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27 de abril, 20h35 PDT
Lago Mono, Califórnia

Não consigo aguentar muito mais tempo.

Jenna estava deitada sobre a barriga, debaixo da carcaça ferrugenta de um velho trator. Ela tinha uma visão nítida do helicóptero parado na pradaria para lá da cidade-fantasma. Tirou uma série de fotografias com o telemóvel. Não se atrevia a usar o flash com medo de ser localizada pela equipa de assalto no terreno. Fora-lhe necessária muita cautela e paciência para se arrastar desde o celeiro até àquele esconderijo exíguo.

Esticou o pescoço para localizar o homem de ombros largos que batia o terreno à volta do conjunto de frágeis estruturas que coroavam a colina. O seu lança-chamas rugiu, disparando um jato de chamas com três metros. Incendiou a erva, os arbustos e os edifícios mais próximos, transformando o cimo da colina numa paisagem infernal. O fumo elevou-se a grande altura, lembrando-lhe demasiado bem o mar venenoso que a mantinha presa ali.

Podia não ser capaz de escapar, mas isso não significava que não pudesse deixar alguma coisa para trás, alguma pista do seu destino, do que lhe acontecera ali.

Limpou o suor da testa com as costas da mão. Tinha dado o seu melhor para captar o maior número possível de fotografias da aeronave e dos homens armados. Se tudo corresse bem, alguém seria capaz de identificar o helicóptero ou reconhecer algum dos rostos captados digitalmente. Usando o zoom, ela obtivera um grande plano do gigante a manejar o lança-chamas. As suas feições eram morenas, possivelmente hispânico, com cabelo escuro por baixo do boné militar e uma cicatriz proeminente e arroxeada que lhe rasgava o queixo.

Feio como é, tem de estar em alguma das bases de dados das autoridades.

Sabendo que tinha feito tudo o que podia, virou-se de lado e encontrou um par de olhos a brilharem para ela, refletindo a luz do incêndio. Nikko arfou em silêncio, com a língua pendente. Ela acariciou-o desde o cimo da cabeça até ao flanco. Os músculos do animal tremeram com a adrenalina, pronto a correr, mas ela tinha de exigir mais dele.

Agarrou e prendeu o cordão do estojo do seu telemóvel à coleira do cão, depois agarrou-lhe o focinho entre as mãos, fitando o olhar determinado do animal.

Nikko, senta. Fica.

Reforçando a ordem, estendeu a palma da mão para o animal, depois fechou-a num punho.

— Senta e fica — repetiu.

Ele parou de arfar e deixou escapar um ganido baixinho.

— Eu sei, mas tens de ficar aqui.

Jenna afagou-lhe o focinho para o tranquilizar. Ele encostou-o com força contra a palma da sua mão, como se lhe pedisse para não se ir embora.

Sê o meu menino valente. Uma vez mais, okay?

Largou-lhe o focinho. O cão baixou a cabeça, acabrunhado, e pôs o focinho entre as patas. No entanto, os seus olhos nunca a deixaram. Ele era seu companheiro desde que ela ingressara na Guarda Florestal. Jenna acabara de sair da universidade na mesma altura em que Nikko completara o seu treino de cão de busca. Cresceram juntos, tanto profissionalmente como em privado, tornando-se parceiros e amigos. Ele também estava com ela quando, há dois anos e meio, a sua mãe morrera com cancro da mama.

Jenna afastou a recordação daquela batalha longa e brutal que devastara o seu pai, deixando um invólucro vazio do homem que ele fora, perdido na dor e na culpa do sobrevivente. A morte tornara-se um abismo de que nenhum deles conseguia sair. Jenna fizera um teste genético BCRA, uma análise que confirmou que ela era portadora de um dos dois marcadores genéticos herdados que indicavam um risco elevado de vir a sofrer de cancro da mama. Mesmo agora, ainda não fizera as pazes com essa informação, nem partilhara os resultados com o pai.

Desde então, tinha mergulhado no seu trabalho, encontrando consolo na beleza agreste dos grandes espaços abertos, descobrindo a paz na mudança das estações, esse eterno ciclo de morte e renascimento. Mas também encontrou uma família de facto nos seus colegas da Guarda Florestal, na simples camaradagem de almas idênticas. Mais que tudo, pensou, encontrara Nikko.

Ele ganiu baixinho outra vez, como se soubesse o que ela tinha de fazer.

Jenna inclinou-se para mais perto do cão e encostou o nariz ao dele.

Também gosto de ti, companheiro.

Uma parte dela queria desesperadamente ficar com ele, mas vira o inevitável no rosto corajoso da sua mãe. Agora, era a sua vez.

Com o seu registo de acontecimentos a salvo e escondido em Nikko, sabia o que tinha de fazer. Afagou Nikko uma última vez, depois rolou de debaixo do trator. Tinha de conduzir os homens para o mais longe possível daquele local agreste. Duvidava que quem quer que a estivesse a perseguir soubesse do seu cão ou, mesmo que soubesse, se preocupasse com ele. A finalidade deles era eliminar qualquer testemunha que falasse. Uma vez que o conseguisse, a equipa de assalto partiria. Esperava que depois disso alguém fosse à sua procura e encontrasse Nikko e as provas que ela deixara para trás.

Era tudo o que podia fazer.

Isso e dar aos seus perseguidores uma boa caçada.

Começou por uma corrida lenta, afastando-se das chamas em direção à parte mais escura do sopé da colina. Percorreu 45 metros e foi então que ouviu um grito à sua esquerda, o urro triunfante do caçador que avistava a sua presa.

Correu mais depressa com um último pensamento bem vivo dentro dela.

Adeus, meu companheiro.

20h35

O doutor Kendall Hess sobressaltou-se com o ripostar em staccato de tiros de espingarda. Endireitou-se no seu assento, esticando as costas ao mesmo tempo que se esforçava por ver pela janela lateral do helicóptero. As algemas de plástico que lhe prendiam os pulsos atrás das costas cortavam-lhe dolorosamente a pele.

O que é que está a acontecer?

Debateu-se através da neblina das drogas. Cetamina e Valium, calculou, embora não pudesse ter a certeza de que sedativo lhe tinha sido injetado na coxa depois de ter sido capturado no laboratório.

Ainda assim, tinha testemunhado o que transpirara depois de o helicóptero ter deixado a base. Todo o seu corpo doía com a memória da explosão, das contramedidas que conseguira tomar como último recurso. Rezou para que uma ação tão drástica tivesse contido o que escapara do laboratório de biossegurança nível 4. O que ele e a sua equipa tinham criado naquele laboratório subterrâneo era um primeiro protótipo, demasiado perigoso para ser sequer libertado no mundo real. Mas alguém o tinha soltado, um sabotador.

Mas porquê?

Visualizou os rostos dos seus colegas.

Desaparecidos, todos desaparecidos.

Outra explosão de tiros ecoou sobre a colina em chamas.

Kendall tinha sido deixado com um guarda no helicóptero, mas o homem estava a olhar pela outra janela, claramente ansioso por se juntar à caçada. Se pelo menos o piloto não tivesse localizado a carrinha em fuga — pelo logótipo, um veículo da Guarda Florestal —, Kendall poderia ter-se agarrado a alguma esperança, tanto por ele, como por qualquer um que estivesse num raio de 160 quilómetros do seu laboratório.

De novo, rezou para que as suas contramedidas se aguentassem. O fumo continha uma mistura mortífera criada pela equipa de Hess: uma combinação para uso militar de VX e saxitoxina, um preparado de um agente paralisante com um derivado de um organofosfato letal. Nada vivo podia sobreviver à mínima exposição.

Exceto aquilo que eu criei.

A sua equipa ainda não descobrira uma maneira de matar aquele microrganismo sintético. O gás neurotóxico produzido era destinado a conter a sua propagação, matar qualquer organismo que o pudesse transmitir.

À medida que a barragem de fogo continuava lá fora, ele visualizou o guarda-florestal anónimo dando o seu melhor para se aguentar, mas o homem estava claramente em desvantagem, tanto em número como em armamento. No entanto, continuava a lutar.

Posso eu fazer menos?

Kendall lutou por sair daquela neblina induzida pela droga. Debateu-se com as algemas de plástico, usando a dor para o ajudar a focar-se. Um mistério ocupou toda a sua atenção. Os sabotadores tinham matado a tiro toda a gente na base ou tinham-nos deixado morrer na explosão.

Então, porque é que eu ainda estou vivo? Porque é que eles precisam de mim?

Kendall estava determinado a não cooperar, mas também era suficientemente realista para saber que podia ser quebrado. Qualquer um podia ser quebrado. Havia apenas uma maneira de os fazer fracassar.

No momento em que outra rajada de tiros eclodiu, Kendall torceu os braços o suficiente para esmurrar o mecanismo que soltava o cinto de segurança. Ao ficar livre, deu um encontrão à porta, abrindo-a, e caiu de lado para fora da cabina. Conseguiu colocar uma perna por baixo do corpo ao bater no chão, usando-a para se lançar para longe do helicóptero.

Um berro de surpresa elevou-se da cabina, vindo do guarda solitário — seguido de um sonoro craque.

A terra explodiu junto do seu pé esquerdo.

Ele ignorou a ameaça, confiando que o seu captor o quisesse manter vivo. Correu desesperadamente, em desequilíbrio, com os braços ainda manietados nas costas. As suas pernas tropeçavam na vegetação rasteira e feriam-se nos arbustos. Dirigiu-se para a escuridão fumegante que rodopiava nas vertentes mais baixas da colina.

Aquele caminho conduzia a uma morte certa.

Correu mais depressa naquela direção.

É melhor assim.

Com a atenção de todos centrada na perseguição ao guarda-florestal, Kendall sentiu-se mais confiante.

Vou conseguir… é o que mereço…

Então uma sombra abateu-se sobre ele, impossivelmente rápida, vibrando pela paisagem, iluminada pelas chamas que ardiam no cume da colina. Uma pancada brutal atingiu-o nas costas, atirando-o de bruços contra os arbustos espinhosos. Ele rolou, ficando de costas apoiado nas mãos e nos pés.

Uma forma maciça recortou-se contra as chamas.

Kendall não precisou de ver a cicatriz disforme para reconhecer o chefe da equipa de assalto. O homem agigantou-se sobre ele, levantou um braço e desferiu uma forte pancada com a coronha de aço da espingarda.

Com as mãos ainda presas atrás de si, Kendall não pôde desviar o golpe. A dor explodiu no seu nariz e testa. Ele caiu para trás, os seus membros frouxos e inertes. A escuridão fechou o mundo num nó apertado e agonizante.

Antes que se pudesse mexer, dedos de ferro agarraram-lhe o tornozelo e arrastaram-no de volta ao helicóptero. Espinhos e pedras aguçadas cortaram-lhe as costas. Podiam precisar dele vivo, mas claramente não importava em que estado.

Kendall desmaiou, acordando quando foi despejado para dentro da cabina. Foram gritadas ordens em espanhol. Ele ouviu as palavras apúrate e peligro.

Ele traduziu através do torpor.

Despacha-te e perigo.

O mundo de súbito encheu-se com um rugido surdo, em seguida oscilou. Percebeu que o helicóptero estava a descolar.

Kendall rolou o suficiente para espreitar pela janela. Abaixo dos patins, vultos escuros corriam pela paisagem infernal da cidade-fantasma em chamas. Parecia que o helicóptero abandonava o resto da equipa de assalto.

Mas porquê?

O piloto gesticulava freneticamente para o solo.

Kendall olhou mais de perto. De repente, compreendeu a ameaça. A nuvem de gás neurotóxico começava a elevar-se dos vales circundantes. De início, pensou que o fumo tinha sido levantado pela deslocação de ar do rotor do helicóptero, mas então entendeu.

Corrente ascendente!

A tempestade de fogo na colina estava a empurrar para cima uma coluna de ar quente. À medida que esse ar subia, levava o gás mortal com ele, puxando-o como um véu sobre o cume em chamas.

Não admirava que uma evacuação rápida tivesse sido ordenada. Kendall ficou a olhar fixamente para a forma gigantesca do líder sentado à sua frente, com uma arma sobre os joelhos. Os outros olhavam também pela janela, mas ele olhava para cima, para o céu, como se já tivesse perdido os seus camaradas.

Kendall recusava-se a ser tão insensível.

Procurou em baixo algum sinal do guarda-florestal sitiado. Não tinha esperanças por ele, mas o tipo merecia que testemunhassem por ele ou, pelo menos, merecia uma última oração. Kendall murmurou algumas palavras à medida que o helicóptero se afastava rapidamente — acabando com uma última súplica, olhando para baixo, para aquele mar negro e rodopiante de veneno.

Deixa-me estar certo sobre o gás.

Acima de tudo — nada deve viver.