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28 de abril, 21h33 AMT
Roraima, Brasil

Ele sempre adorara a selva à noite, à medida que o dia esmorecia, abdicando da sua falsa sensação de segurança, deixando para trás apenas a escuridão, as sombras vacilantes e o ruído das criaturas noturnas. Sem o sol, a floresta luminosa transformava-se numa escura selva primordial, onde não havia lugar para o Homem.

Cutter Elwes encontrava-se de pé na varanda sobranceira ao lago do complexo e à floresta tropical. Umas quantas linhas soltas de um poema de O Livro da Selva de Rudyard Kipling vieram-lhe à cabeça. Costumava lê-lo ao seu filho pequeno, apreciando a falta de sentimentalismo de Kipling ao homenagear a beleza da natureza.

Agora Chil, o milhafre-real, traz consigo a noite

Que Mang, o morcego, liberta…

As manadas estão fechadas nos estábulos e cabanas,

Pois soltos até de madrugada estamos nós.

Este é o momento do orgulho e do poder,

Garras e presas e gadanhos.

Oh, ouve o chamamento! — Boa caçada, a todos

Que seguem a Lei da Selva!

Fechou os olhos e escutou o zumbido das melgas e moscas, as descidas a pique ultrassónicas dos morcegos orelha-de-funil, o som gutural de aviso do macaco-aranha. Ouvia a brisa passar por entre as folhas das enormes mafumeiras, o sussurro das asas de um bando de papagaios. Na parte de trás da língua, saboreava o aroma a marga, a folhas em decomposição, misturado com a doçura do jasmim, que florescia apenas à noite.

Algumas palavras vindas da porta aberta atrás dele interromperam-no: «Viens ici, mon mari

Cutter sorriu, sabendo o enorme esforço que Ashuu fazia para tentar falar francês para ele. Virou-se, encostado ao corrimão da varanda, e olhou fixamente para a sua pele nua e morena, a voluptuosidade dos seus seios, a longa cascata de ondas de ébano que lhe caía até à cintura. Ela pertencia à tribo macuxi; o seu nome significava «pequena», mas também era usado para descrever algo tão maravilhoso.

Aproximou-se dela e colocou a palma da sua mão sobre a ligeira saliência na barriga dela, proclamando o seu segundo trimestre.

Maravilhoso, sem dúvida.

Ashuu passou os dedos pelos ombros e pelas costas dele, as pontas dos dedos delineando os contornos irregulares das suas cicatrizes, sabendo o quanto isso o excitava. Ele tinha orgulho nas suas feridas, lembrando-se das garras do leão africano a rasgarem-lhe a carne, marcando-o para sempre. Havia noites em que ainda conseguia sentir aquele bafo fétido, cheio de sangue e carne e fome.

Ela conduziu-o pela mão para dentro do quarto.

Ele virou costas à floresta, às suas criações que ainda estavam a aprender a lei da selva de Kipling por baixo daquele manto de escuridão, sabendo que, em breve, nada o impediria de concretizar o seu objetivo: desencadear uma nova génese para este planeta, uma génese guiada não pela mente de Deus, mas pela mão do Homem.

Apertou os dedos de Ashuu.

Pela minha própria mão, irá começar.

Enquanto seguia a sua mulher para dentro do quarto, a floresta sombria chamava por ele, as velhas cicatrizes ardiam ao longo dos seus ombros e das suas costas, lembrando-lhe para sempre a lei da selva.

Recordou outro excerto de poesia, desta vez de Lord Tennyson, um familiar afastado do lado da sua mãe, do seu poema In Memoriam A.H.H. Falava do princípio fundamental da sobrevivência do mais apto, referia a magnificência e, simultaneamente, a falta de compaixão da evolução, descrevendo o verdadeiro coração da natureza como…

vermelho e selvagem.

Nunca foram escritas palavras mais verdadeiras.

E vou fazer delas a minha própria Lei.