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29 de abril 16h04 GMT
Plataforma de gelo de Brunt, Antártida

Enquanto o gelo rangia e partia por baixo dos seus pés, Gray estava pasmado com a visão da enorme estação Halley a passar-lhe por cima da cabeça. Os seus esquis gigantescos deslizavam pela superfície inclinada de gelo, prestes a iniciar uma descida em direção ao gélido mar de Weddell.

Do lado mais distante da estação, a linha por onde o gelo quebrara com a explosão ainda deitava fumo e vapor devido à explosão das munições enterradas. O pedaço de gelo que segurava a estação continuava a separar-se da superfície mais extensa da plataforma de Brunt.

Gray levantou-se e puxou o piloto inglês para cima.

— Mexam-se! Os dois!

Kowalski pôs-se de pé, cambaleante, olhando em volta.

— Para onde?

— Sigam-me!

Gray começou a andar, cravando as botas no gelo coberto de neve, escalando o declive cada vez mais íngreme, enquanto a estação deslizava atrás dele. A superfície era suficientemente áspera para obter tração, mas escorregou algumas vezes, caindo com uma mão ou um joelho no gelo. Utilizando o cabo de aço da sua espingarda como muleta, tentava mover-se mais rapidamente. Tinham apenas alguns segundos para agir. Caminhou através do nevoeiro de vapor e fumo que se erguia da zona da explosão. A visibilidade passou a ser muito reduzida.

Gray rezou para que o seu sentido de orientação os guiasse.

Depois de alguns passos, Gray soltou um suspiro de alívio… ainda que pequeno.

A forma de um Ski-Doo surgiu à sua frente. O rugir do seu motor tornava-se cada vez mais alto à medida que Gray cambaleava na sua direção.

Graças a Deus que Jason tivera a iniciativa de o deixar a aquecer.

Gray aproximou-se do Ski-Doo de três lugares e passou a perna por cima do assento, mas, antes de se conseguir instalar, Barstow fez-lhe sinal para ir para trás.

— Mas afinal quem é o perito aqui? Eu conduzo. Tu e o teu amigo vão atrás.

Gray não discutiu, presumindo que o piloto tivesse mais experiência que ele em veículos de neve. Quando Kowalski se sentou atrás dele, Gray apontou por cima do nariz do Ski-Doo, na direção da fratura de gelo à sua frente, cada vez maior.

— Vamos ter de…

— Já sei — disse Barstow e acelerou a fundo.

Neve e gelo pulverizado saíram disparados das lagartas traseiras, e o Ski-Doo foi projetado para a frente. A sua única esperança era tentar saltar por cima do desfiladeiro e chegar ao gelo sólido do outro lado. A probabilidade de serem bem-sucedidos era pouca, sobretudo com o veículo tão pesado, mas ficar ali significava morte certa.

Gray baixou-se ainda mais.

Kowalski praguejou bem alto.

Em seguida, Barstow curvou abruptamente, apanhando Gray de surpresa e quase o atirando para fora do Ski-Doo. A traseira do veículo derrapou até ter o nariz virado para o lado oposto à zona da fratura. O motor rugiu mais alto e Barstow desceu a grande velocidade o declive. Passaram pelo nevoeiro quente e húmido e surgiram do outro lado. Agora, parecia que estavam a perseguir a estação que continuava a deslizar.

Gray gritou:

— O que estás a…

— Deixa-me conduzir!

Barstow inclinou-se sobre o guiador, tentando obter mais velocidade. Gray não tinha outra escolha, senão seguir o seu exemplo.

Mas não estavam sozinhos ali.

O único aviso foi o piscar de luzes de navegação no céu escuro. O Twin Otter do inimigo sobrevoou-os a grande velocidade e, em seguida, o gelo explodiu à sua frente com o rebentamento de uma granada-foguete.

— Raios partam! — gritou Barstow. — Segurem-se bem, cavalheiros!

O piloto contornou a cratera fumegante e acelerou em direção ao seu único esconderijo. Fez outra curva rápida, levantando uma esteira de gelo e neve, depois derrapou de lado por baixo da estação deslizante, passando entre dois dos quatro enormes esquis hidráulicos que elevavam o módulo.

Kowalski resmungou:

— Avisem-me quando acabar!

Ainda estava longe disso.

Barstow perdera velocidade com a sua manobra precipitada, mas agora descia ao lado da Halley VI, mantendo-os estrategicamente escondidos da linha de visão do Twin Otter. Com a estação ainda a deslizar pela plataforma inclinada, o Ski-Doo voltou a ganhar alguma velocidade.

Por esta altura, Gray já percebera a manobra anterior de Barstow, porque dera uma volta de 180 graus, virando-os na direção contrária. Não era possível que o Ski-Doo a subir a encosta ganhasse velocidade suficiente para saltar por cima do desfiladeiro cada vez maior, sobretudo com tanto peso. No entanto, a descer, Barstow conseguia ganhar impulso, transformando o Ski-Doo num foguete impelido por lagartas.

Só havia um problema com este plano…

Estavam a ficar sem gelo.

À frente deles, o último módulo desta centopeia deslizante chegou à beira do precipício e caiu, libertando-se do resto da estação e mergulhando nos mares escuros em baixo.

— Está na hora de irmos embora, rapazes!

Barstow virou, deslizando por entre dois enormes esquis, e voltaram para campo aberto. Começaram a subir ligeiramente a encosta, fugindo da estação, enquanto esta caía, pedaço a pedaço, no mar de Weddell.

A pequena secção de gelo deslocado que tinham pela frente oscilava num ângulo inclinado e afastava-se da extensão plana da enorme plataforma de gelo de Brunt. Barstow percorreu a grande velocidade o bloco de gelo inclinado, apontando para o local onde o pedaço de gelo se separava da plataforma maior e tentando escolher um sítio onde a fenda fosse menor.

Acelerou a fundo.

Contudo, um falcão teimoso não estava disposto a perder a sua presa. O Twin Otter irrompeu por entre o vapor fumegante à frente deles, voando baixo, com as suas hélices a cortarem o nevoeiro. A aeronave virou e inclinou-se sobre uma asa, expondo a parte lateral da cabina, assim como um homem com um lança-granadas-foguete sobre o ombro.

O inimigo estava determinado a não correr quaisquer riscos.

O próximo disparo seria quase à queima-roupa.

Gray torceu-se no seu assento, empurrando Kowalski para trás com os cotovelos. Libertou a sua espingarda e trouxe-a para a frente, segurando-a com uma só mão, o braço completamente esticado. Puxou o gatilho com força, colocando-a em modo automático, disparando as trinta munições em apenas três segundos. Concentrou a sua primeira rajada na abertura lateral escura da aeronave. Com um grito, o atirador caiu da portinhola aberta. Gray descarregou as restantes munições na parte de baixo do avião enquanto este os sobrevoava baixinho.

— Segurem-se! — gritou Barstow.

Kowalski empurrou Gray para baixo no seu assento e inclinou-se por cima dele.

O Ski-Doo chegou à última porção de gelo e levantou voo.

Sobrevoou bem alto a ponta saliente do gelo partido, rodopiando em pleno voo. Gray conseguiu ver nitidamente a fenda debaixo deles por alguns instantes. Em seguida, o veículo desceu a pique e embateu no chão do outro lado, aterrando sobre uma das lagartas.

O veículo de neve deu um forte solavanco e virou, projetando-os a todos para longe.

Gray rolou pelo gelo e perdeu a arma, encolhendo-se numa bola ao cair. Por fim, conseguiu parar. O Ski-Doo deu mais umas quantas voltas até parar. Os outros dois homens levantaram-se do gelo.

Kowalski apalpou-se, como que a verificar se ainda estava vivo, e disse:

— Não controlei muito bem esta aterragem.

Barstow juntou-se a eles, agarrando um braço e com o rosto ensanguentado. Olhou de relance para os destroços do Ski-Doo e comentou:

— Costumam dizer que toda a aterragem é bem-sucedida se conseguirmos sobreviver.

— Acho que se referiam a aterragens de aviões — admoestou Kowalski — e não de malditos veículos de neve.

O piloto encolheu o ombro que não estava ferido.

— Chegámos a voar por alguns instantes. Por isso, também conta.

Gray ignorou-os e procurou o Twin-Otter no céu. Viu um feixe de luz no meio da escuridão desaparecer para lá da beira do desfiladeiro, enquanto o canto que se separara da plataforma de Brunt deslizava para o mar. Não tinha a certeza se danificara o Twin Otter o suficiente para o fazer despenhar ou se o atingira sem gravidade e este apenas retirara. De qualquer forma, o inimigo podia ter pedido reforços.

Gray não queria ficar ali para descobrir.

Virou-se para o Ski-Doo.

Barstow deve ter lido a expressão no seu rosto e disse:

— Lamento, amigo, está destruído. Parece que agora vamos a pé.

Gray cobriu a cabeça com o capuz da parka, já sentindo frio.

Kowalski deu voz à pergunta que o atormentava:

— E agora para onde vamos?

16h18

— Desapareceu… desapareceu tudo.

Jason ouviu o desespero na voz da comandante da estação, ou melhor, ex-comandante da estação. Ele e Karen encontravam-se de pé em cima de uma pequena colina de gelo. Era suficientemente alta para conseguirem ver para além do nevoeiro gelado até à costa. A secção partida da ponta da plataforma continuava enevoada, mas não havia como negar que faltava algo na paisagem distante.

A Estação de Investigação Halley VI desaparecera.

As explosões iniciais ainda ecoavam na cabeça de Jason. Enquanto fugiam num dos Ski-Doo, observara aquela linha costeira a desfazer-se por entre clarões de fogo e explosões violentas. A onda de choque provocada pelas detonações percorrera o gelo até onde ele estava, a um quilómetro de distância. Demorara mais alguns minutos agonizantes até encontrar um ponto alto para ver bem o resultado.

Agora sabiam.

desaparecera tudo.

Karen respirou fundo, na tentativa de se livrar do choque inicial.

— Devíamos continuar — avisou ela, observando o denso nevoeiro polar.

A temperatura parecia estar a descer vários graus a cada minuto que passava.

Ou talvez seja a hipotermia a instalar-se, pensou Jason.

A trinta metros dali, encontrava-se o Sno-Cat parado no meio de uma série de veículos de neve. Tinham salvado uma dúzia de funcionários da estação, mas quanto tempo aguentariam ficar ali? Apanhados de surpresa, a maioria estava mal agasalhada para as temperaturas gélidas e os veículos de neve só os levariam até certo ponto com apenas um tanque de gasolina. Nem o aquecimento do Sno-Cat funcionava. Fora essa a razão por que o veículo não estava a ser utilizado na altura do ataque.

— Precisamos de encontrar um local para nos abrigarmos — disse Karen —, mas ainda estamos a centenas de quilómetros de qualquer base ou acampamento. A nossa melhor opção é ficar por aqui e esperar que alguém tenha ouvido as explosões e venha investigar. Contudo, pode demorar vários dias.

— Quanto tempo conseguimos aguentar aqui sozinhos?

Karen bufou.

— Temos sorte se sobrevivermos esta noite. O sol só nasce daqui a dezoito horas. E amanhã o dia terá apenas duas horas.

Jason ponderou as hipóteses.

— Se alguém nos vier procurar, terá dificuldade em encontrar-nos no meio da escuridão.

— Talvez pudéssemos arranjar uma forma de sinalizar a nossa posição. Podemos retirar um pouco de gasolina de um destes veículos e pegar-lhe fogo quando ouvirmos um avião aproximar-se.

Jason encontrou um problema bastante óbvio neste plano.

— E se não forem as equipas de salvamento a vir à nossa procura primeiro?

Karen cruzou os braços.

— Tens razão — murmurou ela. — Então, o que é que fazemos?

— Acho que sei para onde podemos ir.

Karen arqueou as sobrancelhas, mas, antes de o conseguir interrogar, ouviu-se um guincho vindo do interior do seu casaco. Karen foi visivelmente surpreendida pelo ruído súbito. Abriu o fecho da sua parka e retirou um rádio portátil, um dos que distribuíra antes de saírem da estação.

… ouvir-nos? Alguém nos ouve?

— É o Gray! — disse Jason com dificuldade em acreditar nessa impossibilidade.

Karen passou o rádio a Jason.

Jason carregou no botão e disse:

— Comandante Pierce?

Jason, onde estás? Estás em segurança?

Jason fez os possíveis por explicar a sua situação, enquanto ouvia o relato de Gray sobre a sua fuga do icebergue de gelo que se separara. Contudo, a equipa de Gray continuava encurralada e, tal como Jason, Gray receava que o inimigo regressasse em breve.

— Posso pegar em dois Ski-Doo e ir buscá-los — ofereceu-se Karen.

Jason acenou com a cabeça.

Karen virou-se para ele, com um ar desconfiado.

— Sabes mesmo onde nos podemos abrigar?

Jason olhou fixamente para o gelo escuro e vazio.

Espero que sim.

17h22

Gray tremia dentro do seu casaco e inclinou-se mais sobre o guiador do seu Ski-Doo. Tinha um cachecol grosso de lã congelado sobre a parte inferior do seu rosto. Os seus dedos enluvados pareciam moldados aos punhos do guiador pelo frio.

Semicerrou os olhos doridos por causa do vento, fixos no brilho do farol dianteiro que iluminava tenuemente o nevoeiro rodopiante. Não tirava os olhos do veículo de neve que seguia à sua frente, conduzido por Karen Von Der Bruegge. A comandante da estação chegara há uma hora com um segundo Ski-Doo a reboque. Transportava agora no seu veículo Barstow, que se encontrava ferido, e Kowalski seguia encolhido atrás de Gray.

Gray tinha de confiar que Karen sabia para onde ia. Parecia estar a seguir as marcas das lagartas deixadas pelo grupo liderado por Jason. O miúdo levara os outros para o lado da plataforma de gelo de Brunt mais distante do mar de Weddell, na esperança de se afastar o suficiente para o inimigo não os encontrar.

Se tivermos sorte, eles pensam que morremos todos.

O Ski-Doo à sua frente abrandou de repente. Distraído com os seus pensamentos, Gray quase embateu na sua traseira, mas travou a tempo de evitar uma colisão.

A cerca de dez metros, a razão por que o Ski-Doo abrandara repentinamente surgiu.

Uma enorme silhueta indefinida encheu o mundo à sua frente. Parecia uma montanha de cume plano a erguer-se da planície gelada. Quando se aproximaram, começaram a surgir pormenores: os esquis gigantescos, o volumoso módulo azul e o trator John Deere abandonado.

Era uma secção isolada da estação destruída.

Anteriormente, Jason reparara neste módulo a ser rebocado para dentro do nevoeiro, pouco tempo antes de o ataque começar. Tivera esperança de que o inimigo, concentrado na parte principal da estação de investigação Halley VI, não tivesse dado pela sua partida.

Parece que o miúdo tinha razão.

Embora às escuras, o módulo parecia intacto. Reparou num Sno-Cat e numa série de veículos de neve estacionados por perto. Karen dirigiu-se para lá e estacionou junto deles. Gray parou o seu Ski-Doo ao lado do dela.

Uma portinhola nas traseiras do módulo abriu-se e Jason saiu para a pequena plataforma exterior. Fez sinal com a mão para as escadas que conduziam até ele. Gray não precisava que o convidassem duas vezes. O vapor do ar quente que vinha daquela portinhola aberta era suficientemente convidativo.

O grupo apressou-se em direção ao abrigo e à sua promessa de calor. A temperatura baixara para os trinta graus negativos e o vento catabático soprava cada vez mais vigorosamente à medida que a noite avançava, fazendo com que o ar gélido entorpecesse ainda mais os ossos.

Gray ajudou Barstow a subir a escada. O piloto deslocara o ombro aquando do acidente com o Ski-Doo e, embora tivessem conseguido colocá-lo no sítio, o braço ainda estava dorido e fraco. Após algum esforço, todos entraram no módulo.

Gray fechou a porta ao frio polar e ficou alguns momentos a desfrutar o calor. O seu rosto ardia de forma dolorosa enquanto descongelava. As queimaduras provocadas pelo frio eram certamente uma preocupação, mas pelo menos ainda conseguia sentir a ponta do nariz.

Seguiu os outros até ao centro do módulo, que parecia ser uma daquelas unidades residenciais, dividida numa série de quartos, uma casa de banho comum e um ginásio. Estava tudo decorado com cores primárias, concebido para compensar a monotonia interminável deste mundo congelado. Enquanto as suas fossas nasais continuavam a descongelar, Gray conseguiu sentir o cheiro a cedro, vindo das tábuas das paredes, outro truque psicológico para minimizar os efeitos da falta de plantas.

Reuniram-se todos numa pequena sala central comum, que continha uma mesa e cadeiras. Muitos dos investigadores resgatados já se tinham recolhido aos seus pequenos quartos, provavelmente em choque e exaustos. Outros estavam encostados às paredes, com expressões desanimadas e preocupadas no rosto.

Tinham todo o direito de se sentir assim.

Jason falou.

— Conseguimos apanhar o John Deere. Acho que assustámos o condutor do trator quando começámos a segui-lo. Mas, pelo menos, o seu rasto foi fácil de seguir. Quando chegámos lá, ligámos o gerador. — O miúdo apontou para as luzes. — Infelizmente, não temos como comunicar por rádio com o exterior.

Kowalski deu uma palmada nas costas de Jason e disse:

— Encontraste este sítio. É razão mais que suficiente para mereceres um charuto.

Provando ser um homem de palavra, Kowalski retirou um charuto barato, enrolado em celofane, do bolso da sua parka e deu-o a Jason. Depois, olhou em volta e perguntou:

— Pode-se fumar aqui dentro, certo?

— Normalmente, não — respondeu Karen —, mas, tendo em conta as circunstâncias, abro uma exceção.

— Então, até era capaz de me habituar a este sítio — disse Kowalski, afastando-se, talvez à procura de um lugar sossegado para acender o charuto.

Gray concentrou a sua atenção em assuntos mais práticos.

— Como estamos de água e comida?

— Não há comida no módulo — respondeu Jason. — Só o que o condutor do trator trouxe. Era suficiente para lhe durar vários dias, caso ficasse apeado, mas as suas reservas não chegam sequer para a quantidade de pessoas que temos. No entanto, a água não deve ser problema. Podemos sempre derreter gelo ou neve.

— Então, vamos ter de racionar a comida que tivermos.

Gray virou-se ao lado de Karen, que se afundara numa cadeira, o seu rosto pálido e cansado, e disse:

— Em relação ao que aconteceu… as munições que rebentaram com aquele pedaço de gelo deviam estar enterradas há bastante tempo. Como pode ser?

— Posso tentar adivinhar. As bombas podem ter sido colocadas no local e congeladas muito antes de a estação chegar.

— Isso é possível?

— Não seria muito difícil — especulou ela. — Nós movemos a estação Halley VI para mais perto do mar há cerca de três meses, de modo que os cientistas pudessem completar o seu estudo sobre o degelo cada vez mais rápido da superfície do continente. O nosso movimento foi planeado e agendado com um ano de antecedência, incluindo a escolha das coordenadas da nova localização.

Gray considerou a informação.

— Então, alguém com esse conhecimento prévio podia, facilmente, ter preparado esta emboscada, com tudo a postos para destruir a estação num piscar de olhos.

— Sim, mas isso não explica o porquê.

— Talvez estivesse relacionado com a investigação do professor Harrington. A estação funciona como uma espécie de porta de entrada para a Terra da Rainha Maud, onde a equipa do professor está estabelecida. Se alguém quisesse isolar de repente esse local secreto, o primeiro passo seria destruir a estação Halley VI.

Karen ficou ainda mais pálida.

Gray perguntou:

— Tem alguma ideia do que o professor Harrington estava a estudar?

Karen abanou a cabeça.

— Não, mas isso não quer dizer que não existissem rumores sobre o que se passava por lá. As histórias vão da descoberta de uma base nazi perdida ao teste de armas nucleares, o que foi feito nesta região pelo seu próprio país, devo acrescentar, em 1958. No entanto, são tudo conjeturas.

Ainda assim, qualquer que fosse a verdade, valia a pena matar por ela.

E, pelos vistos, ainda vale.

Gray olhou de relance para uma das janelas triangulares.

— Temos de estabelecer postos de vigia. De todos os lados do módulo. E pelo menos uma pessoa a patrulhar lá fora, a monitorizar os esquis.

Karen levantou-se da mesa e disse:

— Vou começar a tratar dos turnos.

— Mais uma coisa — disse Jason antes de ela sair. Apontou para uma figura vestida com um fato-macaco coberto de manchas de óleo. — O Carl diz que pode ficar no John Deere.

O homem acenou com a cabeça. Devia ser o condutor do trator.

— A sua cabina é aquecida — acrescentou Jason. — O Carl pode ir acertando a nossa posição para manter o módulo abaixo do nevoeiro que vem da linha costeira. Pode ajudar a escondermo-nos.

Gray admitiu que era um plano consistente. Mas quanto tempo aguentariam?

E ainda mais preocupante: quem os encontraria primeiro?

23h43

Com a meia-noite a aproximar-se, Jason vestiu a sua parka e pegou nas luvas, no cachecol e nos óculos de proteção. Estava de vigia no primeiro turno do dia seguinte. Rendiam as patrulhas de hora a hora, para evitar que alguém ficasse demasiado tempo no exterior com temperaturas geladas.

Embora tivesse dormido uma sesta para se preparar para o turno, sentia-se cansado e preocupado.

E é um facto que não estou ansioso pelos próximos sessenta minutos ao frio.

Depois de se equipar, dirigiu-se à portinhola. Encontrou Joe Kowalski encostado à ombreira. Tinha a ponta do charuto a arder lentamente, presa entre os molares de trás, e parecia que já o estava a morder há algum tempo.

— Não devia estar a descansar? — perguntou Jason.

O especialista em demolições da Sigma ia render Jason à uma da manhã.

— Não conseguia dormir. — Tirou o charuto da boca e apontou a sua ponta incandescente para Jason. — Tem cuidado lá fora. Pelo que ouvi, o Crowe tem grandes planos para ti. Vê lá se não te matas para aí.

— Não planeava deixá-lo acontecer.

— Essa é que é a questão, o planear não tem nada que ver com isto. É o inesperado que te apanha sempre. Troca-te as voltas.

Jason acenou com a cabeça, reconhecendo a sabedoria prática por baixo das palavras rudes. Avançou para passar por Kowalski, quando reparou numa pequena fotografia presa entre os dedos grossos do homem. Antes de Jason conseguir ver mais pormenorizadamente a mulher na imagem, Kowalski guardou a fotografia.

Enquanto abria a portinhola, ponderou se o aviso do homem não se referia aos perigos da missão, mas sim aos de uma vida amorosa.

Contudo, esses pensamentos desapareceram assim que o frio o atingiu como uma estalada forte no rosto. O vento quase o fez cair da plataforma elevada. Foi até à escada a escorregar e desceu-a. Encontrou um dos investigadores abrigado do vento junto a um dos esquis gigantescos.

O homem passou por Jason, deu-lhe uma palmada no ombro e com a voz trémula do frio intenso disse:

— Está tudo sossegado. Se ficares com demasiado frio, vai para a cabina do Carl para te aqueceres.

Com aquelas poucas palavras, o investigador subiu a escada em direção à promessa de uma cama quente.

Jason olhou para o relógio.

Só faltam cinquenta e nove minutos.

Percorreu lentamente a estação, tentando abrigar-se do vento o mais possível. Observou o céu, procurando as luzes de um avião que se aproximasse. Continuava tudo escuro por ali, nem as estrelas eram visíveis com o nevoeiro de gelo que se espalhava ao longo da plataforma, vindo da linha costeira distante. A única luz vinha de sul, um ténue brilho amarelo, assinalando a localização do John Deere. Jason usava a sua posição como uma bússola enquanto fazia as suas rondas.

Passado algum tempo, o uivo do vento parecia encher a sua cabeça, ecoando no seu crânio. Os seus olhos começaram a enganá-lo, avistando luzes-fantasma no meio da escuridão. Jason pestanejava ou esfregava os olhos para que desaparecessem.

Enquanto dava a volta mais uma vez à estação, considerou ir para dentro da cabina do trator, não pelo calor, mas para fugir à monotonia da escuridão e ao uivo constante dos ventos catabáticos. Saiu de baixo do módulo e caminhou em direção à luz amarela quando um brilho ténue lhe chamou a atenção do lado esquerdo, a oeste.

Tentou pestanejar e fazer com que aquela luz fraca desaparecesse, mas esta acabou por se transformar em dois olhos a brilhar na escuridão. Por entre o ruído intenso instalado na sua cabeça, penetrou um som indefinido e mais baixo, acompanhado, alguns momentos depois, pelo estalar do gelo.

Demorou mais alguns segundos até perceber que não era mais uma ilusão da noite, mas sim algo enorme que atravessava os ventos a alta velocidade em direção ao módulo isolado.

Jason tirou o rádio do bolso e aproximou-o dos lábios.

— Temos movimento cá fora. No gelo. Um veículo grande a aproximar-se, vindo de oeste.

— Recebido — disse o vigia no interior. O homem alertou os outros dentro da estação antes de voltar ao rádio. — Também já o vejo!

Jason abrigou-se atrás de um dos esquis de apoio, com o rádio ainda próximo dos lábios.

— Digam ao Carl para apagar as luzes do trator!

Passados alguns segundos, a ilha de luz quente extinguiu-se. A única iluminação vinha agora daqueles dois feixes de luz, cada vez maiores e mais brilhantes. Jason desconfiava que o que quer que se aproximava era do tamanho de um tanque. Este palpite foi reforçado pelo som de lagartas a esmagar o gelo.

Jason ouviu a portinhola fechar em cima dele. Em seguida, Gray e Kowalski desceram apressadamente as escadas, com as armas em riste. Só naquele momento é que Jason se lembrou de retirar a sua própria arma de dentro da parka.

— Estou aqui! — gritou Jason.

Os dois homens juntaram-se a ele.

Gray apontou para as outras torres hidráulicas.

— Espalhem-se. Fiquem escondidos. Deixem-nos aproximar. Até mesmo desembarcar. Se houver qualquer indício de que são hostis, usamos a escuridão para começar uma guerrilha aqui em baixo. O Barstow está no telhado com a Karen, armados com as nossas duas últimas espingardas, para nos dar cobertura de cima.

Depois de Jason acenar em concordância relativamente ao plano, Gray dirigiu-se para um dos pilares, Kowalski para outro. Correram agachados, tentando não ser vistos.

O veículo abrandara, o seu motor mudou de timbre.

Depois parou a cerca de quarenta metros.

Os ventos afastaram o nevoeiro o suficiente para revelar uma estranha visão. A máquina parecia e era do tamanho de um enorme tanque. Lagartas gigantescas flanqueavam o veículo de ambos os lados, cada uma mais alta que as costas de um elefante. Suportavam o que se assemelhava a um autocarro blindado com o que parecia ser a ponte de comando de um rebocador em cima.

Acenderam-se luzes no topo e viu-se movimento dentro do veículo.

Uma porta abriu-se na ponte e um vulto escuro saiu para a plataforma aberta que rodeava a estrutura superior. Um grito atravessou o uivo do vento. Não fora alto o suficiente para discernir as palavras, mas parecia uma pergunta, um desafio.

Outro vulto passou algo ao que se já se encontrava na plataforma.

Pelo aumento repentino de volume, devia ser um megafone.

OLÁ! INTERCETÁMOS A VOSSA COMUNICAÇÃO VIA RÁDIO! SABEMOS QUE ESTÃO EM APUROS!

A voz era claramente de uma mulher, inglesa pelo sotaque. Devia ter intercetado a comunicação via rádio de Gray para Karen.

SEGUIMOS O VOSSO RASTO E VIEMOS AJUDAR-VOS!

Gray gritou do seu esconderijo, não precisando de um megafone para se fazer ouvir.

— Quem são vocês?

REPRESENTAMOS O PROFESSOR HARRINGTON. ESTÁVAMOS A CAMINHO PARA RECOLHER UMA EQUIPA DE AMERICANOS QUANDO SOUBEMOS DO ATAQUE.

Jason tentou controlar o choque e considerou esta possibilidade. Painter dissera-lhes que os contactos do professor chegariam de avião à estação de Halley. Mas depois de intercetarem a comunicação e tomarem conhecimento do ataque, teriam voltado para trás e vindo por terra?

TEMOS DE NOS DESPACHAR! SE OS AMERICANOS ESTÃO AQUI, TÊM DE VIR CONNOSCO URGENTEMENTE!

— E quem é você, exatamente? — perguntou Gray, querendo mais provas. — Como se chama?

CHAMO-ME STELLASTELLA HARRINGTON.

Jason respirou fundo, reconhecendo o nome dos ficheiros da missão. A pessoa que falava confirmou-o na sua afirmação seguinte.

O PROFESSOR É MEU PAIE ELE ESTÁ EM APUROS!