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29 de abril 15h05 GMT
Plataforma de gelo de Brunt, Antártida

— Segurem-se bem! — gritou o piloto.

A pequena aeronave Twin Otter sacudia como um garanhão selvagem enquanto sobrevoava o mar de Weddell coberto de icebergues. Os ventos pioravam à medida que se aproximavam da costa.

— Estes malditos ventos catabáticos estão a dar cabo de mim! — explicou o piloto. — Se estiverem maldispostos, tenho sacos para o enjoo aí atrás, para o caso de quererem vomitar. Não se atrevam a sujar a minha menina.

Gray manteve-se firmemente agarrado às tiras do seu assento. Estava num dos lados da cabina com o cinto de segurança bem apertado. Na parte de trás da aeronave, caixas de material e mantimentos abanavam e rangiam. Não costumava ficar enjoado, mas este voo, que mais parecia uma montanha-russa, estava a testar o seu estômago.

Jason encontrava-se sentado do outro lado da cabina, com a cabeça a abanar para trás e para a frente, meio adormecido, nada afetado pela turbulência. Ao que parecia, já tinha bastante experiência com este continente, frequentemente atingido por tempestades. O miúdo parecia mais afetado pelas vinte e quatro horas de voos longos para a ponta mais a sul do planeta.

Pelo menos, este era o último voo até chegarem ao destino.

Nas primeiras horas daquele dia, antes do amanhecer (que era meio-dia neste lado do mundo, o início do inverno escuro), voaram das ilhas Falkland para a península da Antártida e aterraram num promontório rochoso na ilha Adelaide, onde os ingleses tinham a estação de Rothera. Esse voo fora a bordo de um grande Dash 7 vermelho, com British Antarctic Survey gravado de lado. Em Rothera, mudaram para esta aeronave Twin Otter mais pequena, pintada de forma semelhante, e cruzaram o mar de Weddell em direção à plataforma de gelo de Brunt: um lençol flutuante com cem metros de espessura que envolvia a linha costeira numa região da Antártida Oriental chamada Terra de Coats.

Quando faziam a aproximação à pista, as hélices duplas da aeronave cortaram a corrente de ar polar, os chamados ventos catabáticos, que descia das terras mais altas e se estendia até ao mar.

O piloto era um veterano inglês, que pertencia à força aérea, chamado Barstow, e era evidente que tinha muita experiência no gelo. Continuou a sua explicação e o passeio turístico.

— Sabem que o nome destes ventos vem da palavra grega katabaino, que significa «descer»?

— Vamos esperar que isso não nos aconteça — resmungou uma voz atrás dele.

Joe Kowalski encontrava-se encolhido na parte de trás. O seu corpanzil estava quase dobrado ao meio para conseguir caber no espaço exíguo. Parecia um gorila de cabeça rapada enfiado num cano de esgoto apertado. Mantinha a cabeça baixa para não bater no teto baixo da aeronave… não que já lá não tivesse batido algumas vezes durante a viagem atribulada sobre o mar de Weddell.

Kat enviara-o nesta missão como apoio e músculo adicional, usando outro argumento também. Levem-no daqui. Depois de a sua relação com a Elizabeth Polk ter terminado, não faz mais nada senão andar por aqui aos caídos.

Gray ficava admirado por Kat conseguir perceber a diferença. Kowalski nunca era propriamente um raio de sol, nem mesmo nos seus melhores dias.

Ainda assim, Gray não se queixara. O tipo podia não parecer grande coisa, mas o velho marinheiro tinha os seus talentos, que envolviam quase sempre coisas que faziam boom. Enquanto especialista de demolições da Sigma, já provara ser imprescindível no passado. Além disso, acabava por se gostar da sua atitude rabugenta, como bolor no pão. Assim que se habituavam a ele, era boa pessoa.

Não que eu alguma vez fosse admitir isso em voz alta.

— Conseguem ver a base de Halley além — gritou Barstow para trás. — É aquela grande centopeia azul em cima do gelo.

Gray torceu-se para ver pela janela, enquanto o Twin Otter se inclinava para aterrar.

Diretamente abaixo, os mares negros batiam contra penhascos de gelo azul, as paredes tão altas como arranha-céus de quarenta andares. Embora a plataforma de gelo de Brunt parecesse uma linha costeira recortada, era, na verdade, uma língua de gelo que entrava pelo mar dentro, com cem quilómetros de um lado ao outro, fluindo dos glaciares mais altos da Terra da Rainha Maud para leste. Movia-se a uma distância equivalente a dez campos de futebol a cada ano, destacando-se dos icebergues na ponta, fragmentados pelas águas mais quentes de Weddell ou pelo movimento das marés.

Contudo, o que chamou mais a atenção de Gray foi algo que se encontrava no cume daqueles penhascos. Parecia mesmo uma centopeia. A Estação de Investigação Halley VI fora estabelecida em 2012, utilizando um desenho único de módulos de aço individuais, todos azuis, ligados entre si por passagens fechadas. Cada módulo assentava sobre esquis, semelhantes a andas, com a altura controlada por um sistema hidráulico.

— Esta é a sexta versão da Halley — disse Barstow, pilotando o avião de um lado para o outro por causa do vento. — As outras cinco foram enterradas pela neve, esmagadas e empurradas para dentro de água. É por essa razão que agora está tudo assente em esquis. Podemos rebocar a estação para zonas onde a neve não está alta ou mantê-la afastada do gelo que se separa.

Kowalski tinha o nariz colado à janela.

— Então porque está tão perto daquele desfiladeiro agora? — perguntou ele.

Kowalski estava certo. Os oito módulos interligados, todos alinhados numa fila, encontravam-se a apenas cem metros da beira do desfiladeiro.

— Não vai ficar ali muito mais tempo. Vão deslocar a estação mais para o interior dentro de duas semanas. Um grupo de estudiosos do clima está a desenvolver um estudo de um ano sobre o degelo dos glaciares, monitorizando a velocidade com que o gelo se desprende deste maldito continente. Já estão quase a terminar por aqui e depois vão todos para a outra ponta da Antártida. — O piloto olhou de relance para eles, o que Gray não gostou muito, pois o avião estava a descer a pique para aterrar. — Vão para a plataforma de gelo de Ross. Para a estação McMurdo. Uma das estações dos vossos compadres ianques.

— Mantenha os olhos na estrada — rosnou Kowalski lá de trás, apontando para a frente para dar mais ênfase.

Quando o piloto regressou às suas funções, Gray virou-se para Jason, que se mexera com os solavancos e o barulho, e disse:

— McMurdo? Ainda tens família lá, certo?

— Lá perto — respondeu Jason.

— Quem é que quer morar ali? — comentou Kowalski. — Ficava com as bolas congeladas se tentasse sequer mijar.

Barstow riu-se de forma ruidosa e acrescentou:

— Sobretudo a meio do inverno, amigo. E era provável que também te caísse o zezinho. No inverno, isto vira um mosteiro.

— Mosteiro? — perguntou Kowalski.

— Ele quer dizer que fica um frio do caraças — traduziu Gray.

Jason apontou para baixo.

— Porque é que uma das secções da estação está pintada de vermelho e todas as outras são azuis?

— É o nosso bairro das luzes vermelhas — respondeu Barstow, lutando para manter a aeronave no ar, à medida que o gelo se levantava na sua direção. — É naquela secção que toda a diversão acontece. É lá que comemos, bebemos umas cervejas em raras ocasiões, jogamos snooker e temos televisões para ver filmes.

O Twin Otter aterrou e deslizou pela superfície de gelo que servia de pista de aterragem. Toda a aeronave abanou e vibrou sobre os patins, acabando por parar não muito longe da estação.

Todos saíram. Embora estivessem vestidos com casacos polares grossos, o vento descobria de imediato todos os buraquinhos e pregas soltas. Cada inspiração era como engolir nitrogénio líquido, e o fulgor do Sol que se punha no horizonte refletia na neve e quase cegava. Faltava apenas meia hora para o pôr do sol. Daqui a dois dias, não voltava a nascer ou a pôr-se de todo.

O piloto seguiu-os para fora da aeronave, mas manteve o casaco desapertado e não colocou o capuz sobre a cabeça. Virou o rosto enrugado para o céu azul, como se estivesse a aproveitar os últimos raios de sol.

— Não vai ficar assim tão ameno durante muito tempo — disse Barstow.

Ameno?

Até os dentes de Gray doíam por causa do frio.

— Temos de aproveitar para nos bronzearmos quando podemos — disse Barstow, e levou-os para um lanço de escadas que dava acesso a um dos enormes módulos azuis.

Do solo, o mero tamanho da estação era impressionante. Cada módulo parecia tão grande como uma casa de dois andares e era elevado quinze metros acima do gelo coberto de neve por quatro enormes esquis hidráulicos. Um trator de dimensões normais poderia passar facilmente por baixo da estação, o que era provável que acontecesse de vez em quando, visto que havia um John Deere estacionado nas imediações.

— Deve ser como rebocam os módulos — disse Jason, observando a peça de maquinaria americana. Depois olhou para a estação, encrustada no gelo. — Isto tudo parece saído da Guerra das Estrelas.

— Exato — concordou Kowalski. — Tal como em Hoth, o planeta gelado.

Gray e Jason olharam para ele.

O ar carrancudo de Kowalski acentuou-se ainda mais e disse:

— O que é? Eu vejo filmes.

— Por aqui, meus senhores — disse Barstow, fazendo-lhes sinal para subirem as escadas.

Enquanto subiam ruidosamente as escadas, sacudindo a neve das botas, uma porta abriu-se no cimo e uma mulher com uma parka vermelha desabotoada saiu para os receber. O seu longo cabelo castanho estava penteado para trás e afastado do rosto, preso num eficiente, ainda que feminino, rabo de cavalo, por causa do vento. O seu físico era esguio e musculado, as suas faces queimadas pelo vento e bronzeadas. Aqui estava uma mulher que se recusava a ficar fechada dentro da estação.

— Sejam bem-vindos ao fim do mundo — cumprimentou ela. — Eu sou a Karen Von Der Bruegge.

Gray dirigiu-se a ela e apertou-lhe a mão.

— Obrigado por nos receber, doutora Von Der Bruegge.

— Trate-me apenas por Karen. Não somos nada formais por aqui.

Gray fora informado sobre esta mulher, que era simultaneamente a cientista responsável e a comandante da base. Com apenas quarenta e dois anos, já era muito conceituada enquanto bióloga no Ártico, tendo sido formada em Cambridge. No dossiê da missão, Gray vira as fotografias que Karen tirara aos ursos polares no Polo Norte. Agora, encontrava-se no lado oposto do globo a estudar colónias de pinguins-imperador, que faziam os seus ninhos aqui.

— Entrem. Vamos instalar-vos. — Karen virou-se e levou-os para dentro. — Este é o módulo de comando, onde vão encontrar a lavandaria, o posto de comunicações, o gabinete médico e o meu escritório. Mas acho que vão ficar mais à vontade na nossa sala de convívio.

Gray olhou em redor enquanto Karen lhes mostrava o seu território, reparando no gabinete médico com uma única sala de operações. Parou uns instantes junto à porta do posto de comunicações.

— Doutora Von Der Bruegge… Karen, tenho estado a tentar contactar os Estados Unidos desde que chegámos à estação de Rothera, em Adelaide, mas não consigo obter uma boa receção.

O sobrolho dela franziu.

— O seu telefone por satélite… deve estar a usar uma conexão geoestacionária.

— Sim.

— Esses tendem a funcionar mal quando se atravessa setenta graus para sul da linha do equador. Basicamente, em toda a Antártida. Nós usamos um sistema de satélite LEO por aqui. Órbita terrestre baixa. — Karen apontou para a sala. — Esteja à vontade para fazer uma chamada. Podemos dar-lhe alguma privacidade. No entanto, devo avisá-lo de que nos encontramos no meio de uma tempestade solar que está a afetar os nossos sistemas também. É uma chatice, mas torna a aurora austral, as nossas luzes do Sul, bastante espetacular.

Gray entrou na sala.

— Obrigado.

Karen virou-se para os outros.

— Vou levar-vos à nossa área de convívio. Aposto que vos deve apetecer um café quente e comida agora.

— Nunca recuso uma refeição grátis — disse Kowalski num tom bastante mais animado.

Enquanto saíam por uma portinhola para uma das pontes cobertas que fazia a ligação entre os módulos, Gray fechou a porta da sala de comunicações e dirigiu-se ao telefone por satélite. Marcou o número da sede de comando da Sigma e ouviu os ruídos que a linha fazia a ser conectada.

Kat atendeu de imediato.

— Já chegaram à estação Halley? — perguntou ela, sem demora.

— É provável que tenha ficado sem a massa que preenchia alguns dos meus molares com tanto abanão e sacudidela, mas chegámos sãos e salvos. Ainda temos de esperar pela pessoa que o doutor Harrington enviou. Só depois podemos começar a obter algumas respostas.

— Espero que seja muito em breve. As notícias que chegaram da Califórnia nas últimas duas horas são cada vez piores. Uma tempestade aproxima-se da área, com a ameaça de chuvas torrenciais e inundações repentinas.

Gray compreendia o perigo. Qualquer contenção naquela zona de quarentena seria impossível.

Enquanto Kat continuava, algumas das suas palavras perdiam-se no meio do barulho da estática e falhas de rede.

— Também tenho de te dizer que o irmão da Lisa está com… sinais de infeção. Teve um ataque há vinte minutos. Ainda estamos a tentar perceber se é um efeito da sua exposição ao agente ou uma complicação relacionada com a cirurgia. De qualquer maneira, precisamos de… controlar esta situação o mais rapidamente possível antes que tudo piore.

— Como está a Lisa?

— Não para de trabalhar. Motivada pela esperança de encontrar uma forma de ajudar o irmão. Ainda assim, o Painter está preocupado com ela. A única boa notícia é que somos capazes de ter uma pista sobre o sabotador da base. Estamos a analisá-la neste momento.

— Ótimo, eu também vou tentar acelerar as coisas por aqui. Mas ainda temos de esperar mais uma hora até o contacto do professor chegar para nos levar até onde ele se encontra.

Onde quer que isso seja.

A impaciência de Kat fez-se sentir do outro lado do mundo.

— Se ao menos ele não fosse tão paranoico…

Gray compreendia a frustração de Kat, mas tinha outra preocupação em mente: E se Harrington tivesse razões para ser tão paranoico?

15h32

De volta a casa…

Com o Sol quase a pôr-se no horizonte, Jason aproveitou a vista. Estava sentado a uma mesa em frente de um conjunto de janelas de vidro triplo, com a altura de dois andares, de onde se via a extensão gelada que se estendia até ao mar de Weddell. Enormes pedaços de gelo salpicavam as águas azul-escuras, esculpidos pelo vento e pelas ondas em formas etéreas altíssimas, cristas, arcos e velas recortadas de um branco-azulado.

Jason juntara-se à Sigma para fazer o bem, para manter a nação segura, mas também porque esperava ter a oportunidade de ver mundo. Em vez disso, passava a maior parte do seu tempo enterrado na sala de comando subterrânea da Sigma, e agora, na sua primeira verdadeira missão no terreno…

Mandam-me para casa.

Passara a maior parte da sua infância na Antártida com a mãe e o padrasto, que ainda trabalhava perto da estação McMurdo, do outro lado do continente.

E agora dei a volta completa.

Sorveu tristemente o chá quente, ouvindo a conversa de uns quantos membros do pessoal da base que partilhavam aquela área de convívio. O módulo vermelho estava dividido em dois níveis. A cantina ficava na parte de baixo, e uma escada em caracol subia para um espaço aberto que continha uma pequena biblioteca, alguns computadores e uma área de reuniões. Havia até uma parede de escalada que se estendia ao longo dos dois andares.

Imediatamente atrás dele, três homens jogavam pool, falando o que parecia ser norueguês. Apesar de a estação pertencer ao Reino Unido, tinha um grupo internacional de cientistas ao seu serviço. Segundo a doutora Von Der Bruegge, a estação albergava normalmente entre cinquenta a sessenta cientistas, mas estavam a diminuir o número à medida que os meses escuros de inverno se aproximavam. O número de cientistas tinha baixado para os vinte, e apenas meia dúzia ou menos iriam permanecer na estação durante o período que seria, finalmente, de permanente escuridão.

Devido a este período de transição, a base vibrava de atividade, dentro e fora. Para lá daquelas janelas, dois Sno-Cats arrastavam paletes de caixas para fora da estação. Contudo, o mais impressionante era ver o trator John Deere verde a rebocar pelo gelo um dos módulos azuis soltos. Desapareceu como um fantasma no nevoeiro junto à plataforma, desafiando os ventos mais fortes à medida que o pôr do sol se aproximava.

A comandante informara-os que ao longo da semana seguinte, a trabalhar incessantemente, a estação seria desmontada e arrastada mais para o interior do território, onde seria de novo montada para operar nos meses de inverno.

No céu, outro Twin Otter sobrevoou baixinho a plataforma de gelo, refletindo os últimos raios de sol e parecendo que ia aterrar para ali passar a noite. Em vez do vermelho-cereja do esquadrão do British Antarctic Survey, este estava pintado de branco. Era uma pintura bastante invulgar para uma região polar, onde se preferiam cores primárias berrantes para se distinguirem da neve e do gelo.

Talvez seja o contacto do doutor Harrington.

Jason quase se levantou, pronto para avisar Gray. Do outro lado, Kowalski estava no bufete, empilhando um segundo prato de comida, sendo a maior parte fatias de tarte, ao que parecia.

Em seguida, a aeronave inclinou-se para cima, desviando-se da pista de aterragem sem neve. Parecia que ia embora. Não deve ser o contacto, talvez um turista. De qualquer forma, era um falso alarme.

Jason voltou a recostar-se na cadeira.

Observou a aeronave a inclinar-se sobre a ponta de uma das asas. Uma porta abriu-se na fuselagem. Viu movimento no seu interior, seguindo-se a saída suspeita de um par de longos tubos pretos.

As extremidades dos tubos cuspiam fogo, deixando um rasto de fumo.

Lança-granadas-foguete.

A primeira explosão destruiu o Twin Otter que se encontrava parado no gelo. Em seguida, a aeronave dirigiu-se à estação.

Jason sentiu alguém agarrar-lhe o braço.

Kowalski puxou-o da cadeira.

— Está na hora de irmos embora, miúdo.

15h49

Gray correu agachado pela ponte que ligava o módulo de comando à área de convívio. As explosões ainda ecoavam na sua cabeça. Acabava de sair da sala de comunicações depois de ter terminado a conversa telefónica com Kat quando a primeira granada-foguete rebentou. Através das janelas da ponte, observou os destroços do Twin Otter a arder.

Mais à frente, outra figura se levantou na passagem.

Gray correu para ela.

— Karen, está bem?

A comandante da base parecia desorientada, momentaneamente aturdida. Em seguida, os seus olhos azuis focaram, ficando furiosa em vez de assustada.

— Mas que raio foi isto? — gritou ela.

— Estamos a ser atacados.

Karen empurrou Gray para passar.

— Temos de enviar um sinal de alerta.

Gray apanhou-a pela cintura, parando-a. Ele ouvira o rugir dos motores da aeronave ficar mais alto. Arrastou-a para a área de convívio.

— Não temos tempo — avisou ele.

— Mas…

— Confie em mim.

Gray não tinha tempo para explicar, por isso apressou-a até ao final da ponte, quase que levando Karen em braços. Quando chegaram à porta, esta abriu-se à sua frente. Kowalski apareceu, enchendo por completo a entrada. Parecia que também trazia Jason com ele.

— Voltem para dentro! — gritou Gray.

Quando Kowalski saiu do caminho, Gray entrou rapidamente e empurrou Karen para junto dos seus colegas. Bateu a porta atrás dele, no momento em que mais duas explosões fizeram tremer o módulo inteiro. Objetos de vidro caíram das prateleiras na área de refeições e uma série de painéis triangulares das janelas estilhaçaram-se em mil bocados com a onda de choque.

Gray espreitou pela pequena janela na porta. A parte mais afastada da ponte que unia os módulos fora destruída. Uma cratera fumegava na lateral do módulo de comando.

Mesmo onde ficava a sala de comunicações.

Karen voltara para junto de Gray, espreitando por cima do ombro dele.

— Estão a isolar-nos — explicou Gray. — Primeiro, eliminaram o avião e com ele a única hipótese de sairmos do gelo. Depois, quando ouvi o avião dirigir-se para aqui, sabia que eles iam atacar o centro de comunicações a seguir, para cortar o nosso contacto com o mundo exterior.

— E quem são eles?

A imagem da equipa que atacara a sede da DARPA surgiu na cabeça de Gray. O Twin Otter no céu era branco, uma cor comum para operações de combate no gelo. Um ataque terrestre estava iminente.

— Têm algumas armas? — perguntou Gray.

Karen virou-se na direção oposta e respondeu:

— No último módulo da estação. Mas temos poucas.

Gray preferia poucas a nenhumas.

Por esta altura, já os outros se tinham juntado a eles, incluindo Barstow, juntamente com uma mão-cheia de investigadores com ar assustado.

— Quantos mais estão dentro da estação? — perguntou Gray, conduzindo-os pela sala de jantar.

Karen observou os que estavam com eles, claramente fazendo uma contagem de cabeças.

— Nesta altura do ano, não mais de cinco ou seis, sem contar com a equipa que está lá fora a trabalhar.

Gray chegou ao outro lado e abriu a porta para a próxima ponte.

— Continuem a andar! Módulo a módulo! Até chegarem ao último! — disse Gray, acenando para todos passarem, depois correu ao lado de Karen. — A estação tem um sistema de intercomunicação, uma forma de enviar um alerta geral?

Karen acenou com a cabeça.

— Claro que sim. E também comunica com quem quer que esteja lá fora a trabalhar no gelo.

— Ótimo. Então, assim que chegarmos ao último módulo, ordene uma evacuação.

Karen olhou para ele, preocupada.

— Com o Sol a pôr-se, a temperatura lá fora vai baixar drasticamente.

— Não temos escolha.

Lá fora, reinava o silêncio. Não houve mais nenhuma explosão. Gray imaginou o Twin Otter a voar em círculos para aterrar. Não tinha dúvidas de que uma força de assalto desembarcaria em breve. Sem quaisquer meios de comunicação, não podiam pedir ajuda, enquanto os assaltantes teriam a noite toda para vasculhar a base ou, simplesmente, colocar explosivos e rebentar com cada módulo.

Enquanto Gray formulava um plano, o seu grupo em fuga chegou ao módulo seguinte. Eram os quartos de dormir da estação, um módulo composto por várias salas pequenas pintadas de cores vivas. Recolheram outro membro do pessoal da estação lá: um jovem franzino de óculos com um ar assustado. Continuaram em frente, passando por mais dois módulos de investigação. Ambos estavam arrumados e fechados para o período do inverno.

Por fim, chegaram à última carruagem do comboio gelado. Era, claramente, uma área de arrumações.

— Onde estão as armas? — perguntou Gray.

— Junto à porta das traseiras — disse Karen, e atirou um molho de chaves a Barstow. — Mostre-lhes.

Enquanto Barstow obedecia, Karen aproximou-se de um intercomunicador que se encontrava na parede, introduzindo rapidamente o código. Gray seguiu Barstow, enquanto Karen fazia soar um alarme geral, avisando outros membros de pessoal da estação que ainda estivessem no interior para evacuar. Para os que se encontravam no exterior, Karen ordenou que se mantivessem afastados.

Barstow levou-os até um cacifo nas traseiras e usou a chave de Karen para abrir as portas duplas. Gray olhou fixamente para as filas de espingardas e pistolas, tentando não mostrar a sua desilusão face à quantidade escassa de armas, mas também que tipo de ameaça seria de esperar numa base destas? Não havia predadores terrestres por aqui, nada mais que pinguins e algumas focas. As poucas espingardas deviam ser para lidar com alguns visitantes mais indisciplinados que pudessem aparecer na estação, e não com um ataque desta magnitude.

Gray distribuiu as seis pistolas Glock 17 e colocou ao ombro uma das três espingardas automáticas. Era uma L86A2 Light Support Weapon. Passou outra a Kowalski e a última a Barstow. Ao seu lado, Jason carregou a sua Glock com perícia.

Gray aproximou-se da janela da última porta. No exterior, a noite caíra sobre o dia curto, cobrindo-os com um manto de escuridão. Para lá da portinhola, uma pequena plataforma conduzia a uma escada que descia para o gelo.

— Kowalski e Barstow, assim que chegarmos ao chão, vamos tentar evitar que o avião aterre. Se isso falhar, passamos para uma posição defensiva. — Gray virou-se para Jason. — Vocês levam os outros. Afastem-se o mais possível da estação.

O miúdo acenou com a cabeça. Os seus olhos pareciam alerta, vidrados por um medo saudável, mas prontos para a ação.

Karen regressou, trazendo o braço cheio de rádios.

— Também trouxe estes.

Gray acenou com a cabeça, aprovando a sua iniciativa, depois tirou um e colocou-o no bolso da parka.

— Distribua os restantes.

Assim que ficaram todos prontos, Gray liderou o caminho. Abriu a portinhola para a noite escura e gelada. Quando a primeira rajada de frio lhe bateu no rosto, duvidou por instantes do seu plano. A morte era certa, tanto lá fora no gelo, como dentro da estação. Tinham de encontrar um abrigo e rapidamente… algures longe dali.

Mas onde?

Ouviu-se outra explosão, fazendo estremecer a estação. As luzes piscaram uma vez e depois apagaram-se.

Karen falou atrás dele.

— Devem ter rebentado com os geradores.

Gray franziu o sobrolho. Será que o inimigo ouvira o alerta dado por Karen? Teria despoletado este novo ataque? Ou seria esta a salva final da equipa de assalto para assustar e desconcertar os alvos antes de aterrar?

O trabalhar contínuo do Twin Otter lembrou Gray que quaisquer dúvidas ou hesitações iriam apenas piorar as suas hipóteses lá fora. Sabendo isto, apressou-se a sair para o frio, colocou as luvas e agarrou-se à escada. Deslizou a maior parte das escadas e fez sinal para os outros o seguirem.

Com a parte de trás da arma assente no ombro, usou a mira para seguir as luzes do Twin Otter no céu noturno. Fez um voo picado sobre a outra ponta da estação, Depois, um clarão surgiu da aeronave. Outra explosão ecoou pelo gelo. Uma pequena ilha de luz ficou às escuras lá fora.

— Acho que era um dos nossos Sno-Cats — disse Karen, a sua voz evidenciando o seu sentimento de culpa. — Devia tê-los avisado para apagarem as luzes.

Gray reparou noutro Sno-Cat estacionado no gelo do lado direito da estação, juntamente com três Ski-Doo.

— Consegue pôr aqueles três veículos de neve a funcionar rapidamente? Se mantivermos as luzes apagadas, somos capazes de conseguir cobrir mais terreno do que a pé.

Karen acenou com a cabeça.

— E se o inimigo tiver visão noturna? — perguntou Jason, juntando-se a eles.

— Se tiverem, dão por nós mesmo que estejamos a pé. — Gray apontou para o nevoeiro denso que se instalava na plataforma gelada em redor da estação. — Assim que se puserem em movimento, avancem o mais rapidamente possível aproveitando a cobertura do nevoeiro. É a vossa melhor hipótese.

Jason olhou para o nevoeiro, pouco convencido.

Na esperança de melhorar as suas hipóteses, Gray virou-se para Kowalski e Barstow.

— Vamos tentar dar-lhes o máximo de tempo possível. — Gray fez sinal para o lado oposto dos veículos de neve. — Se dispararmos dali, podemos manter a atenção do inimigo em nós.

Kowalski encolheu os ombros e disse:

— Bem, acho que é melhor do que ficarmos aqui a gelar o rabo.

Barstow também acenou com a cabeça.

Com um plano delineado, Gray mandou separar os dois grupos.

Jason olhou de relance por cima do ombro enquanto conduzia o seu grupo para junto dos veículos de neve.

— Um dos Ski-Doo tem três lugares — disse Jason, olhando para a equipa de Gray. — Vou deixá-lo ligado… caso precisem.

Gray concordou com um aceno de cabeça, impressionado pela iniciativa do miúdo.

Com o assunto resolvido, Gray conduziu Kowalski e Barstow para baixo do último módulo da estação. Ouviu os motores dos veículos de neve a ligar do outro lado, ao início frios e a engasgar, depois com mais força.

Gray observou o grupo a afastar-se lentamente, desaparecendo no nevoeiro, um a seguir ao outro.

Satisfeito, Gray saiu de baixo do módulo, com a arma em riste. Seguiu as luzes do Twin Otter no céu, enquanto este virava e vinha na sua direção. A aeronave parecia estar a subir, como se pressentisse a presença de francoatiradores escondidos em terra.

A singularidade das suas manobras preocupava Gray, que ficou extremamente desconfiado.

Porque não teria ainda feito qualquer tentativa para aterrar?

A aeronave continuou a sobrevoar num círculo apertado, como um falcão sobre um campo. Até agora, o ataque parecia ter como único objetivo isolar a base e manter os seus ocupantes encurralados.

Mas com que finalidade? De que estão à espera?

A resposta chegou uns segundos depois.

Uma enorme explosão, cem vezes mais forte que qualquer uma das anteriormente provocadas pelas granadas-foguete, fez o mundo estremecer. Da ponta mais longínqua da estação, um gêiser de gelo e fogo irrompeu bem alto pela noite dentro. Depois ocorreu outra explosão, muito mais perto de onde se encontravam, seguida de mais uma.

Gray e os outros caíram de joelhos com a força da onda de choque. Gray imaginou uma fila de munições enterradas no gelo a grande profundidade. A linha de explosivos devia ter sido colocada há muito tempo.

Uma série de explosões continuou na outra ponta da estação, de um lado ao outro.

Gray olhou fixamente para lá daquela linha, em direção ao nevoeiro denso.

Ao menos os outros fugiram a tempo…

Enquanto Gray observava, o gelo abria fendas em direção ao exterior da plataforma, as quais ligavam as novas crateras entre si e continuavam a expandir-se pelo solo. Imaginou o gelo a quebrar em baixo também, separando em pedaços a plataforma de gelo flutuante.

De repente, Gray percebeu o plano do inimigo.

Sentiu um nó no estômago.

A confirmar o seu maior receio, surgiu um derradeiro e ruidoso craque, que parecia o som da crosta terrestre a estilhaçar-se por baixo deles.

Lentamente, o gelo moveu-se por baixo dos seus joelhos, separando-se da nova fratura e inclinando-se em direção ao mar escuro. As bombas enterradas tinham cumprido a sua função de desprender um pedaço da plataforma de gelo de Brunt, formando um novo icebergue… um icebergue que continha a estação Halley VI em cima.

A estação inteira estremeceu e começou a deslizar lentamente pelo gelo, a resvalar dos seus enormes esquis.

Gray olhou para cima, incrédulo.

Kowalski também observava o cenário.

— Parece que, afinal, não me vou reconciliar com a minha ex.