta e eu distingui uma fotografia a preto e branco de uma mulher nua, de costas, os cabelos apanhados em rabo de cavalo, a perna esquerda estendida, a da direita dobrada, o joelho em cima do colchão de uma cama.
– Lê coisas muito curiosas…
– Não, não sou eu que leio isso… é um amigo do meu pai…
Ela trincava uma maçã e serviu-se de um pouco de whisky.
– O que é que meteu naquela mala? – perguntei-lhe eu.
– Oh, nada de interessante… coisas pessoais…
– Era pesada. Pensei que continha lingotes de ouro.
Ela sorriu atrapalhada. Explicou-me que vivia numa casa nos arredores de Paris, do lado de Saint-Leu-la-Forêt, mas os proprietários tinham chegado ontem à noite de imprevisto. Ela preferira sair porque não se entendia muito bem com eles. Amanhã, ia alugar um quarto num hotel enquanto aguardava um alojamento definitivo.
– Pode ficar aqui o tempo que quiser.
Eu tinha a certeza de que Grabley, após a surpresa inicial, não encontraria nada para dizer. Quanto à opinião do meu pai, ela já não contava para mim.
– Se calhar tem sono?
Prontifiquei-me a ceder-lhe o quarto lá de cima.
Eu dormiria no canapé do escritório.
Subi atrás dela, com a mala na mão, a pequena escada que levava ao quinto andar. O quarto estava tão vazio como o escritório. Uma cama encostada à parede do fundo. Não havia nem mesa de cabeceira nem candeeiro. Acendi os dois néons dos dois armários, de cada lado da lareira, onde o meu pai guardava a sua coleção de peças do jogo de xadrez, mas estas haviam desaparecido, assim como o pequeno armário chinês e o quadro falso de Monticelli, que deixara marca na madeira azul-celeste. Eu tinha confiado estes três objetos a um antiquário, um certo Dell’Aversano, para ele os vender.
– É o seu quarto? – perguntou-me ela.
– Sim.
Pousei a mala em frente da lareira. Ela pôs-se à janela como há pouco, no escritório.
– Se olhar bem para a direita – disse-lhe eu –, vê a estátua de Henrique IV e a Torre de Saint-Jacques.
Ela deu uma olhadela pelos livros, entre as duas janelas. Depois, estendeu-se em cima da cama e tirou os sapatos com um movimento indolente do pé. Perguntou-me onde ia eu dormir.
– Lá em baixo, no canapé.
– Fique aqui – pediu-me. – Não me incomoda nada.
Ela mantinha ainda vestido o impermeável. Apaguei a luz dos armários. Estendi-me a seu lado.
– Não acha que faz frio?
Ela aproximou-se e deitou docemente a cabeça no meu ombro. Reflexos e sombras em forma de grades deslizavam pelas paredes e pelo teto.
– O que é isto? – perguntou-me ela.
– É o bateau-mouche a passar.