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27 de abril, 23h10 EDT
Takoma Park, Maryland

Quando chove, é a potes…

Gray Pierce acelerou na sua mota pela rua molhada dos subúrbios. Estivera muito mau tempo a semana toda. Esgotos sobrecarregados deixavam poças traiçoeiras nas bermas da estrada. A luz do farol dianteiro rasgava um vislumbre do caminho por entre os pingos de chuva densa enquanto se dirigia para casa do seu pai.

O bangalô do Artesão ficava a meio do próximo quarteirão. Mesmo de onde se encontrava, Gray conseguia ver luzes brilhantes a sair de todas as janelas, iluminando o alpendre que rodeava a casa e o baloiço de madeira que se encontrava ali pendurado languidamente. A casa tinha o mesmo aspeto de sempre, escondendo a tempestade que o aguardava no interior.

Quando chegou ao caminho de acesso ao bangalô, fez a curva inclinando o seu metro e oitenta e dirigiu-se ruidosamente para a garagem nas traseiras da casa. Um grito áspero soou vindo da parte de trás da casa, sobrepondo-se até ao ronco do motor da Yamaha V-Max.

Parece que tudo tinha piorado por aqui.

Quando desligou o motor, surgiu alguém das traseiras, caminhando de forma ameaçadora pela chuva. Era o seu irmão mais novo, Kenny. As parecenças de família eram evidentes, desde o tom de pele rosado, tipicamente galês, até ao cabelo escuro e grosso.

Contudo, as semelhanças entre os irmãos resumiam-se a isso.

Gray tirou o capacete e desmontou da mota para enfrentar a ira do irmão. Embora fossem da mesma altura, Kenny tinha uma barriga proeminente, uma característica resultante de uma década de vida fácil de engenheiro de software na Califórnia, ao mesmo tempo que tratava o seu problema de alcoolismo. Kenny tirara recentemente uma licença do trabalho e regressara a este lugar para ajudar o pai. Ainda assim, ameaçava voltar para oeste quase todas as semanas.

— Não aguento mais — disse Kenny, cerrando os punhos, o rosto completamente vermelho de irritação. — Tens de falar com ele e tentar chamá-lo à razão.

— Onde é que ele está?

Kenny acenou em direção ao quintal das traseiras, com um ar irritado e envergonhado.

— O que é que ele está a fazer cá fora à chuva?

Gray dirigiu-se para as traseiras da casa.

— Diz-me tu.

Gray chegou ao quintal. Uma única lâmpada por cima da porta das traseiras da cozinha oferecia pouca luz, mas não teve qualquer dificuldade em ver o homem alto, de pé, junto a uma fila de oleandros que delineavam a cerca. A visão fê-lo parar durante alguns momentos, enquanto tentava perceber o que via.

O pai encontrava-se descalço e nu, à exceção de um par de boxers molhados que se colavam ao seu corpo esquelético. Tinha os braços magros erguidos, o rosto virado para cima a levar diretamente com a chuva, como se estivesse a rezar a alguma espécie de deus da tempestade. Em seguida, estendeu os braços cruzados em frente aos arbustos como se fossem uma tesoura.

— Ele acha que está a podar os oleandros — explicou Kenny, agora mais calmo. — Encontrei-o há pouco a vaguear pela cozinha. É a segunda vez esta semana. Eu não o conseguia pôr na cama sozinho. Sabes como ele sempre foi teimoso, mesmo antes… antes de isto acontecer.

Alzheimer.

Kenny raramente dizia a palavra, como se tivesse medo de ficar com Alzheimer apenas por falar nisso.

— Foi nessa altura que resolvi chamar-te — disse Kenny —, ele a ti ouve-te.

— Desde quando? — murmurou ele.

Gray e o pai sempre tinham tido uma relação tumultuosa. O pai trabalhara na indústria do petróleo no Texas, era um homem rude e duro, com uma filosofia de vida assente em persistência e independência, até um acidente industrial numa plataforma petrolífera lhe arrancar uma das pernas até ao joelho. Depois disso, a sua forma de encarar a vida azedou e tornou-se amargo e colérico. Muita dessa cólera foi dirigida ao seu filho mais velho. Tudo isto acabou por fazer com que Gray se afastasse, para o Exército e, por fim, para a Sigma.

Naquele momento, Gray procurava aquele homem duro e enfurecido naquela figura frágil no quintal. Tinha as costelas visíveis, a pele emaciada e as vértebras salientes. Aquele homem nem sequer era a sombra do que o seu pai um dia fora. Era um invólucro, ao qual tudo fora arrancado pela idade e pela doença.

Gray aproximou-se do pai e tocou-lhe suavemente no ombro.

— Pai, já chega.

Os olhos viraram-se na direção de Gray, surpreendentemente brilhantes. Infelizmente, era apenas a raiva antiga que brilhava neles.

— Estes arbustos precisam de ser podados. Os vizinhos já se queixam. A tua mãe…

Já faleceu.

Gray refreou um pouco da culpa que sentia e manteve a mão firme sobre o ombro do pai.

— Eu faço isso.

— E a escola?

Gray ficou atrapalhado ao tentar acompanhar a cronologia do velhote, depois continuou calmamente.

— Eu faço-o depois da escola. Está bem?

O fogo esmoreceu nos olhos desorientados e azuis do pai.

— É bom que o faças, rapaz. Um homem só tem o valor da sua palavra.

— Eu faço. Prometo.

Gray conduziu-o para o alpendre das traseiras e de volta para o interior da cozinha. O movimento, o calor e a luz brilhante pareceram ajudar o pai a orientar-se.

— Gr… Gray, o que fazes aqui? — perguntou o pai com a voz rouca, como se o visse pela primeira vez.

— Passei aqui para ver como estás.

Uma mão magra deu palmadinhas no braço de Gray.

— E o que me dizes a uma cerveja?

— Talvez noutra altura. Tenho de voltar para a Sigma. O dever chama-me.

O que era verdade. Kat apanhara-o a sair do seu apartamento e pedira-lhe para ir com ela à sede da Sigma em D.C. Depois de ter explicado o que se passava com o seu pai, Kat deu-lhe alguma margem de manobra. Ainda assim, Gray ouvira a urgência na sua voz e não a queria desiludir.

Gray olhou de relance para Kenny.

— Eu levo-o para a cama. Depois de episódios como este, ele costuma dormir o resto da noite.

Ainda bem.

— Mas, Gray, isto não acabou. — Kenny baixou a voz. — Não posso continuar a fazer isto todas as noites. Na verdade, ainda hoje falei com a Mary sobre isto.

Gray sentiu alguma irritação por ter sido excluído dessa conversa. Mary Benning era a enfermeira que cuidava do pai de Gray e Kenny durante o dia. As noites eram geralmente asseguradas por Kenny e Gray tomava conta do pai sempre que podia.

— O que é que ela acha?

— Que o pai precisa de cuidados permanentes e de algumas medidas de segurança. Alarmes nas portas. Barreiras nas escadas. Ou…

— Ou que lhe arranjemos um lar.

Kenny acenou com a cabeça.

Mas este é o seu lar.

Kenny deve ter-se apercebido da expressão de aflição no rosto de Gray.

— Não temos de decidir já. Por enquanto, a Mary deu-me os contactos de algumas enfermeiras que podem começar a assegurar o turno da noite. Acho que qualquer um de nós precisa de férias.

— Está bem.

— Vou tratar de tudo — disse Kenny.

Um resquício de desconfiança percorreu a mente de Gray, preocupado que a repentina prestabilidade do irmão se devesse ao facto de se querer livrar do pai e fugir de volta para a Califórnia. Ao mesmo tempo, Gray reconhecia que o irmão era capaz de ter razão. Tinham de fazer alguma coisa.

Enquanto Kenny conduzia o pai em direção às escadas e aos quartos no andar de cima, Gray retirou o telemóvel do bolso e ligou para a sede da Sigma. Kat atendeu quase de imediato.

— Vou já para aí.

— É melhor despachares-te. A situação está a piorar.

Gray olhou de relance para as escadas.

Está mesmo.

23h33

Gray chegou à sede da Sigma em quinze minutos, puxando pela sua Yamaha até ao limite nas estradas praticamente desertas, tanto perseguido pelos fantasmas do passado, como impulsionado pelo que o chamava com urgência a D.C. Podia ter pedido para ser dispensado do serviço, mas no seu apartamento só o esperavam ainda mais preocupações. Naquele momento, até mesmo a sua cama estava fria e vazia, visto que Seichan se encontrava em Hong Kong a trabalhar com a mãe num projeto de angariação de fundos para raparigas carenciadas do Sudeste Asiático.

Assim, neste momento, precisava de se manter em movimento.

Quando as portas do elevador se abriram nos níveis subterrâneos da sede da Sigma, Gray saiu e percorreu o corredor. As instalações ocupavam bunkers da época da Segunda Guerra Mundial há muito abandonados e refúgios nucleares por baixo do Smithsonian Institution. A localização secreta nos arredores do National Mall oferecia aos membros da Sigma acesso direto aos centros de poder, bem como aos muitos laboratórios e materiais de investigação do Smithsonian Institution.

Gray dirigiu-se para o centro nervoso das instalações — e para o cérebro da rede de serviços de informação e comunicação da Sigma.

Kat ouviu-o aproximar-se e saiu para o corredor para o receber. Apesar da hora tardia e do longo dia que tivera, Kat estava fardada com um impecável uniforme azul da marinha. O seu cabelo curto castanho-avermelhado estava cuidadosamente penteado e apanhado num penteado à rapaz, embora não houvesse nada de arrapazado na sua figura. Ela acenou-lhe com a cabeça, os olhos severos e concentrados.

— Que se passa? — perguntou Gray ao juntar-se a ela.

Sem desperdiçar o fôlego, Kat virou-se e dirigiu-se para o centro de comunicações da Sigma. Gray seguiu-a para o interior da sala circular, com monitores e computadores a toda a volta. Em circunstâncias normais, dois ou três técnicos encontravam-se de serviço neste centro e, quando havia uma operação em curso, chegavam a estar mais do dobro. No entanto, àquela hora tardia, apenas uma figura os esperava: o analista principal de Kat, Jason Carter.

O jovem encontrava-se sentado num dos postos a teclar furiosamente. Usava calças de ganga e uma t-shirt dos Boston Red Sox. O seu cabelo louro, quase branco, estava despenteado e parecia lambido por uma vaca, como se tivesse acabado de acordar, mas, pela exaustão evidente no seu rosto, era mais provável que nem sequer tivesse dormido. Apesar de ter apenas vinte e dois anos, o miúdo era brilhante, sobretudo no que dizia respeito a computadores. Segundo Painter, Jason fora expulso da marinha por entrar sem autorização nos servidores do Departamento da Defesa com pouco mais que um BlackBerry e um iPad. Kat recrutara-o pessoalmente, protegendo-o debaixo da sua asa.

Kat dirigiu-se a Gray:

— Há pouco mais de uma hora, houve um acidente grave numa estação de investigação militar na Califórnia. Emitiram um pedido de socorro desesperado.

Kat tocou no ombro de Gray.

Gray clicou numa tecla. Começou a passar de imediato uma gravação áudio. Era uma voz de mulher, firme mas nitidamente abalada, com dificuldade em manter a compostura.

«Daqui sierra, victor, whisky. Houve uma fuga. Dispositivo de segurança iniciado. O que quer que aconteça: matem-nos… matem-nos a todos.»

Kat continuou.

— Identificámos quem fez a chamada, a doutora Irene McIntire, a responsável pelos sistemas de análise da base.

No monitor do computador surgiu a imagem de uma mulher de meia-idade com uma bata de laboratório a sorrir para a câmara. Os seus olhos brilhavam de entusiasmo. Gray tentava associar esta imagem à voz frenética que acabara de ouvir.

— Em que projeto estavam a trabalhar? — perguntou Gray.

Jason interrompeu-os, pressionando o auricular do Bluetooth contra a orelha.

— Já chegaram. Vão descer agora.

— É isso que tenciono descobrir — disse Kat, respondendo à pergunta de Gray. — Tudo o que sei é que a estação devia estar a trabalhar com algo perigoso, algo que requeria medidas drásticas de contenção. As imagens de satélite mostraram uma explosão. Muito fumo.

Jason fez surgir no monitor as duas imagens, passando-as rapidamente. Embora as imagens fossem a preto-e-branco e com pouca resolução, Gray conseguia identificar com facilidade as chamas e a nuvem densa de fumo negro.

— Ainda não conseguimos ver o que se encontra por baixo do fumo para avaliar o estado atual da base — disse Kat —, mas não houve mais comunicação.

— Devem ter aniquilado a base.

— É o que parece neste momento. O Painter está a investigar a situação a oeste, fazendo uso dos recursos locais. Encarregou-me de descobrir mais pormenores sobre as operações da base. — Kat virou-se para Gray, os olhos preocupados. — Já descobri que o local é gerido pela DARPA.

Gray não conseguiu esconder a sua surpresa. A DARPA era a agência que supervisionava as operações da Sigma, embora o conhecimento da existência deste grupo fosse restrito a apenas algumas pessoas-chave, aqueles com o nível de acreditação de segurança mais elevado. Contudo, Gray não deveria ter ficado tão surpreendido ao descobrir que a base estava ligada à DARPA. A agência de investigação e desenvolvimento militar tinha centenas de instalações espalhadas por várias unidades militares em todo o país. A maioria funcionava com supervisão mínima e era gerida de forma independente, fazendo uso das mentes e dos talentos mais únicos que existiam por aí. Os pormenores de cada operação eram mantidos tão confidenciais quanto possível.

E, ao que parece, era precisamente o que tinha acontecido neste caso.

— Estavam cerca de trinta homens e mulheres de serviço na base quando a situação se desencadeou — disse Kat. Pela tensão nos seus ombros e rigidez nos seus lábios, dava para ver que estava furiosa.

Olhando para o monitor e para a densa nuvem negra, Gray não a podia censurar.

— Sabes que divisão específica da DARPA geria aquele lugar?

— O DTB. O Departamento de Tecnologias Biológicas. É uma divisão relativamente recente. A sua missão é explorar a relação existente entre duas ciências: a biologia e a física.

Gray franziu o sobrolho. O seu próprio contributo enquanto perito da Sigma era nessa área. Era território perigoso, abrangendo tudo, desde a manipulação genética à biologia sintética.

Ecoaram vozes ao fundo do corredor, vindas do lado do elevador. Gray olhou de relance por cima do ombro.

— Depois de obter a permissão do Painter — explicou Kat —, pedi ao diretor do DTB, o doutor Lucius Raffee, para se juntar a nós a fim de nos ajudar a resolver esta situação.

Enquanto o novo grupo se aproximava, as suas vozes transmitiam uma enorme tensão relativamente a esta reunião tardia.

Apareceram dois homens à entrada do centro de comunicações. O primeiro era um desconhecido, um homem negro distinto, vestido com um sobretudo até ao joelho por cima de um fato Armani. Parecia ter cinquenta e poucos anos, com cabelo grisalho e uma barba bem aparada.

— Doutor Raffee — disse Kat, chegando-se à frente e cumprimentando-o com um aperto de mão. — Obrigada por ter vindo.

— Não me parece que o seu homem me tenha dado outra opção. Estava a sair do espetáculo La Bohème no Kennedy Center quando fui abordado insistentemente.

O acompanhante do doutor, Monk Kokkalis, conduziu-os para dentro da sala. Era um homem que mais parecia um buldogue, com a cabeça rapada e um corpo musculado como um defesa de futebol americano. O homem franziu o sobrolho para Gray, como que a dizer «já viste a lata deste gajo?». Depois aproximou-se e beijou ao de leve o rosto da esposa.

Monk murmurou para Kat:

— Querida, cheguei.

O doutor Raffee olhou de relance para um e para o outro, tentando compreendê-los enquanto casal. Gray percebia perfeitamente a confusão do homem. Faziam um casal vistoso, se não mesmo estranho.

— Presumo que o meu marido já o tenha posto ao corrente da situação na Califórnia — disse Kat.

— Sim. — O doutor Raffee suspirou profundamente. — Mas receio que haja muito pouca informação concreta que eu lhe possa dar em relação ao que correu mal… ou até mesmo em relação à natureza exata do que pode ter resultado em medidas tão drásticas naquela base. Já contactei várias pessoas-chave para seguirem o caso. Esperamos que nos deem notícias em breve. Tudo o que sei, neste momento, é que o investigador responsável era o doutor Kendall Hess, um especialista em exobiologia, com um interesse específico no estudo das biosferas-sombra.

Kat franziu o sobrolho.

— Biosferas-sombra?

O doutor Raffee acenou com a mão com desdém e continuou:

— Ele andava à procura de formas de vida radicalmente diferentes, sobretudo aquelas que empregam processos bioquímicos e moleculares para funcionar.

Gray estava bastante familiarizado com o tema e disse:

— Como os organismos que usam o ARN em vez do ADN.

— Sim. No entanto, as biosferas-sombra podem ser até mais esotéricas que isso. Hess propôs a possibilidade da existência de alguma forma de vida oculta que utiliza um conjunto completamente diferente de aminoácidos do que é conhecido. Foi por esta razão que ele decidiu estabelecer a estação de investigação junto ao lago Mono.

— Porquê? — perguntou Gray.

— Em 2010, um grupo de cientistas da NASA conseguiu levar um micróbio nativo para aquele lago altamente alcalino e forçá-lo a usar arsénico em vez de fósforo nos seus processos bioquímicos.

— E porque é isso significativo? — perguntou Monk.

— Enquanto exobiólogo, Hess estava familiarizado com o trabalho da equipa da NASA. Ele acreditava que esta descoberta provava que as primeiras formas de vida na Terra eram provavelmente à base de arsénico. Também pôs a hipótese de existir uma biosfera de organismos à base de arsénico em franco crescimento algures na Terra.

Gray compreendia o fervor de Hess. Tal descoberta viraria a biologia de pernas para o ar e abriria um novo capítulo de vida na Terra.

Raffee franziu o sobrolho e continuou:

— No entanto, Hess também investigava muitas outras possíveis biosferas-sombra. Tal como o verniz do deserto.

Reparando nas suas expressões confusas, o doutor Raffee passou a explicar de forma mais pormenorizada:

— O verniz do deserto é aquela camada que se encontra nas superfícies expostas das rochas, que vai da cor da ferrugem até ao preto. Antigamente, os nativos costumavam raspá-la para criar os seus petróglifos.

Gray imaginou os desenhos rudimentares de pessoas e animais encontrados em todo o mundo.

— Mas o que é estranho no verniz do deserto — continuou Raffee — é que ainda não se sabe como se forma. Será uma reação química? O resultado de algum processo microbial desconhecido? Ninguém sabe. Na verdade, o estatuto do verniz do deserto enquanto ser vivo ou não vivo tem sido discutido desde os tempos de Darwin.

Monk verbalizou a sua irritação:

— Mas como é que investigar um pedaço de sujidade nas rochas acaba por desencadear um pedido de socorro frenético e uma explosão?

— Não sei. Pelo menos, por enquanto. Apenas sei que o trabalho de Hess chamou a atenção do setor privado, que uma parte do seu trabalho mais recente era uma joint venture com uma empresa privada e o Programa de Transferência Tecnológica federal. — Raffee encolheu os ombros. — É o que acontece quando fazem tantos cortes na área da pesquisa e desenvolvimento.

— Qual era o interesse da esfera privada nesta investigação? — perguntou Kat.

— Ao longo dos anos, a investigação de Hess sobre biosferas-sombra descobriu uma grande quantidade de novos extremófilos, organismos capazes de se desenvolverem em ambientes adversos e invulgares. Tais microrganismos são excelentes recursos para a descoberta de químicos e compostos únicos. Se juntarmos isto à explosão da biologia sintética, cujos laboratórios levam a manipulação genética ao extremo, temos uma área de investigação muito lucrativa.

Gray sabia que muitos milhões de dólares dessas empresas já eram investidos em investigações como esta, por parte de gigantes como a Monsanto, a Exxon, a DuPont e a BP. E, quando estava tanto em jogo, as empresas colocavam os lucros à frente da segurança.

— Se estiver certo em relação ao financiamento da investigação do doutor Hess por empresas privadas — perguntou Gray —, poderá este acidente ter sido uma forma de sabotagem?

— Não lhe sei dizer, mas tenho as minhas dúvidas. A sua investigação financiada por empresas privadas é bastante altruísta. Chama-se Projeto Neogénese.

— E qual era o objetivo do projeto? — perguntou Kat.

— Bastante ambicioso. O doutor Hess acredita que é capaz de abrandar ou até mesmo parar o crescente número de extinções neste planeta, sobretudo aquelas que ocorrem através da ação do Homem. Nomeadamente, a poluição e os efeitos das alterações climáticas. Uma vez ouvi o doutor Hess dar uma palestra numa conferência sobre o facto de a Terra se encontrar a meio da sexta extinção em massa, uma extinção de tal maneira grave que chegaria a igualar a que extinguiu os dinossauros. Lembro-me de ele dizer que um mero aumento de dois graus na temperatura global aniquilaria de imediato milhões de espécies.

Kat arqueou as sobrancelhas.

— E qual era o plano do doutor Hess para evitar que isso acontecesse?

Raffee olhou em volta como se a resposta fosse óbvia.

— Ele acredita que descobriu um caminho para fugir a este fim certo.

— Através do Projeto Neogénese? — perguntou Kat.

Gray compreendia agora o significado do nome.

Nova génese.

Olhou de relance para a imagem repleta de fumo que ainda se encontrava no monitor. Era, sem dúvida, um objetivo digno, mas, ao mesmo tempo, a presunção do homem provavelmente custara a vida de trinta homens e mulheres.

E, com um arrepio, Gray teve a sensação de que isto ainda não terminara.

Quantos mais iriam morrer?