A sentença é o ato mediante o qual se individualiza o Direito (Vicenzo Cavallo).1
A palavra “sentença” decorre do latim sententia, sententiae, substantivo feminino, com diversas acepções, como se pode ver em Cícero, noticiado no Novo Dicionário Latino-Português.2 1) o sentimento, sentença, opinião, parecer, intenção, vontade; 2) a prudência, ciência, sabedoria; 3) a sentença, determinação pela qual o juiz condena, ou absolve, o réu; a coisa sentenciada ou determinada em juízo; 4) a frase que faz um sentido completo e perfeito; 5) o sentimento, resolução e 6) a sentença, máxima, dito sentencioso. Cícero usou a expressão ex animi sententia significando sinceramente, verdadeira, com sinceridade.
Na terminologia medieval, o termo assumiu, além do significado genérico, o mais específico de definição autêntica do significado das Escrituras Sagradas, e em geral de concepção definida e certíssima.3
O Dicionário Aurélio, ainda na 1ª edição, registrava: “sentença [do latim sententia]. S. f. 1 – Expressão que encerra um sentido geral ou um princípio ou verdade moral máxima. 2 – Rifão, provérbio, anexim. 3 – Julgamento proferido por juiz, tribunal ou árbitro(s); veredicto. 4 – P. ext. Qualquer despacho ou decisão. 5 – Palavra ou frase que encerra uma decisão irrevogável. 6 – Julgamento divino. 7 – Desus. Gram. Oração”.
Em face dos diversos sentidos acima noticiados, temos que “sentença” expressa:
1 – a verdade, o veredicto ou “dito verdadeiro”;
2 – o julgamento de autoridade;
3 – o que se sente ou se apreende da realidade; e
4 – o pensamento sincero.
Eduardo Couture se impressionou pelo sentimento, que é o conteúdo da sentença:
Para saber qual é o conteúdo da jurisdição, seguindo sempre nosso método de partir dos fatos, comecemos fazendo a experiência de tomar entre as mãos uma dessas peças a que chamamos, habitualmente, decisão ou sentença.
É claro que, ao fazê-lo, não teremos na mão a própria sentença. Esta, originariamente, é algo que foi sentido e daí seu nome de sentença. Mas esse sentimento, pela razão dada anteriormente, necessitou ser registrado ou documentado. O que temos entre as mãos, pois, não é mais que o documento representativo (que apresenta de novo, dizíamos) daquilo que o juiz sentiu como direito.4
A sentença é o sentimento documentado. O art. 164 do CPC exige que os despachos, decisões, sentenças e acórdãos sejam sempre documentados, o que infirma o tão falado princípio da oralidade, inclusive nos processos do Juizado Especial, onde prevalece o princípio da oralidade (art. 2º), mas não se dispensa a documentação da sentença, ainda que sem a exigência do relatório (art. 38).
Chiovenda conceitua a sentença sob diversos ângulos:
1 – como ato de tutela jurídica, ou seja, considerada com relação à vontade da lei que ela atua;
2 – a sentença como provimento judicial, e
3 – a sentença como ato que põe fim ao processo.5
Em tais conceituações, a sentença é considerada, respectivamente, como decisão estatal, como ato do juiz e em sua posição processual.
Da mesma forma, usualmente a doutrina extrai o conceito da sentença de uma das posições acima, pelo que podemos adotar as seguintes classificações sobre seus conceitos:
A sentença é o ato estatal que dirime a lide (ao menos em 1º grau de jurisdição), a manifestação da vontade estatal emitida no exercício da função jurisdicional.
Como ato estatal, deve nela ser enfatizado o caráter de ato de poder, de decisão, de manifestação da autoridade do Estado visando à resolução do conflito de interesses.
Ao resolver a lide, litígio ou mérito, impondo a vontade do Poder Público, constitui a sentença a lei individualizada que vai reger as condutas das pessoas que estão em litígio.
É através da sentença que o Estado intervém na relação contenciosa, impondo a conduta a que as partes se obrigarão – como diz o art. 468, a sentença tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.
No direito romano, sententia era sinônimo de sentença definitiva, ou seja, decisão emanada do juiz que, recebendo ou rejeitando a demanda, punha fim à contestabilidade de um bem da vida (Chiovenda); era um provimento do juiz que resolvia sobre o pedido do autor, acolhendo-o ou rejeitando-o, definindo a lide com a atuação da vontade da lei. Os demais provimentos do juiz no processo recebiam o nome de interlocutiones (não eram sentenças).6
O caráter sentencial, nesse conceito, reside na eficácia de resolução das questões da lide, como apontou Francesco Carnelutti, citado por José Frederico Marques, que identifica a sentença com o giudizio, meta final do processo de conhecimento.7
O processo existe para a resolução do mérito, e a sentença, como ponto culminante do processo, visa a dirimir o conflito de interesses, não tendo razão de ser a sentença que não possa atuar na relação material litigiosa ou produzir os seus efeitos no mundo fático. Tanto é assim que a lei autoriza o magistrado a conhecer, ainda de ofício, os fatos supervenientes, modificativos, extintivos ou impeditivos do direito autoral, levando-os em consideração no momento de prolação da sentença (CPC, art. 462).
O Código de Processo Civil, no Título V (“Dos Atos Processuais”), Capítulo I (“Da Forma dos Atos Processuais”), Seção III (“Dos Atos do Juiz”), conceitua:
Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
§ 1º Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei (Redação dada pela Lei 11.232/2005).
§ 2º Decisão interlocutória é o ato pelo qual o juiz, no curso do processo, resolve questão incidente.
§ 3º São despachos todos os demais atos do juiz praticados no processo, de ofício ou a requerimento da parte, a cujo respeito a lei não estabelece outra forma.
§ 4º Os atos meramente ordinatórios, como a juntada e a vista obrigatória, independem de despacho, devendo ser praticados de ofício pelo servidor e revistos pelo juiz quando necessário.
Art. 163. Recebe a denominação de acórdão o julgamento proferido pelos tribunais.
Art. 164. Os despachos, decisões, sentenças e acórdãos serão redigidos, datados e assinados pelos juízes. Quando forem proferidos verbalmente, o taquígrafo ou o datilógrafo os registrará, submetendo-os aos juízes para revisão e assinatura.
Parágrafo único. A assinatura dos juízes, em todos os graus de jurisdição, pode ser feita eletronicamente, na forma da lei (Incluído pela Lei nº 11.419, de 2006).
Art. 165. As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso.
Necessário ressaltar que os “atos do juiz” não se esgotam em sentença, interlocutória e despachos, como diz o art. 162, mesmo porque outros atos, do ponto de vista material, são praticados pelo magistrado, como, por exemplo, a inspeção judicial (art. 440), o interrogatório da parte (art. 342), a inquirição de testemunhas (art. 413) etc.; contudo, todo o Título V, do CPC, ao dispor sobre os atos processuais, o faz no sentido de “atos jurídicos processuais”, isto é, as manifestações de vontade cujo objeto é a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais (veja-se o conceito de ato processual no art. 158, ao se referir aos atos das partes).
A nosso sentir, o intuito do legislador foi o de retirar do conceito de sentença a característica de encerramento da relação processual (aspecto topológico), passando a dar ênfase ao seu conteúdo.
Vale destacar que, em razão dessa alteração o legislador veio também mudar a redação do artigo 463, caput, da lei processual civil,8 cuja versão original assim dispunha: “Publicada a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o seu ofício jurisdicional.” O que, nesse aspecto, deixou de ser verdade, pois o juiz não terá cumprido ainda integralmente o ofício jurisdicional que dele se espera no processo, haja vista que haverá a segunda fase do processo, destinada à prática de atos executivos.
Com a Lei nº 11.232/2005 assim passa a reger o art. 463 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 463. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:
(...)
Pode-se observar, então, que foi eliminada a expressão “cumpre e acaba o ofício jurisdicional”. Assim, exatamente para demonstrar diante da nova estrutura do processo (bifásico), a sentença não é mais o ato que encerra a relação processual, e sim o ato decisório que encerra a fase cognitiva.
Ainda no art. 164, este enfatiza que os despachos, decisões, sentenças e acórdãos (todos os atos processuais praticados pelo magistrado) serão redigidos, datados e assinados pelos juízes, inclusive na forma eletrônica; ainda quando proferidos verbalmente, serão registrados pelo datilógrafo ou taquígrafo, mas, mesmo assim, sofrerão a revisão e serão assinados pelo magistrado – o que o art. 164 enfatiza é que o exercício do poder estatal de decidir, na função jurisdicional, é privativo do magistrado, o qual deve manifestar a própria vontade.
Carreira Alvim transcreve a lição de Alfredo Rocco sobre o caráter da sentença:
A operação do juiz não é substancialmente diferente daquela de qualquer particular que quer deduzir da norma geral a norma particular do caso concreto. O que diferencia a sentença do juiz do parecer de um particular não é a natureza da atividade desenvolvida para se alcançar a formulação do juízo, mas o diverso valor do juízo, ou seja, a diversa eficácia jurídica do produto daquela atividade. Isto porque o direito objetivo reconhece à sentença do juiz uma força obrigatória que não possui o parecer de um particular. A sentença é produto de uma atividade intelectual do juiz, a que a lei acrescenta aquele determinado efeito.9
O poder de decisão é indelegável pelo magistrado, quer no plano horizontal (delegar a decisão a membros de outros Poderes) quer no plano vertical (delegar a decisão a membros do mesmo Poder Judiciário).
Carlos Aurélio Mota de Souza demonstra que os poderes judiciais para realizar suas atividades, conforme o efeito a que visam, podem ser jurisdicionais, de ordem constitucional, que ele exerce no momento processual em que lhe compete dizer o direito, em concreto e em definitivo; processuais, quando assegura o correto andamento de cada processo, dirigindo formal e materialmente a causa e administrativos, praticados na direção e fiscalização dos serviços judiciários, como órgão corregedor permanente, aí incluídos todos os processos sob sua competência.10
Com o incremento da atividade do juiz, é necessário que surjam meios de racionalização dos serviços. O referido Carlos Aurélio Mota de Souza (op. cit., pp. 79 e 80) entende que a ordem jurídica suporta a delegação de certos atos de administração, como assinatura de papéis, requisição rotineira de informações, recepção e juntada de documentos em autos, recolhimento de custas, e que tal prática já é correntia em muitos Juízos, objeto mesmo de normas, portarias e provimentos.
Neste aspecto, salutar foi o § 4º do art. 162 do CPC, acrescentando pela Lei nº 8.952/94, favorecendo a dinamização da tramitação do processo; contudo, embora represente um grande progresso, ainda foi muito tímido, pois poderia a própria lei passar para o serventuário algumas tarefas administrativas, como se vê no seguinte ato normativo interno:
“Comarca da Capital
FÓRUM REGIONAL DE SANTA CRUZ
Ordem de Serviço Conjunta nº 1/90
Os Doutores NAGIB SLAIBI FILHO, Juiz de Direito da 1ª Vara Cível e BENEDITO MOTTA DE MELLO, Juiz de Direito da 2ª Vara Cível,
CONSIDERANDO:
que lhes compete, inspecionar, permanentemente, os serviços a cargo dos respectivos cartórios, dando-lhes melhor coordenação, prevenindo ou emendando erros ou abusos, provendo sobre a regularidade dos autos e papéis..., exercitando o poder normativo interno através de ato de aplicação restrita ao âmbito do próprio serviço (CODJERJ, art. 72, III; Ementário da Corregedoria Geral da Justiça, art. 2º, § 1º, item 4);
– a orientação da Egrégia Corregedoria-Geral da Justiça, adotada desde o processo nº 6.306/87, que enuncia: a conveniência das disposições baixadas por tal ato normativo deve ser aferida pela Autoridade que chefia o respectivo órgão judiciário, atenta às condições do sistema de serviço cartorário e dos órgãos que lhes são afins, ficando a legalidade do ato ou sua compatibilidade com a ordem jurídica sob o crivo da Administração Superior para eventual edição de ato nos termos das Súmulas 346 e 473 da Suprema Corte;
– o princípio de eficiência exigir a racionalização, simplificação e dinamização dos serviços judiciários;
– a recente e auspiciosa instalação da Vara de Família, nesta Regional, que alterou a competência material das Varas Cíveis, tornando imperiosa a reordenação dos serviços cartorários, bem como a adaptação das Ordens de Serviços de nº 1/89 e 2/89,
RESOLVEM:
Art. 1º Autorizar o Senhor Escrivão da serventia comum, e, nos seus impedimentos eventuais, o respectivo substituto, a assinar, com a anotação de que o faz ‘por ordem do MM. Dr. Juiz’, os seguintes atos de comunicação processual: mandados de citação, notificação, intimação e avaliação; editais (Ementário, art. 504; Código de Processo Civil, arts. 225, inciso VII, 234, 873) e ofícios solicitando informações às repartições fiscais para instruir processos de inventários.
Parágrafo único. O serventuário deverá atender os dispositivos legais atinentes a cada ato, ciente do disposto no art. 29 da lei processual civil.
Art. 2º Exceto para os órgãos jurisdicionais superiores e para a Corregedoria-Geral da Justiça, o fecho de todas as correspondências expedidas restringir-se-á à expressão ‘Atenciosamente’.
Art. 3º Faculta-se aos Advogados e órgãos da Defensoria Pública, Ministério Público e Fazenda Pública manifestar-se por cota nos autos desde que o façam resumidamente e de forma legível, e não seja a cota marginal ou interlinear (Constituição da República, arts. 127, 131, 133 e 134; Código de Processo Civil, art. 161).
Art. 4º Inexistindo prazo diverso fixado em despacho judicial, constará, obrigatoriamente, o prazo de 30 (trinta) dias para cumprimento de alvarás e o de 20 (vinte) dias para resposta aos ofícios em que se solicitem informações a órgãos públicos e pessoas e entidades privadas.
Parágrafo único. Apresentado requerimento de alvará para levantamento de quantia em instituição financeira, em que a parte não tenha exibido o respectivo extrato, fica o Cartório autorizado, independentemente de despacho, a datilografar o ofício solicitando informações, para ser assinado quando do despacho do requerimento.
Art. 5º Nas precatórias devolvidas ao Juízo só serão juntas aos autos:
a) a carta propriamente dita;
b) as peças comprobatórias do cumprimento;
c) a conta de custas e
d) eventuais documentos e petições que a acompanharem.
Parágrafo único. As peças restantes, inclusive autuação, serão arquivadas em pasta própria.
Art. 6º Antes de serem levadas a despacho os requerimentos mencionados no art. 196, do Código de Processo Civil, deverá o Cartório certificar, no verso, a carga respectiva.
Art. 7º Entregue o laudo pericial pelo Perito do Juízo, fica o Cartório autorizado a expedir o mandado de pagamento independentemente de despacho.
Art. 8º Nos procedimentos de jurisdição voluntária, inclusive inventários e arrolamentos em que não haja litígio, não havendo discordância expressa das partes, Ministério Público e Fazenda Pública, fica autorizado o imediato cumprimento da decisão (Código de Processo Civil, art. 503).
Art. 9º Ao elaborarem petições iniciais de ações consignatórias de aluguéis, ficam os doutos Defensores Públicos autorizados a designar, em período entre 25 (vinte e cinco) e 35 (trinta e cinco) dia após, data para o depósito em Cartório, preferencialmente em 2ª ou 6ª feira, entre 13:00 e 15:00 horas, dando ciência, mediante colhimento da assinatura, aos autores, dispensando-se, assim, a intimação posterior, por mandado.
Art. 10. Nas petições de purga de mora (ações de despejo, alienação fiduciária e outras), entregues pelas partes ou seus representantes em Cartório, cumpre dar ciência de dia e hora designados para a emenda da mora na própria petição, antes do despacho do juiz (Ementário, art. 512).
Art. 11. As petições e expedientes avulsos, tão logo recebidos em Cartório, deverão ser juntados aos autos, independentemente de prévio despacho.
Parágrafo único. Quando da juntada de recursos, deverá ser certificada sua tempestividade.
Art. 11. Fica autorizado o Cartório, independentemente de despacho e quando for necessário em decorrência da natural tramitação do feito:
I – proceder a termo de ‘vista’ dos autos aos representantes do Ministério Público, da Assistência Judiciária e da Fazenda Estadual;
II – juntar ofícios, guias, mandados e requerimentos como contestações, réplicas, indicação de assistentes técnicos, apresentação de quesitos, rol de testemunhas, atendimento a determinações constantes dos autos etc.
Art. 12. Visando assegurar o princípio constitucional de publicidade dos atos processuais (art. 5º, LX; art. 93, inciso IX) e garantindo o acesso do interessado à função jurisdicional, imediatamente após a publicação das sentenças, bem como outras decisões expressamente mencionadas no respectivo despacho, o Cartório expedirá às partes, nos endereços constantes dos autos, via postal, a notícia sucinta do mencionado ato processual, sem prejuízo da intimação prevista no art. 236 do Código de Processo Civil.
Art. 13. O presente ato conjunto entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, inclusive as Ordens de Serviço nºs 1/89 e 2/89, encaminhando-se cópia à Egrégia Corregedoria Geral da Justiça.
Santa Cruz, em 1º de fevereiro de 1990.
Nagib Slaibi Filho
Juiz de Direito
Benedito Motta de Mello
Juiz de Direito.”
Note-se que só é cabível a delegação no que diz respeito aos atos administrativos ou atos processuais de documentação ou comunicação a serem praticados pelo magistrado – pode ele delegar ao Escrivão a assinatura de mandado de citação, que é ato de comunicação processual (cf. art. 225, VII), mas não poderá, em hipótese alguma, delegar a quem quer que seja o poder de proferir o despacho de “Cite-se”.
O sistema presidencialista de governo, adotado na nova Constituição, no art. 2º, não permite a delegação de atos processuais a membros de outros poderes, como, por exemplo, a delegação de atos ao Promotor de Justiça ou à Autoridade Policial. O máximo que se admite que seja praticado por outros poderes é o cumprimento de ordens judiciais, ou, em linguagem mais técnica, a execução das decisões jurisdicionais, como, por exemplo, a prisão, a exibição de coisa ou pessoa etc.
No que se refere à delegação vertical, dentro do próprio Poder Judiciário, o máximo que a lei admite é a delegação de atos materiais, como, por exemplo, o ato da citação, a inquirição de testemunhas, o ato de penhora etc.
O art. 200 do CPC dispõe sobre a execução dos atos processuais (“os atos processuais serão cumpridos por ordem judicial ou requisitados por carta, conforme hajam de realizar-se dentro ou fora dos limites territoriais da comarca”), mas não autoriza, em momento algum, a delegação do poder de decisão, mesmo porque a função jurisdicional é indelegável, e a competência funcional é matéria de ordem pública, que não fica ao alvedrio do próprio órgão estatal.
Observou-se, a partir da Lei nº 10.444/2002, que o conceito de sentença originalmente adotado no Código de Processo Civil tinha se tornado anacrônico, visto o processo com sua nova estrutura, na qual a atividade executiva não mais se desenvolveria por meio de outra relação processual autônoma, mas sim como fase final da relação processual de conhecimento.
O conceito originário de sentença utilizado pelo legislador era meramente topológico – “Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa.”
Ressalve-se, apenas, a crítica que sempre acompanhou a redação legal, haja vista que a sentença não põe, necessariamente, termo ao processo, mas sim, em regra, ao procedimento no primeiro grau de jurisdição.
Em suma, o que caracterizava o ato decisório como sentença era o fato do juiz encerrar o curso da relação processual na primeira instância, podendo a mesma ter seu desenvolvimento nas instâncias superiores por intermédio da interposição de recursos. Todavia, esse panorama alterou-se no caso das ações condenatórias, uma vez que a sentença não mais representará o marco final da relação processual na instância de origem.
Deixando de representar o término da relação processual, e sim o término da primeira fase do mesmo processo, tornou-se, repita-se, anacrônico o conceito de sentença previsto no artigo 162, par. 1º, do Código de Processo Civil.11 Por essa razão, o legislador, em 2005, alterou referido conceito, que passa a ser “ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos artigos 267 ou 269, do Código de Processo Civil”.
A nosso sentir, o intuito do legislador foi o de retirar do conceito de sentença a característica de encerramento da relação processual (aspecto topológico), passando a dar ênfase ao seu conteúdo.
Vale destacar que, em razão dessa alteração o legislador veio também a alterar a redação do artigo 463, caput da lei processual civil, cuja versão original assim regia: “Ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o seu ofício jurisdicional.” O que, neste aspecto, deixou de ser verdade, pois o juiz não terá cumprido ainda integralmente o ofício jurisdicional que dele se espera no processo, haja vista que haverá a segunda fase do processo, destinada à prática dos atos executivos.
Com a Lei nº 11.232/2005 assim passa a reger o artigo 463 do Código de Processo Civil, in verbis:
Art. 463. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:
Foi, então, eliminada a expressão “cumpre e acaba o ofício jurisdicional”. Assim, exatamente para demonstrar que diante da nova estrutura do processo (bifásico), a sentença não é mais o ato que encerra a relação processual, mas também o ato decisório que encerra a fase cognitiva.
Esta guinada na visualização do conceito de sentença irá alimentar com muita ênfase a discussão que sempre acompanhou a evolução do Código de Processo Civil Pátrio, à luz de dúvida conceitual que se encontra subjacente na Teoria Geral do Processo, qual seja, a natureza do ato decisório que põe fim prematuro a uma das ações cumuladas no mesmo processo. É o que ocorre, por exemplo, nos casos de indeferimento da reconvenção; indeferimento da denunciação da lide; exclusão de um dos litisconsortes; homologação da transação relativa apenas ao objeto de uma das ações reunidas.
Sobre referida questão, a par da sua discussão ser antiga e bastante conhecida, já se tem a construção do entendimento predominante na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que esses atos constituem decisões interlocutórias, tendo em vista que nenhum deles encerra o processo (lembrando que o Código de Processo Civil adotava para a sentença o conceito meramente topológico).
Diante da Lei nº 11.232/2005, abandonando-se o conceito de sentença pelo seu aspecto topológico, as dúvidas aparecerão revigoradas, sendo que a tese de sua conceituação como sentença (p. ex., o ato do juiz que homologa transação parcial – art. 162, par. 1º c/c art. 269, III),12 ganha nova força. Resta aguardar as decisões e observar as posições de nossos Tribunais.
A sentença é o ato culminante do processo de conhecimento. A instância se desenrola através do procedimento justamente para preparar o judicium, momento em que o Estado entrega a prestação jurisdicional dizendo da procedência ou improcedência do pedido.13
A sentença tem como causa o processo que, iniciado pelo direito de ação, é o modo pelo qual a função estatal da jurisdição resolve a lide.
A sentença é espécie de despacho: segundo Plácido e Silva, “despachar, mesmo em sentido processual, é desembaraçar para tocar para a frente, é dar movimento, desimpedir.”14
O processo é a causa necessária da sentença – não se pode admitir que a decisão estatal possa surgir ex novo sem o suporte da relação jurídica vinculativa de direito público em que participam, como sujeitos necessários, ao lado do órgão estatal, o demandante e o demandado.
A sentença que não se vê precedida do processo não é um ato meramente inválido – é um ato inexistente para o Direito, tão inexistente e sem força de coerção como é a sentença que o discípulo redige sob orientação do professor, em uma sala de aula.
Como suporte para a sentença, o que se quer é o processo, mas não, meramente, os autos do processo. Quando se exige o processo como causa motivadora da sentença, como pressuposto de sua existência, está a se exigir o processo com seus pressupostos de constituição: demandante, demandado, órgão estatal e demanda.
No moderno processo hispano-americano, uma sentença compõe-se de um preâmbulo, que contém a denominação da causa em que ela é proferida; de uma primeira parte, que contém um relatório dos fatos debatidos; de uma segunda parte, que determina o direito aplicável; e de uma conclusão, que contém a decisão final.
O curioso dessa estrutura é que ela reproduz, com uma plasticidade quase perfeita, a forma da demanda. Quando as leis processuais hispano-americanas descrevem a forma da demanda, reclamam um preâmbulo, um relato dos fatos, uma exposição de direito e um pedido final. Os espanhóis chamaram “requisito de congruência” a essa espécie de coerência necessária que deve haver entre o pedido e o decidido. Um autor assinalou, com agudeza, que toda demanda é o projeto da sentença pretendida pelo demandante, tanto no relativo à sua estrutura quanto ao relativo ao seu conteúdo.
Contemplando esse mesmo fato do ângulo da sentença, podemos dizer que toda sentença é, de certo modo, a reprodução formal de uma demanda inteiramente fundada.15
O princípio da substanciação da sentença é, assim, aquele que condiciona sua existência ao processo, em determinada situação concreta, enquanto o princípio da congruência exige que a sentença seja coerente com o que foi demandado.
A sentença é um ente jurídico, produzindo efeitos no mundo do Direito, além dos efeitos que se pretende que também produza no mundo fático.
Montesquieu, no célebre O espírito das leis (Livro XI, cap. 6), enfatizou o caráter declaratório da sentença, isto é, que a sentença simplesmente declara a lei aplicável ao caso concreto, pois a norma positiva, no regime liberal, atua com um caráter de neutralidade que deve ser mantido, ainda que incida em casos concretos:
Les juges de la Nation ne sont, comme nous avons dit, que lo bouche qui prononce les paroles de la loi, des êtres inanimés.
Os juízes nada mais são que a boca que pronuncia as palavras da lei; são seres inanimados, que declaram o Direito no caso concreto, mas não dispõem de alma, ou de sentimento, para tal aplicação.
Por tal vertente do pensamento jurídico, é tão somente a lei que pode criar o Direito através de normas genéricas e abstratas, aplicáveis igualmente nas situações que prevê, cabendo ao intérprete simplesmente um processo de revelação do Direito positivo.
Neste século XXI, com a intensificação do relacionamento social, e a constatação de manter tão somente as vias legislativas ou consuetudinárias como fontes do Direito, pois somente elas têm o caráter genérico e abstrato que se exige para a livre competição econômica, vislumbra-se que também a decisão concreta e individualizada também é criadora (constitutiva) do direito.
Do ponto de vista de uma consideração centrada sobre a dinâmica do Direito, o estabelecimento da norma individual pelo tribunal representa um estádio intermediário do processo que começa com a elaboração da Constituição e segue, através da legislação e do costume, até a decisão judicial e desta até a execução da sanção. Este processo, no qual o Direito como que se recria em cada momento, parte do geral (ou abstrato) para o individual (ou concreto). É um processo de individualização ou concretização sempre crescente.
Para individualizar a norma geral por ele aplicada, o tribunal tem de verificar se, no caso que se lhe apresenta, existem in concreto os pressupostos de uma consequência do ilícito determinados in abstracto por uma norma geral. Esta determinação do fato que condiciona as consequências do ilícito implica a determinação da norma geral a aplicar, isto é, a averiguação de que está em vigor uma norma geral que liga uma sanção ao fato (ou situação de fato) em apreço. O tribunal não só tem de responder à quaestio facti como também a quaestio iuris. Depois de realizadas estas duas averiguações, o que o tribunal tem a fazer é ordenar in concreto a sanção estatuída in abstracto na norma jurídica geral. Estas averiguações e esta ordem ou comando são as funções essenciais da decisão judicial.16
Na realidade, o juiz não só descobre ou declara o Direito ao caso concreto (por isso se diz que ele exerce “jurisdição” – dizer o Direito), mas também faz incidir a sanção ou mesmo “cria” (de acordo com o pedido) a sanção a ser determinada na resolução do conflito.
Não escapa à compreensão que o papel constitutivo do juiz (e dessa forma o fato de se encarar a sentença como “lei individualizada e concreta”) decorre do seu caráter lógico, tendo mesmo Pablo Pérez Tremps observado:
El calificativo que podría definir la construcción jurídica kelseniana es el de ser lógica. La teoría pura del Derecho es fundamentalmente un continuo ejercicio de lógica y sistemática digno del cartesianismo más puro.17
Somente o pensamento mais antigo podia ter a veleidade de considerar o sistema jurídico positivo tão perfeito que não fosse necessário autorizar o juiz a completar suas lacunas – no século passado, dizia Portalis que não ensinava o Direito Civil, mas ensinava o “Código Civil”, referindo-se ao Code Napoléon, de 1804, por muitos considerado a suprema realização legal.
Se fosse possível ao juiz simplesmente declarar o direito preestabelecido na norma genérica e abstrata, não haveria mandamentos legais, como o art. 126 do Código de Processo, vedando a denegação de justiça em caso de lacuna ou obscuridade da lei: no julgamento da lide caber-lhe-á (ao juiz) aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito.
O CPC, no seu art. 468, parece adotar a posição constitutiva do Direito, pelo magistrado, pois se refere que a sentença tem força de lei, seguindo, aí, o Código anterior, no seu art. 287: “A sentença que decidir total ou parcialmente a lide terá força de lei nos limites das questões decididas.”
A primeira limitação ao juiz como criador do Direito, no caso concreto, é a própria existência da norma genérica e abstrata, a qual deve aplicar nos casos sob seu julgamento: o princípio da legalidade, nos países ocidentais, é a base do sistema jurídico.18
Se não descobrir no sistema jurídico positivo a norma aplicável ao caso concreto, poderá o juiz recorrer à analogia, que, segundo Aníbal Bruno, não é um meio de interpretação, mas de integração do sistema jurídico, em caso de ausência de lei que regule diretamente a hipótese.19
A equidade, segundo Jorge Americano, é a regra não escrita que o juiz converteria em norma escrita se fosse o legislador. Ora, diz o art. 127 que o juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei, como se vê, por exemplo, no art. 8º da Lei nº 9.099/95 (juizados especiais). Se não houver autorização legal (inclusive através de meios indiretos, como, por exemplo, na dispensa do critério de legalidade estrita, como se refere o art. 1.109 do CPC), não poderá o juiz julgar por equidade.
A figura do judge made law é incompatível com a tripartição do Poder, pois gera o arbítrio do Judiciário, a par de invadir a esfera legiferante, atribuição de outro Poder. Onde irá a certeza do direito se cada juiz se arvorar em legislador? (RT, nº 604, p. 43).
Desnecessário repetir que o julgamento por equidade não dispensa, obviamente, a fundamentação razoável da decisão.
Em certos momentos, na tentativa de limitar o papel naturalmente integrador do Direito, feito pelo magistrado, na resolução dos casos concretos, visando a dirimir os conflitos de interesse, surgem outras restrições, como, por exemplo, a Súmula nº 339 do Supremo Tribunal Federal (“não cabe ao Poder Judiciário, que não tem função legislativa, aumentar vencimentos de servidores públicos sob o fundamento de isonomia”), enunciado que tem a Suprema Corte reiteradamente declarado subsistir na atual ordem constitucional.
A intensidade das relações sociais e econômicas que se exige em uma sociedade moderna, em que o indivíduo multiplicou suas necessidades e, em consequência, cada vez mais se relaciona com os outros na busca de bens cada vez mais sofisticados e produtos complexos de sofisticadas organizações de serviços, mudou completamente a visão romântica que se esperaria do juiz, como “ser inanimado” a pronunciar, neutralmente, as palavras da lei.
Cada vez mais todos desconfiam do legislador, acusando-o de tardo, improdutivo, anacrônico – a desconfiança com o legislador é tão grande que ele mesmo o reconhece ao elaborar as Constituições que, cada vez mais, e em todo o mundo, busca meios de se proteger da anomia ou falta de norma que a torne ineficaz.
A Lei Maior, promulgada em 5 de outubro de 1988, não esqueceu diversos remédios para suprir a ausência de normas infraconstitucionais:
1 – o controle de inconstitucionalidade por omissão, previsto no art. 103, § 2º (embora aí seja exercício de função legislativa anômala por órgão do Poder Judiciário);20
2 – o mandado de injunção, previsto no art. 5º, LXXI, visando a suprir a falta de norma regulamentadora que torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania;
3 – a arguição de descumprimento de preceito fundamental, a ser apreciada pelo Supremo Tribunal Federal (arts. 102, parágrafo único), o que ainda não foi regulamentado;
4 – a disciplina, a ser dada por lei, para as reclamações relativas à prestação de serviços públicos (art. 37, § 3º – em face de tal dispositivo, tivemos a oportunidade de propor remédio jurídico processual, denominado “ação popular mandatória” ou “ação popular mandamental”, em que o cidadão poderá exercitar, perante a função jurisdicional, sua pretensão à prestação de serviço público específico e indivisível);21
5 – a extensão do âmbito de incidência de remédios jurídicos processuais de controle das atividades públicas, como, por exemplo, a criação do mandado de segurança coletivo, o cabimento da ação popular constitucional para a defesa, inclusive, do meio ambiente, a ação pública civil etc.
A Constituição exige a atuação do magistrado inclusive no campo público, provendo sobre a atividade estatal na prestação de serviços públicos – é um novo papel que se espera do juiz, embora muitos manifestem sua reserva, inclusive afirmando que a cultura jurídica comum se estriba em fontes puramente privatistas.
No entanto, ainda no campo do direito privado, é inegável o papel construtivo do juiz brasileiro, como, aliás, já notara, em 1977, Fernando Pinto, demonstrando que a jurisprudência, principalmente no Direito de Família e no amparo da companheira e dos filhos extramatrimoniais, fez as reformas progressistas evitadas pelo legislador.22
O juiz é o legislador do caso concreto, constituindo a norma individualizada que irá resolver o caso específico.
Na generalidade do comando, termina a lei sua função. Por mais que, pormenorizadamente, preveja exceções à regra geral, o legislador não esgotará, explicitamente, as exceções que devem ser admitidas. Outrossim, a lei acompanha sempre, com passo tardo, as mudanças sociais.
Caberá ao juiz, como cientista do Direito, como sociólogo, no desempenho de um poder político, fazer a justiça do caso individual, vencendo, quer a insensibilidade da lei para acudir situações particulares imprevistas, quer seu atraso para adaptar-se à emergência dos fatos novos.
A missão de humanizar e atualizar a lei, de negar sua aplicação ao caso que foge da abstração do comando genérico cabe, especialmente, ao juiz da primeira instância, vizinho e testemunha da angústia e da dor que os processos refletem apenas palidamente. Se o juiz que vive o fato abdica desse papel, esvazia-se, em muito, sua função humana e social.23
A sentença é criadora do direito, mas é uma criação delimitada pela lógica e pela razoabilidade.
A sentença deve ser razoável, porque o Direito tem, como sua lógica, a lógica do razoável, como lembra Recaséns Siches.
Se a sentença busca a lógica e a razoabilidade, não deixa, no entanto, de ser uma obra humana, uma criação da inteligência e da vontade, isto é, uma criatura do espírito.
Os teóricos da concepção declaratória do processo nos mostram o juiz como um lógico que fabrica silogismos. A lei, diz-se, é a premissa maior; o caso concreto é a premissa menor; a sentença é a conclusão. A sentença, por sua vez, tem, entretanto, numerosas deduções particulares, e os círculos dessas diversas deduções particulares são, por seu turno, outros tantos silogismos. A decisão é, assim, uma espécie de pequena constelação de induções, deduções e conclusões.
No outro extremo, a doutrina criadora do direito acentuou o caráter voluntário da decisão e reduziu ao mínimo a lógica. Não faço, é claro, alusão à chamada “teoria do direito livre”, mesmo porque essa teoria nasceu para ser refutada. Refiro-me à concepção anglo-norte-americana do Direito. Holmes disse que o direito não é lógica, mas experiência; e um dos professores da escola de Yale disse que o juiz não é um lógico, mas um engenheiro social.
Como é fácil de se compreender, pois em cada uma dessas posições estão latentes os excessos que trazem consigo toda lógica sem experiência e toda experiência sem lógica.
O juiz é um homem que se move dentro do Direito como o prisioneiro dentro de seu cárcere. Tem liberdade para mover-se, e nisso atua sua vontade; o Direito, entretanto, fixa-lhe limites muito estreitos, que não podem ser ultrapassados. O importante, o grave, o verdadeiramente transcendental do Direito não está no cárcere, isto é, nos limites, mas no próprio homem.24
Como construção lógica, a sentença se erige sobre diversos silogismos, isto é, a figura adotada por Aristóteles para indicar o tipo perfeito do raciocínio dedutivo – “um discurso em que, postas algumas coisas, outras derivam necessariamente”.
Se for o silogismo a base do pensamento lógico da sentença, é certo, no entanto, que não é suficiente, por si só, para resolver ou informar todo o processo intelectual de elaboração da sentença.
Diversas operações intelectuais são exigidas no julgamento da relação material e, para expor tal tema, seguiremos o roteiro que Eduardo Couture nos deu.25
1 – determinar a significação extrínseca do caso que se propõe, ou seja, saber se a demanda será acolhida ou rechaçada – não haveria o juiz de decretar o divórcio se, durante o processo, a sociedade conjugal se dissolveu por morte de um dos cônjuges; nem poderia o magistrado decretar a falência de quem não realiza profissionalmente atividades econômicas. A resolução de tal questão pelo magistrado pode dar causa à extinção do processo sem resolução do mérito, como, por exemplo, pela perda do objeto à vista do falecimento do cônjuge no exemplo antes referido. Ao tratar das condições da ação, genéricas e específicas, já tínhamos observado que elas representam verdadeiras “pontes” entre a relação material e a relação processual.
Eduardo Couture nos alerta que não se pode sustentar que a significação do problema de direito seja sempre o prius e a questão de fato o posterius – em cada caso concreto é que pode o juiz decidir se o julgamento deve começar pela significação jurídica ou pela análise dos fatos. De qualquer forma, o exame mencionado nesta operação é sempre superficial, conspirando a dúvida, caso surja no espírito do julgador, em favor da continuação do julgamento;
2 – examinar criticamente os fatos, pois o juiz atua como um historiador, verificando documentos, escutando testemunhas, designando especialistas em matérias técnicas para orientar sua decisão, extraindo conclusões de fatos conhecidos, conjeturando sobre os fatos desconhecidos (aliás, o indício é meio de prova, como diz o art. 239 do CPP: “considera-se indício a circunstância conhecida e provada, que, tendo relação com o fato, autoriza, por indução, concluir-se a existência de outra ou de outras circunstâncias”, complementado pelo disposto no art. 332 do CPC). Diferencia-se, no entanto, o juiz do historiador porque a verdade, para o juiz, não é a verdade real, mas a verdade contida nos autos (reza o brocardo: “o que não está nos autos não está no mundo”), salvo os momentos que se impõe a busca pela verdade real. O juiz só busca o trecho da História que lhe foi posta, como fundamento ou causa petendi, na demanda, “o juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte”. Na coleta e no exame das provas, incide a regra do:
Art. 335. Em falta de normas jurídicas particulares, o juiz aplicará as regras de experiência comum subministradas pela observação do que ordinariamente acontece e ainda as regras da experiência técnica, ressalvado, quanto a esta, o exame pericial.
Como distinguir entre o fato notório (CPC, 334, I) da regra de experiência (CPC, 335)?
João Carlos Pestana de Aguiar ensina:
Conquanto seja profunda a diversidade das naturezas lógicas entre ambos os institutos, um e outro integram o patrimônio das noções comum e pacificamente armazenadas por determinada esfera social, a que se pode genericamente denominar “cultura”. Trata-se de cultura em sentido lato “compreendendo-se nesse conceito não só as noções que se apreendem na escola e que constituem o resultado de estudos científicos – como as que o juiz, o médico, o mestre-escola, o pintor devem ter adquirido – como também o conjunto de conhecimentos empíricos, vindos da experiência ou da tradição de cada homem, que vive em sociedade, possui em consequência de sua participação a determinada esfera de pessoas, tendo como estas – pelos mais variados motivos: de tempo, lugar, de profissão, de religião, de condições econômicas etc. – comunhão de interesses e, pois, comunhão de conhecimentos aptos a satisfazê-los”.
A distinção entre a máxima de experiência e o fato notório reside na circunstância de que a primeira não apresenta a evidência do fato a ser comprovado, conforme se dá com o segundo. Este pertence ao conhecimento de um largo círculo social, bem mais vasto do que o grupo de pessoas dotadas de condições intelectuais para fazer uso das máximas. Dependem, ademais, de uma atividade intelectual de certo modo mais complexa, ainda que independente de cultura jurídica, pois consistente num raciocínio dedutivo com base em experiência vivencial adquirida.26
3 – configurar juridicamente os fatos apreendidos. A qualificação jurídica dos fatos significa enquadrar os fatos provados no suporte fático de determinada norma – assim, os fatos serão qualificados pelo juiz com determinado tipo legal, como, por exemplo, compra e venda, responsabilidade civil ex delicto, adultério, inadimplemento do devedor etc.;
4 – verificar os efeitos jurídicos sobre o fato percebido:
También en esta etapa la labor del juez se hace dificultosa. Su función consiste en determinar si al hecho reducido a tipo jurídico le es aplicable la norma A o la norma B; si el contrato configurado de manera esquemática luego del análisis de los hechos, pertenece a la categoría de los que sólo pueden cumplir-se por el deudor o si se rige por el principio de los que pueden cumplirse por un tercero; si el cuasidelito apareja la responsabilidad civil o si se rige por la norma que releva de la obligación de indemnizar; si la posesión de estado permite establecer la filiación; si la declaración de quiebra etc.27
Tal operação intelectual tem o nome específico de subsunção, que é a conexão lógica de uma situação particular, específica e concreta, com a previsão abstrata, genérica e hipotética contida na lei. Na subsunção do fato concreto à norma genérica tem o magistrado amplo campo de ação, embora delimitado pela fundamentação: vige, aí, o princípio jura novit curia ou la cour connait le droit não se vinculando o magistrado, aí, à alegação das partes – contudo, sua liberdade de julgamento não dispensa a motivação ou fundamentação que, evidentemente, não pode ser vazia, mas lógica, sequencial e eficaz para a conclusão;
5 – finalmente, vem a decisão, contida na parte dispositiva da sentença, em que o magistrado conclui, favorável ou desfavoravelmente, ao autor.
1 Citado por José Frederico Marques, Instituições de Direito Processual Civil, 4ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1972, t. III, p. 390.
2 Francisco Antonio de Sousa, Novo Dicionário Latino-Português, edição atualizada e aumentada por José Lello e Edgar Lello, Porto, Lello & Irmão Editores, 1984, verbete “Sententia, ae”, p. 908.
3 Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia (Dizionario de Filosofia), tradução coordenada e revista por Alfredo Bosi, 2ª ed., São Paulo, Ed. Mestre Jou, 1982.
4 Eduardo J. Couture, Introdução ao Estudo do Processo Civil, tradução de Mozart Victor Russomano, 3ª ed., Rio de Janeiro, José Konfino Editor, p. 75.
5 Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil (Istituzioni di Diritto Processuale Civile), tradução de J. Guimarães Menegale, São Paulo, Livraria Saraiva, vol. III, p. 272.
6 José Eduardo Carreira Alvim, Teoria Geral do Processo, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2011, p. 234.
7 José Frederico Marques, op. et loc. cits.
8 Redação anterior
“Art. 463. Ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e acaba o ofício jurisdicional, só podendo alterá-la: (Revogado pela Lei nº 11.232/2005)
(...)”
Redação atual
“Art. 463. Publicada a sentença, o juiz só poderá alterá-la:
(...)”
9 Alfredo Rocco, citado por Carreira Alvim, op. cit., p. 349.
10 Carlos Aurélio Mota de Souza, Poderes Éticos do Juiz – A Igualdade das Partes e a Repressão ao Abuso no Processo, Porto Alegre, Sérgio Fabris Editor, 1987, pp. 78 e segs.
11 “Art. 162 (...)
§ 1º Sentença é o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (Revogado pela Lei nº 11.232/2005).
12 “Art. 162. Os atos do juiz consistirão em sentenças, decisões interlocutórias e despachos.
§1º Sentença é o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei.
(...)
Art. 269. Haverá resolução de mérito:
(...)
III – quando as partes transigirem;
(...)”
13 José Frederico Marques, op. et loc. cits.
14 De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, verbete Despacho, 1ª ed., 1ª tiragem, edição universitária, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1989.
15 Eduardo J. Couture, op. cit., pp. 75-76.
16 Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito (Reine Rechtslehre), tradução de João Baptista Machado, 5ª ed., Coimbra, Armênio Amado, Editor, 1979, p. 328.
17 Pablo Pérez Tremps, Tribunal Constitucional y Poder Judicial, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 49.
18 Nagib Slaibi Filho, Anotações à Constituição de 1988 – Aspectos Fundamentais, 4ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1993, p. 205; Aliás, Francisco Campos anotou: “Não existe nenhum sistema jurídico em que se conceda ao juiz permissão para substituir a regra legal pelo que lhe seja ditada pela sua consciência ou pelo seu sentimento de justiça, ou pela sua filosofia econômica, política ou social” (RF, nº 128, p. 378).
19 Aníbal Bruno, Direito Penal, Parte Geral, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1967, t. I, p. 222.
20 Nagib Slaibi Filho, Anotações..., p. 113.
21 Nagib Slaibi Filho, Ação Popular Mandatória, 2ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1990.
22 Fernando Pinto, Jurisprudência – Fonte Formal do Direito Brasileiro, Rio de Janeiro, Ed. Freitas Bastos, 1977.
23 João Baptista Herkenhoff, Como Aplicar o Direito (à Luz de uma Perspectiva Axiológica, Fenomenológica e Sociopolítica), 2ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1986, pp. 110-111.
24 Eduardo J. Couture, op. cit., p. 87.
25 Eduardo J. Couture, Fundamentos del Derecho Procesal Civil, 3ª ed., Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1988, pp. 280 e segs.
26 João Carlos Pestana de Aguiar, Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1977, vol. IV, p. 105.
27 Eduardo J. Couture, op. cit., p. 285.