16

29 de abril, 23h35 AMT
Em voo sobre o Brasil

O doutor Kendall Hess encolheu-se ainda mais no seu assento quando outro relâmpago surgiu no céu e se alastrou pelos contornos das nuvens negras, iluminando a floresta sombria em baixo. Um trovão fez o helicóptero estremecer, enquanto a chuva batia violentamente na janela da pequena aeronave.

À frente, o piloto praguejava em espanhol, enquanto lutava contra a tempestade. O homem enorme que o escoltava encontrava-se sentado na cabina de trás com ele, com um ar muito tranquilo, a olhar fixamente pela janela do seu lado.

Kendall tentou abstrair-se do terror que sentia e fazer o mesmo. Encostou a testa à janela. O clarão do relâmpago revelara pouco mais que uma imensidão de selva verde em baixo. Passaram grande parte do dia a sobrevoar esta floresta tropical em direção a sudoeste, tendo parado apenas uma vez numa estação de reabastecimento situada na floresta e camuflada com redes.

Para onde quer que me estejam a levar, fica atrás do sol-posto.

Desesperou ao pensar se algum dia voltaria a ver o mundo.

Sabia que estava algures na América do Sul, provavelmente ainda a norte do equador. Mas não sabia muito mais. Na noite passada, os seus raptores tinham aterrado o Cessna por uma última vez nos arredores de uma pequena cidade. Fora levado para uma casa decrépita com um telhado de chapa ondulada, sem água canalizada, e obrigado a dormir num colchão sobre um chão de terra. Tinham-lhe coberto a cabeça no percurso do avião até à casa, para que não conseguisse descobrir o nome da cidade. No entanto, ouvira vozes na rua a falar espanhol, algum inglês, mas sobretudo português.

Tendo isto em conta, Kendall presumiu que estivesse no Brasil, provavelmente num dos seus estados do Norte. Mas não tinham ficado tempo suficiente para determinar mais nada. Na madrugada do dia seguinte, transferiram-no para este pequeno helicóptero, que tinha um aspeto maltratado e pouco seguro.

Ainda assim, levara-os até aqui.

Uma série de relâmpagos encadeados ribombou por entre as nuvens. Uma silhueta escura surgiu junto ao horizonte, erguendo-se da floresta de forma imponente, como um navio de guerra negro navegando num mar verde. Kendall esticou-se, tentando ver melhor, sobretudo quando Mateo se baixou para apanhar uma caixa do chão.

Qual seria o destino?

Enquanto o helicóptero prosseguia em frente, a chuva abrandou, mas o trovejar continuou, acompanhado por ocasionais clarões brilhantes, cada um deles revelando mais pormenores da montanha à sua frente.

E era mesmo uma montanha que se erguia do chão da floresta, com penhascos muito íngremes e milhares de metros de altura. O seu cume plano, rodeado de névoa intensa, erguia-se sobre as nuvens mais baixas.

Kendall reconheceu aquela invulgar formação geológica. Era única e característica desta região da América do Sul. Blocos altíssimos de arenito antigo como estes, chamados tepuis, encontravam-se espalhados pelas florestas tropicais e pântanos do norte do Brasil, estendendo-se até à Venezuela e à Guiana. Eram mais de cem. O mais famoso era o monte Roraima, que se erguia a mais de três quilómetros do chão da floresta, tendo o seu cume, um planalto, uma extensão superior a vinte e cinco mil quilómetros quadrados.

O tepui à sua frente era bastante menor, talvez um quarto desse tamanho.

Contudo, há muito tempo, estas centenas de mesetas estavam juntas e formavam um só maciço de arenito gigantesco. Quando os continentes se separaram e moveram, o antigo maciço fragmentou-se em vários pedaços e a chuva e o vento erodiram os blocos partidos, o que deu origem a esta coleção de planaltos dispersos, sentinelas solitárias de outros tempos.

Embora Kendall nunca tivesse visitado nenhum destes tepuis, sabia da sua existência através da sua investigação sobre formas de vida invulgares. Os tepuis eram uma das formações mais antigas da Terra, remontando aos tempos pré-cambrianos, mais antigos que a maioria dos fósseis. Estas ilhas no céu, isoladas durante séculos, albergavam espécies que só podiam ser encontradas nos seus cumes, plantas e animais únicos.

Muitos dos planaltos nunca tinham sido pisados pelo Homem, visto serem tão remotos e os penhascos tão íngremes. Representavam uma das áreas menos exploradas do planeta, permanecendo livres de poluição e no seu estado mais puro.

O helicóptero subiu mais alto, fustigado por ventos cada vez mais fortes, dirigindo-se para a montanha, a qual, vista de cima, parecia muito sombria e assustadora, sem ter alguma vez sido tocada pelo Homem.

À medida que se aproximavam do planalto, a superfície do tepui não era tão plana como parecia à distância. Um grande lago ao centro dominava o cume, refletindo as luzes de navegação do helicóptero. Ao longo da sua margem mais a sul, corriam as águas remanescentes das cheias causadas pela tempestade para uma secção mais baixa do planalto, uma plataforma coberta por uma densa floresta em miniatura, uma pequena amostra da vida riquíssima que se encontrava em baixo. A norte do planalto, estendia-se um labirinto de rochas, esculpidas pelo vento e pela chuva em ravinas, cavernas e florestas de pilares extraordinários, tudo coberto por um musgo esponjoso verde-escuro ou por algas de aspeto gelatinoso. Contudo, entre as fendas, Kendall reparou em orquídeas e bromélias em flor, um jardim mágico banhado pela névoa.

O helicóptero começou a baixar para aterrar na área plana de rocha junto ao lago, com as suas luzes a varrerem o planalto. Só nessa altura é que Kendall viu vestígios de ocupação humana. Construída dentro de uma das cavernas, ocupando-a por completo como uma cornucópia, encontrava-se uma magnífica casa de pedra com varandas, gabletes e até um jardim de inverno. Toda a superfície da casa estava pintada com várias tonalidades de verde-escuro para se camuflar na paisagem.

Kendall também reparou num estábulo próximo, com dois cavalos árabes, ao lado de uma fila de carrinhos de golfe estacionados, que pareciam não pertencer ali, embora também os veículos estivessem pintados de verde. Próximo da casa, uma série de aerogeradores altos camuflava-se na perfeição com os pilares de pedra.

É bastante óbvio que alguém quer passar despercebido.

Esse alguém encontrava-se por perto, debaixo de um guarda-chuva.

Assim que os patins do helicóptero tocaram no chão, o guarda de Kendall abriu a porta da cabina e saltou para o exterior. Sendo muito alto, manteve-se agachado para evitar as pás que giravam por cima da sua cabeça. Alguns homens encontravam-se por perto com redes camufladas à mão, prontos para esconder a aeronave quando esta parasse. O grupo partilhava a mesma pele escura e rosto redondo do guarda e do piloto. Era provável que fossem todos da mesma tribo nativa.

Sabendo que não tinha escolha, Kendall saiu do helicóptero e sentiu um leve chuviscar. Tremeu com o frio abafado característico desta altitude, completamente diferente do calor abrasador da floresta tropical mais abaixo. Caminhou em direção ao homem que toda a gente pensava ter morrido há onze anos.

— Cutter Elwes. Para um homem morto, estás com bom aspeto.

Na verdade, Cutter parecia bem melhor do que da última vez que os dois tinham estado juntos. Fora há muito tempo, numa conferência de biologia sintética em Nice. Kendall lembrava-se dele com o rosto corado, a fervilhar com uma fúria jovial e imatura provocada pela fraca receção que o seu artigo tivera por parte dos colegas de Kendall.

Mas de que é que ele estava à espera?

Agora, o homem tinha um aspeto atlético, descontraído, uma determinação tranquila no seu olhar azul-aço por baixo do cabelo escuro como breu. Estava vestido com calças de linho impecáveis e uma camisa branca, com um colete de safari bege por cima.

— E tu, meu amigo, pareces cansado… e molhado.

Cutter estendeu-lhe o seu próprio guarda-chuva.

Furioso, Kendall ignorou a oferta.

Cutter não expressou qualquer desagrado e voltou a colocar o guarda-chuva por cima da sua cabeça. Virou-se, esperando que Kendall o seguisse, o que ele fez.

Para onde é que eu havia de ir?

— Imagino que tenha sido uma viagem atribulada até aqui — disse Cutter. — Já é tarde e o Mateo vai levar-te ao sítio onde vais dormir. Tens na tua mesa de cabeceira uma refeição fria e café quente, descafeinado, claro. Temos um longo dia pela frente amanhã.

Kendall acelerou o passo, caminhando praticamente ao lado do seu anfitrião, sempre seguido de perto pelo seu enorme guarda.

— Tu mataste… assassinaste tantas pessoas. Meus amigos, colegas. Se esperas que colabore contigo depois de tudo o que fizeste…

Cutter ignorou esta invetiva acenando com a mão.

— Falamos dos pormenores de manhã.

Chegaram à casa de três andares e atravessaram as portas duplas, entrando num átrio cavernoso. O chão era revestido por tábuas de mogno do Brasil, trabalhadas à mão, os tetos eram altos e abobadados, as paredes decoradas com tapeçarias francesas. Se Kendall não soubesse da riqueza da família Elwes, teria ficado desconfiado de como tinham arranjado os vários milhões que devia ter custado construir aquela casa em segredo.

Kendall procurou em volta, sabendo que este sítio devia esconder muito mais. A paixão de Cutter nunca fora o dinheiro ou a acumulação de riqueza. A sua paixão sempre fora o planeta. Começara como um ambientalista dedicado, utilizando o dinheiro da família para financiar muitas causas de conservação. Contudo, o homem era também brilhante, com uma pontuação da Mensa muito além do genial. Embora Cutter fosse francês por parte do pai, estudara em Cambridge e Oxford, sendo a última a universidade onde a sua mãe se formara e onde Kendall conhecera Cutter pela primeira vez.

Depois de se formar, Cutter pegou no seu portentoso cérebro e na sua riqueza sem fim e deu início a um movimento descentralizado com o objetivo de democratizar a ciência com o estabelecimento de laboratórios de ensino por todo o mundo, sendo que muitos deles se aventuraram nos primórdios da investigação da manipulação genética e da síntese de ADN. Tornou-se rapidamente o rei da comunidade biopunk, aqueles empreendedores que se dedicavam ao mundo da codificação genética com um desprendimento encantador.

Cutter também conquistara bastantes seguidores por defender ferozmente uma mudança nas políticas ambientais. Ao longo do tempo, fizera com que grupos de extremistas como o Earth First! e o Earth Liberation Army parecessem conservadores em comparação. As pessoas ficavam cativadas pela sua personalidade iconoclástica e determinação implacável. Ele era a favor da desobediência civil e de protestos dramáticos.

Mas depois tudo mudou.

Kendall estudou as costas de Cutter, reparando que ele se inclinava ligeiramente mais para o lado direito. Durante uma missão no Serengeti, que tinha como objetivo deter caçadores furtivos, Cutter fora violentamente atacado por um leão africano, uma das criaturas que tentava proteger. Quase morrera… aliás, ele morreu, pelo menos durante um minuto, na sala de operações. A sua recuperação fora longa e dolorosa.

A maioria das pessoas teria visto num acontecimento tão horrível e violento uma razão para virar costas à causa, mas, em vez disso, Cutter dedicou-se ainda mais. Era como se o facto de ter sobrevivido à fúria primitiva do animal, a representação literal da crueldade da natureza, tivesse aumentado a sua paixão. Contudo, também o mudara. Embora continuasse um ambientalista, o seu fervor orientou-se para uma filosofia mais niilista. Fundou um novo grupo, com indivíduos com crenças semelhantes, a que chamou Dark Eden, cujo objetivo já não era a conservação, mas a aceitação de que o mundo se estava a desmoronar e de que devíamos estar preparados para isso, talvez até contribuir para esse processo e olhar para a atual extinção em massa como uma nova génese, um novo Éden.

Num curto período de tempo, as suas ações tornaram-se mais radicais, os seus seguidores maníacos. Acabou por ser condenado in absentia por vários crimes, em vários países, sendo obrigado a desaparecer da face da Terra. Foi enquanto fugia das autoridades que sofreu um acidente de avião.

Agora era evidente que a sua morte fora um embuste, parte de um plano mais elaborado para o Dark Eden.

Mas qual seria o seu objetivo?

Cutter conduziu Kendall para uma impressionante escadaria de pedra. Uma mulher desceu em direção a eles, com um simples vestido branco, que revelava a beleza da sua pele bronzeada, bem como as suas curvas.

A voz de Cutter tornou-se mais suave.

— Ah, Kendall, deixa-me apresentar-te a mãe dos meus filhos. — Cutter estendeu a mão para a ajudar a descer o último degrau. — Esta é a Ashuu.

A mulher inclinou ligeiramente a cabeça para a frente, como se fizesse uma vénia, e depois voltou toda a sua atenção para Cutter, os seus olhos escuros quase a brilhar sob a luz do candeeiro. A sua voz era um sussurro suave.

Tu as fait une promesse à ton fils.

Kendall traduziu o francês.

Fizeste uma promessa ao teu filho.

— Eu sei, minha querida. Assim que o nosso convidado estiver instalado, vou vê-lo.

Ashuu tocou com ternura na face de Cutter com a parte de trás da sua mão suave, depois acenou com a cabeça para Mateo.

Bienvenu, mon frère.

Em seguida, virou-se e subiu as escadas.

Kendall franziu o sobrolho e olhou para trás, para Mateo.

Frère.

Irmão.

Kendall observou o rosto cheio de cicatrizes do gigante que o olhava de cima. Tendo em conta a beleza impressionante da mulher, nunca imaginaria que os dois eram irmãos, mas, agora que sabia, conseguia ver uma ligeira parecença.

Cutter tocou no cotovelo de Kendall e apontou para o fundo do corredor.

— O Mateo leva-te ao teu quarto. Vemo-nos de manhã. Tenho assuntos importantes para tratar antes de me ir deitar. — Cutter encolheu os ombros com o seu habitual charme insolente. — Tal como a minha mulher me lembrou… une promesse est une promesse.

Uma promessa é uma promessa.

Cutter seguiu Ashuu, subindo as escadas.

Enquanto Mateo lhe agarrava o ombro com brutalidade e o levava à força, Kendall não tirava os olhos das costas de Cutter, imaginando as cicatrizes que tinham transformado o homem de forma tão radical, tanto por dentro, como por fora.

Porque me trouxeste para aqui?

Já desconfiava de qual era a resposta.

E esta aterrorizava-o.

23h56

Pequenos dedos seguravam a mão de Cutter enquanto desciam os degraus de arenito do túnel.

— Papá, temos de nos despachar.

Cutter sorriu, enquanto o filho o puxava para ir mais depressa com um alheamento despreocupado, típico da juventude. Com apenas dez anos, Jori ficava maravilhado com tudo, a sua curiosidade pura irradiava de cada milímetro do seu lindo rosto. Tinha as feições suaves da mãe, bem como o seu tom de pele acastanhado, mas os olhos eram do pai, de um azul-claro brilhante. O curandeiro local tinha tocado no rosto do rapaz e, olhando fixamente para os seus olhos, declarara-o especial. Um ancião macuxi fizera a melhor descrição do seu filho: Este menino nasceu para ver o mundo entre céus sem nuvens.

Jori era assim.

O seu olhar azul intenso estava sempre à procura da próxima maravilha.

Essa era a razão que levara os dois a fazer esta caminhada à meia-noite pelos túneis subterrâneos. Dirigiam-se à biosfera viva que ele criara no tepui, ou melhor, dentro dele.

A maioria destes cumes de arenito estava crivada de cavernas e túneis antigos, formados à medida que a rocha suave fora desgastada por éons de chuva e água corrente. Dizia-se que os sistemas de cavernas encontrados aqui eram os mais antigos do mundo. Assim, era natural que estas passagens antigas se tivessem tornado as forjas do que estava para vir.

As lâmpadas espalhadas ao longo do teto do túnel revelaram uma porta de aço à frente, bloqueando o caminho. Cutter aproximou-se da fechadura de segurança e usou o cartão que tinha à volta do pescoço para a destrancar. Com uma vibração silenciosa, três trancas do tamanho de punhos deslizaram do caixilho da porta.

— Preparado? — perguntou Cutter, olhando para o relógio.

Faltavam três minutos para a meia-noite.

Perfeito.

Jori acenou com a cabeça, balançando-se sobre os dedos dos pés.

Cutter abriu a porta para outro mundo… o mundo seguinte.

Conduziu o filho para a plataforma no exterior. Caía uma chuva ligeira do céu para as profundezas de uma gigantesca dolina que se encontrava à sua frente. Estavam a apenas cinco metros daquele buraco cilíndrico. Um parapeito largo em caracol percorria as paredes interiores da dolina, estendendo-se desde o planalto até à base do tepui. O buraco era enorme, com trezentos metros de diâmetro, mas, ainda assim, era um terço mais pequeno que a sua prima, a dolina gigantesca no tepui de Sarisariñama na Venezuela.

Ainda assim, este ecossistema confinado e mais pequeno servia o seu propósito na perfeição.

O buraco funcionava como uma ilha dentro de uma ilha.

Foram estes mesmos tepuis que inspiraram Sir Arthur Doyle a escrever O Mundo Perdido, povoando estas ilhas no meio das nuvens com os remanescentes de um passado pré-histórico, um mundo violento de dinossauros e pterodáctilos. Para Cutter, a realidade era mais excitante que qualquer fantasia vitoriana. Para ele, cada planalto era uma Galápagos no céu, uma panela de pressão evolutiva, onde cada espécie se esforçava por sobreviver de forma única.

Aproximou-se da parede, adornada pela vegetação luxuriante, pingando devido à humidade, encharcada pela névoa. Apontou gentilmente para uma pequena flor com pétalas brancas. As suas folhas semelhantes a gavinhas estavam cobertas de caules minúsculos, cada um com uma gota pegajosa e brilhante na ponta.

— Sabes dizer-me o nome desta, Jori?

Jori suspirou.

— Essa é fácil, papá. É orvalho-do-sol. Dro… dro…

Cutter sorriu e terminou a palavra pelo rapaz.

— Drósera.

Jori acenou vigorosamente com a cabeça.

— Elas apanham formigas e insetos e comem-nos.

— É isso mesmo.

Tais plantas eram a infantaria na guerra evolutiva que existia por aqui, desenvolvendo estratégias de sobrevivência distintas para compensar a falta de nutrientes e a escassez de solo nos cumes dos tepuis, tornando-se carnívoras para sobreviver. E não era só a drósera, mas também a utriculária, a Nepenthes, até mesmo algumas espécies de bromélias tinham desenvolvido o gosto pelos insetos nesta ilha no céu.

— A natureza é o derradeiro inovador — murmurou ele.

Contudo, por vezes, a natureza precisa de uma ajudinha.

Quando chegou a meia-noite, uma ténue fosforescência surgiu ao longo das paredes, estendendo-se do topo até ao fundo escuro.

Jori bateu palmas. Era isto que o seu filho queria ver.

Cutter manipulara o gene fosforescente de uma medusa, introduzindo-o no ADN de uma espécie ubíqua de orquídea que crescia neste tepui, e programara um ritmo circadiano para que brilhasse àquela hora. Para além da beleza, a sua criação proporcionava iluminação à noite para os trabalhadores que cuidavam deste jardim artificial.

Não que as minhas criações precisem de muitos cuidados.

— Olha, papá! Um sapo!

Jori ia tocar no anfíbio de pele negra, que estava agarrado a uma trepadeira.

— Não, não… — avisou Cutter, e puxou a mão do rapaz para trás.

Ele conseguia perceber que o seu filho confundisse o habitante desta dolina com o seu primo vulgar lá de cima, um sapo único, que só existia neste tepui. A espécie nativa que se encontrava lá em cima, a Oreophrynella, não era capaz de saltar ou nadar, mas desenvolvera dedos oponíveis nas patas que lhe permitiam agarrar-se melhor às superfícies rochosas escorregadias.

Contudo, a espécie que existia aqui não era nativa.

— Lembra-te —avisou Cutter —, aqui em baixo temos de ter cuidado.

Este sapo fora geneticamente manipulado para conter uma neurotoxina potente na estrutura glandular da sua pele. Cutter recolhera a sequência de genes do peixe-pedra australiano, a espécie mais venenosa do mundo. Um toque causaria uma morte muito dolorosa.

O sapo tinha poucos inimigos… pelo menos, no mundo natural.

Incomodado pelas suas vozes, o sapo subiu ainda mais a trepadeira. O movimento atraiu a atenção de outro predador. Debaixo de uma folha, umas asas translúcidas abriram-se, ficando do tamanho de uma mão aberta. A folha separou-se do caule, revelando o seu mimetismo inteligente.

Fazia parte da família Phylliidae, por vezes chamada «bicho-folha» ou «folha-caminhante».

Só que esta criação não caminhava.

As suas asas flutuavam entre a névoa, as suas patas minúsculas mexiam-se freneticamente no ar, enquanto caía silenciosamente em direção ao nevoeiro.

— Papá, para-a!

Jori devia ter-se apercebido do que estava prestes a acontecer. O seu filho tinha uma afinidade por sapos, típica de um rapaz. Tinha até um grande terrário no seu quarto com uma coleção de várias espécies.

Jori mexeu-se para afastar as asas esvoaçantes, mas Cutter pegou-lhe no pulso… não que o inseto modificado lhe fizesse pior que uma simples picada, mas este era outro momento ideal para o ensinar.

— Jori, o que aprendemos sobre a lei da selva, sobre a presa e o predador? O que se chama a isso?

Jori baixou a cabeça e murmurou baixinho:

— A sobrevivência do mais apto.

Cutter sorriu e acariciou o cabelo do rapaz.

— Lindo menino.

Depois de aterrar nas costas do sapo, o inseto enfiou as suas patas afiadas na pele tóxica e começou a alimentar-se. Enquanto pai e filho observavam, aquelas asas estendidas e pálidas tornaram-se lentamente rosadas com o sangue fresco.

— É bonito — disse Jori.

Não, é a natureza.

A beleza era outra das formas de sobrevivência da Mãe Natureza, fosse através da flor perfumada que atraía a abelha ou das asas de uma borboleta que confundia o predador. Todo o mundo natural tinha um objetivo: sobreviver, passar os seus genes para a geração seguinte.

Cutter aproximou-se da beira da dolina e olhou fixamente para a queda de vários metros até ao fundo. A cada dez metros, o ecossistema mudava. Junto ao topo da dolina, era húmido e frio; no fundo, quente e tropical. O declive entre as duas zonas permitia a criação de áreas de teste, nichos ecológicos únicos, para pôr à prova os seus trabalhos em progresso. Cada nível estava codificado por cores, desde tons mais claros em cima até tons mais escuros em baixo, todos separados por barreiras biológicas e físicas.

O preto era o nível mais profundo e mortífero.

Mesmo com o brilho das orquídeas, Cutter mal conseguia ver a selva escura e húmida que crescia no fundo, o seu solo enriquecido pelos detritos dos níveis de cima que eram arrastados pela chuva. Aquele pedaço de floresta tropical isolada era uma estufa perfeita, onde as suas melhores criações se abrigavam, tornando-se cada vez mais fortes e aprendendo a sobreviver sozinhas.

As tribos nativas desta região receavam estes tepuis encobertos pelo nevoeiro, acreditavam que se escondiam por ali espíritos perigosos.

Como isso era verdade agora.

A questão é que estes novos espíritos eram as suas criações, concebidas para o que estava para vir. Cutter continuou junto à beira, a olhar para a vastidão da dolina.

Aqui estava uma nova Galápagos para um novo mundo.

Um mundo muito para além da tirania da raça humana.