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30 de abril, 10h34 AMT
Terra da Rainha Maud, Antártida
— Onde está o maldito sol? — resmungou Kowalski.
Gray compreendia a frustração do homem corpulento. Encontrava-se na cabina de comando do enorme veículo com lagartas e estudava a paisagem que se estendia para lá das suas janelas altas. Embora fosse apenas meio da manhã, estava escuro como breu no exterior. Com a lua a desaparecer, estrelas brilhantes cintilavam friamente num céu sem nuvens. Ocasionais ondas etéreas de brilho rolavam pela paisagem estrelada, em tonalidades de verde-esmeralda e vermelho-escarlate, por entre salpicos de azul-elétrico.
Esta impressionante tempestade da aurora austral, as luzes polares do Sul, perseguira-os ao longo da extensão gelada da Terra da Rainha Maud durante todo o seu percurso noturno. A ferocidade desta exibição refletia a gravidade da erupção solar que comprometia as comunicações via satélite em toda a Antártida. Cada dança hipnotizante da aurora lembrava a Gray quanto estavam isolados.
Estudou o território na esperança de descobrir alguma pista sobre o local para onde se dirigiam. Depois de deixarem Karen e os outros investigadores no módulo que restava da estação Halley, Gray e a sua equipa dirigiram-se para leste no enorme veículo, movendo-se lentamente por um mar calmo de neve e gelo. De acordo com o monitor por cima do terminal do condutor, que assinalava em tempo real a posição em que se encontravam, percorriam agora um caminho paralelo à linha costeira distante. No entanto, ao olhar pela janela, não havia qualquer vestígio de mar ou oceano, apenas um mundo gelado em tons de branco e azul. A única coisa que quebrava a monotonia da paisagem eleva-se a sul da posição onde se encontravam. Uma linha de picos escuros escarpados espreitava entre o gelo, assinalando os cumes de montanhas soterradas. Afiados como lâminas, os penhascos assemelhavam-se a uma fileira de presas e eram, de facto, chamadas Fenriskjeften, ou as Mandíbulas de Fenris, o nome do mítico lobo nórdico.
A conversa atraiu a atenção de Gray de volta para a cabina de controlo atrás dele e para a sua anfitriã, Stella Harrington, filha do professor solitário, com quem iam agora encontrar-se.
— Na verdade, nós desenvolvemos o nosso CAAT a partir do protótipo criado pela DARPA — explicou Stella ao seu ávido aluno.
Jason encontrava-se ao lado de Stella junto ao piloto, olhando para um conjunto de diagramas deste estranho veículo. Ele, simplesmente, não parecia fartar-se de receber informação sobre aquele modo de transporte único.
Ou talvez fosse da sua professora.
Com vinte e poucos anos, Stella era da mesma idade que Jason, tinha o cabelo louro e curtinho, como uma fada, lindíssimos olhos verdes e curvas que se evidenciavam mesmo por baixo da camisola grossa de lã e das calças polares volumosas. Era também muito inteligente, com um mestrado duplo em botânica e biologia evolucionária, um par interessante para o génio informático da Sigma.
— Lembro-me de ter visto um vídeo desse protótipo da DARPA — disse Jason. — Era um quinto do tamanho deste. A deslocação sobre a água ainda é possível neste aparelho, sendo ele bastante maior?
— Porque achas que se chama transporte anfíbio? — perguntou Stella, revirando os olhos de forma encantadora. — Cada esteira individual que compõe a lagarta é feita de uma espuma flutuante, o que nos permite deslocar em terra e no mar. E isso é muito importante por aqui.
Jason franziu o sobrolho, olhando de relance para a extensão de terra gelada.
— Porque é preciso um veículo anfíbio por aqui?
— Porque usamos o CAAT principalmente para… — Stella calou-se de repente, talvez percebendo que estava a falar demasiado à vontade.
Fora assim desde que eles tinham subido a bordo do veículo. Qualquer conversa era rematada por pausas e silêncios. Ela ainda não lhes dissera em que tipo de sarilhos o seu pai se encontrava, apenas lhes pedira ajuda.
Stella desviou o olhar, o tom da sua voz tornou-se mais baixo, evidenciando alguma culpa.
— Já vais ver.
Jason não insistiu no assunto.
— Mas o CAAT também é útil sobre o gelo — continuou Stella, mais confiante. — Pode atingir os cento e trinta quilómetros por hora em terreno plano, e o seu comprimento permite-nos transpor fendas estreitas.
Jason estudou os diagramas.
— Este CAAT lembra-me o veículo de neve do vice-almirante Byrd, o enorme transportador polar construído pouco depois da Segunda Guerra Mundial. Conheces?
Gray lembrava-se de ver uma imagem do veículo polar de quinze metros, capaz de transportar uma pequena aeronave. A fotografia fora encontrada nos ficheiros do professor Harrington recuperados dos servidores da DARPA.
— Eu… conheço, sim — disse Stella, novamente hesitante, como se estivesse a caminhar sobre gelo fino. — O meu pai acreditava que o CAAT pudesse desempenhar um papel semelhante.
Jason acenou com a cabeça.
— Faz sentido.
O miúdo olhou de forma sorrateira para Gray. De repente, este apercebeu-se de que Jason estivera a testar Stella discretamente, utilizando a informação contida nos ficheiros do seu pai para ver até que ponto ela estaria disposta a falar abertamente.
Talvez ele não estivesse assim tão encantado, afinal.
— Qual é a capacidade de passageiros deste CAAT? — perguntou ele.
— Foi concebido para transportar uma equipa de doze pessoas, incluindo a tripulação. Mas, em caso de emergência, podemos levar mais seis ou sete pessoas.
Fora esta a razão por que tiveram de deixar Karen e os outros para trás. Gray já vira as acomodações apertadas por baixo de onde se encontravam. Parecia que o motor e as peças mecânicas do veículo ocupavam a maior parte do espaço disponível. As acomodações da tripulação compreendiam um pequeno refeitório e uma camarata, e Stella trouxera consigo uma força inteira de soldados britânicos, todos armados, na eventualidade de terem problemas. Era impossível trazer Karen e a sua equipa de doze investigadores a bordo do CAAT.
Contudo, isso nunca fora uma opção.
Stella deixara bem claro que o professor Harrington apenas autorizara Gray e os seus dois homens a serem transportados da Terra da Rainha Maud para a sua base secreta. Parece que a paranoia do homem se agravara ao saber do ataque. Stella estava a caminho de avião quando intercetou a conversa via rádio depois de Gray fugir da base destruída. Inverteu a marcha de imediato e procurou o CAAT, que já se encontrava no gelo numa missão diferente. Fez uma aterragem de emergência e desviou a rota do enorme tanque para a sua missão de salvamento.
Stella fez uma pequena concessão e deixou dois soldados britânicos com Karen e os outros, juntamente com lança-granadas-foguete e arsenal pesado, na eventualidade de o inimigo decidir perseguir o módulo itinerante. Era o melhor que se podia fazer tendo em conta a situação.
Gray juntou-se a Jason.
— Quanto tempo vamos demorar até chegarmos ao nosso destino?
Stella olhou de relance para o mapa no sistema de posicionamento dinâmico sobre a cabeça do condutor. Estudou-o durante demasiado tempo, claramente ponderando quanto revelar.
Jason interveio, dando às suas palavras um tom irónico.
— Nós não vamos contar a ninguém.
Stella continuava a olhar fixamente para o mapa, mas Gray reparou no vislumbre de um sorriso nos cantos dos seus lábios.
— Lá isso é verdade. — Stella apontou para o ecrã. — Vêm aquela pequena península com a forma de uma meia-lua? A cerca de trinta quilómetros. É onde fica Hell’s Cape.
— Hellscape? — perguntou Jason, franzindo o sobrolho ao ouvir um nome tão agourento.
O sorriso dela tornou-se maior.
— Percebeste mal. Não é Hellscape. É Hell’s Cape. Cabo do Inferno.
— Como se isso fosse bem melhor — comentou Kowalski, de forma sarcástica, da cabina do condutor. — Não vai conseguir atrair muitos turistas para aqui com esse nome.
— Não fomos nós que lhe demos o nome.
— Então, quem foi? — perguntou Gray.
Stella hesitou… depois acabou por não aguentar mais e falou abertamente.
— Foi Charles Darwin. Em 1832.
Depois de um minuto de silêncio e espanto, Gray fez a pergunta óbvia.
— Porque lhe chamou Hell’s Cape?
Stella não levantou os olhos do mapa, depois abanou a cabeça. Repetiu a resposta vaga que usara anteriormente. Só que agora a sua voz estava gelada de terror.
— Já vão ver.
10h55
Não parece assim tão mau para um inferno.
Jason observou o CAAT a percorrer com dificuldade os últimos dois quilómetros em direção ao cabo gelado que penetrava pelo oceano Antártico dentro. Por esta altura, os seus olhos já se tinham adaptado à escuridão, vendo bem com a luz das estrelas e das ondas cintilantes da aurora austral no céu escuro.
Em frente, a curva da linha de costa, um misto de gelo azul e penhascos rochosos e escuros, abrigava uma pequena baía. No fundo dos penhascos, as ondas rebentavam numa praia repleta de pedregulhos. Esta era uma das raras áreas da linha costeira que não tinha gelo.
— Então, onde fica essa base? — perguntou Kowalski.
Era uma boa pergunta.
Stella encontrava-se de pé atrás do condutor, debruçada para a frente, a sussurrar-lhe ao ouvido. O homem abrandou o CAAT à medida que este se aproximava da costa. Conduziu as enormes lagartas até à beira de um penhasco…
… e seguiu em frente.
— Agarrem-se a qualquer coisa — avisou Stella.
Jason segurou o corrimão que se estendia ao longo de uma parede, enquanto Gray e Kowalski se agarraram aos cantos de uma mesa de navegação.
O CAAT continuou para a frente até a dianteira do veículo se encontrar suspensa para lá do penhasco. Em seguida, começou a cair, com a parte da frente inclinada para baixo. Jason segurou-se com mais força, esperando aterrar de cabeça na praia rochosa. Em vez disso, as lagartas dianteiras embateram numa escarpa oculta por debaixo do precipício. O CAAT estremeceu, a traseira levantou. Então, começaram a percorrer uma encosta íngreme feita de cascalho, em direção à praia repleta de pedregulhos lá em baixo.
Jason largou o corrimão e foi para junto de Stella.
A escarpa parecia feita pelo homem com as mesmas pedras soltas que se encontravam na praia, provavelmente teriam sido arrastadas para lá com um buldózer. Mas, à primeira vista, era possível que a escarpa passasse completamente despercebida, sobretudo por estar escondida pela curvatura do cabo.
Ao fundo da encosta, o CAAT alcançou a praia e seguiu pela base dos enormes penhascos, com as suas lagartas a remexerem a areia. Em frente, surgiu a abertura de uma caverna, que parecia esculpida por um golpe de machado contra a rocha debruada de gelo. O CAAT abrandou e fez uma viragem brusca em direção àquela boca escura. Os seus faróis dianteiros penetraram a escuridão como lanças. O túnel terminou passados apenas trinta metros, bloqueado por uma parede fria de aço azul. Erguia-se por cinco andares e contava com cem metros de largura. As extremidades da barreira pareciam fixadas com cimento.
Enquanto o CAAT entrava, um enorme par de portas duplas abriu-se nessa parede, deslizando para os lados sobre carris. Uma luz brilhante, que quase cegava depois de tantas horas de escuridão, inundou o túnel e incidiu sobre eles.
— Bem-vindos a Hell’s Cape — disse Stella.
Para além da parede, estendia-se um espaço cavernoso, pavimentado a aço, mas com paredes de pedra natural. Parecia uma mistura entre o convés de um porta-aviões e o maior hangar industrial do mundo. Outro CAAT do mesmo tamanho encontrava-se estacionado ao lado de seis mais pequenos, cada um com metade do tamanho do irmão mais velho. Havia também duas aeronaves equipadas com flutuadores a serem reparadas do outro lado. Noutro lugar, um trio de empilhadoras transportava caixotes, enquanto um sistema de roldanas no teto trazia para dentro um contentor.
O condutor dirigiu o veículo para o meio daquele caos e encostou ao lado do seu gémeo, enquanto as enormes portas se fechavam atrás deles. O CAAT parou com um pesado suspiro dos seus motores a gasóleo.
Assim que pararam, Stella acenou-lhes na direção das escadas.
— Vamos desembarcar. O meu pai está ansioso por vos conhecer.
Stella conduziu a equipa americana até ao andar de baixo e por uma rampa que se estendia da traseira do veículo. O ar estava estranhamente quente, cheirava a óleo e a produtos de limpeza químicos. Jason ficou boquiaberto com a dimensão daquelas instalações.
Stella conversou com o agente britânico franzino que fora recebê-los, ofegante, com o olhar preocupado. Quando terminou, virou-se para eles e apontou para o outro lado da caverna.
— Ele está lá em cima, na plataforma de observação.
Do outro lado deste hangar gigantesco, uma enorme estrutura de aço ocupava por completo as traseiras da caverna. Estendia-se por oito andares, com escadas e pontes interligadas. O último nível tinha uma fileira de janelas altas de vidro.
Havia algo vagamente familiar naquela disposição.
Gray também reparou.
— Aquilo é a superstrutura de um navio de guerra?
Stella acenou com a cabeça.
— Pertence a um contratorpedeiro britânico desmantelado. Foi trazido para aqui às peças e montado de novo.
À semelhança das portas exteriores, a superstrutura reaproveitada estava selada em todas as extremidades por cimento, como os vidros de uma janela fixados à sua moldura.
— Sigam-me — disse Stella, virando-se. — Mantenham-se perto.
Enquanto obedecia às suas ordens, Jason distraiu-se com o traseiro de Stella.
Kowalski apanhou-o a olhar e deu-lhe uma cotovelada.
— Continua a andar, miúdo. Aqui só há problemas.
Ao sentir as faces a aquecer, Jason olhou para outro lado que não na direção de Stella. O grupo passou por fileiras de sacos de areia empilhados à altura da cintura e três suportes de metralhadora que suportavam Brownings M2, feitas na América, todas apontadas para as portas exteriores.
Em cima, observou o contentor a passar nos carris no teto e a desaparecer para dentro da superstrutura. Pela primeira vez, reparou que o contentor tinha janelas espessas, como um teleférico blindado. E que uma saliência na parte de baixo parecia uma torre de tiro.
Jason apressou-se para acompanhar os outros.
Que raio de sítio é este?
11h14
Gray seguiu Stella até ao nível mais baixo da superstrutura de aço. Stella juntou-os num elevador e carregou no botão para o andar mais alto.
Quando começaram a subir, Gray perguntou:
— Este lugar foi construído há quanto tempo?
Enquanto atravessava o hangar exterior, parecia-lhe que a construção da estação britânica tinha um ar descuidado, como se alguém a tivesse construído à pressa.
— A construção começou há seis anos — respondeu Stella. — É um trabalho demorado. Ainda estamos a aperfeiçoar e a acrescentar quando o orçamento e as circunstâncias o permitem. Mas a busca deste local já data de alguns séculos.
— O que quer dizer com…
As portas do elevador abriram-se, interrompendo a sua pergunta.
Stella fez-lhe sinal para saírem.
— O meu pai explica-lhes… se houver tempo.
Caminharam pelo que fora, em tempos, a ponte do contratorpedeiro, com uma fila de janelas altas que davam para o hangar atarefado em baixo. A maior parte da ponte fora alargada e transformada numa série de escritórios centrados em redor de uma convidativa biblioteca. Tapetes persas suavizavam o chão de aço, enquanto estantes de madeira, repletas de livros, se estendiam por todas as paredes. Por ali, várias secretárias e mesas acomodavam mais livros, juntamente com revistas e papéis espalhados. Também reparou nos plintos que seguravam vários artefactos: pedaços de fósseis, pedras cristalinas invulgares, livros antigos que eram mantidos abertos, expondo diagramas de biologia ou esboços de animais e pássaros desenhados à mão. O tomo mais volumoso era uma enorme coletânea de mapas requintados e iluminados, que pareciam ter vários séculos, a tinta metálica ainda a cintilar nas suas páginas.
A renovação parecia mais a de um museu, como algo saído da ala de História Natural da Royal British Society.
Do lado oposto da sala, um homem magro e elegante de cabelo grisalho saiu de uma reentrância oculta entre duas estantes. Embora parecesse já ter quase setenta anos, caminhou rapidamente na direção deles. Vestia calças cinzentas, presas por suspensórios, e uma camisa branca impecável, com sapatos engraxados. Parou apenas o tempo suficiente para pegar no casaco que se encontrava pendurado nas costas da cadeira, por detrás de uma secretária ampla com um serviço de chá a fumegar em cima. Vestiu o casaco rapidamente e aproximou-se para os cumprimentar.
— Comandante Pierce, obrigado por ter vindo.
Gray reconheceu o professor Alex Harrington do dossiê da missão. Apertou a mão do homem, achando-a magra, mas ainda com muita força. Desconfiava que este professor passava mais tempo a fazer trabalho de campo do que dentro de uma sala de aula.
— A Stella contou-me os problemas que tiveram na estação Halley — disse Harrington. — Desconfio que o nosso problema seja o mesmo. Nomeadamente o major Dylan Wright, antigo líder do Esquadrão X.
Gray lembrava-se do homem corpulento que comandara a equipa de assalto na DARPA, com os seus olhos frios e cabelo rapado louro, quase branco. Na sede da Sigma, Kat identificara o líder como sendo Dylan Wright.
— Como o conhece? — perguntou Gray.
— O Wright e a sua equipa escolhida a dedo foram destacados como equipa de segurança da base nos primeiros tempos. Depois, alguém o influenciou ou então ele esteve sempre infiltrado. Desconfio que tenha sido a última hipótese, pois ele sempre foi um cretino do pior, descendia de uma família aristocrática qualquer que caiu em desgraça, até costumava andar armado com uma espingarda de caça de fabrico inglês. De qualquer forma, começámos a ter problemas por aqui, provas de sabotagem, juntamente com o desaparecimento de ficheiros, até mesmo amostras roubadas. Há um ano e meio, foi apanhado pelas câmaras de segurança, mas conseguiu fugir com a sua equipa, matando três soldados no caminho, todos homens bons e leais.
A imagem do diretor Raffee, executado no seu gabinete, veio à cabeça de Gray.
— Se ele destruiu a Halley — continuou Harrington —, vai voltar aqui para nos matar a todos, sobretudo aproveitando o facto de as comunicações estarem em baixo em todo o continente. E, o que mais me preocupa, é que o homem sabe tudo o que há para saber sobre Hell’s Cape.
— Porque acha que ele vai voltar? O que é que ele quer?
— Talvez apenas vingança. O homem sempre foi vingativo. Mas acho que tenciona fazer algo bem pior. O nosso trabalho aqui, além de ser sensível e confidencial, é muito perigoso. Ele pode provocar um enorme caos.
— E qual é a natureza da vossa investigação aqui?
— A Natureza, em si, na verdade. — Harrington suspirou, o seu olhar cansado e assustado. — É melhor começarmos pelo princípio.
Aproximou-se da sua secretária, acenando-lhes para que se juntassem a ele. Depois, pressionou a palma da mão sobre o canto de um pedaço de vidro embutido no tampo da secretária. Um ecrã LCD de 40 polegadas iluminou-se, trazendo um pouco de modernidade a este museu da Royal British Society.
Harrington deslizou os dedos e teclou na superfície tátil. Com um simples movimento dos dedos, espalhou várias fotografias pelo ecrã, tão facilmente como se estivesse a distribuir cartas num jogo real.
Gray reparou no nome do ficheiro que brilhava junto ao topo do ecrã.
D.A.R.W.I.N.
Já o vira antes e lembrou-se que era o acrónimo de Develop and Revolutionize Without Injuring Nature (Desenvolver e Revolucionar Sem Prejudicar a Natureza). Era a filosofia de conservação de base que Harrington e Hess partilhavam. No entanto, manteve-se em silêncio, deixando o professor controlar a história.
— Tudo remonta à expedição do HMS Beagle e à viagem de Charles Darwin por esta região. E ao encontro fatídico com os homens da tribo fueguina da Terra do Fogo. Aqui está um esboço antigo feito a lápis desse primeiro encontro, junto ao estreito de Magalhães.
O professor carregou no ecrã e aumentou uma fotografia da velha chalupa britânica e de um grupo de nativos em pequenos barcos.
— Os fueguinos eram marinheiros e pescadores exímios, navegavam os mares à volta da ponta da América do Sul e mais além. De acordo com um diário secreto escrito por Darwin e guardado no Museu Britânico, o comandante do Beagle obteve um mapa que retratava uma parte da linha costeira da Antártida, juntamente com um pedaço de território sem gelo. Tentando reclamá-lo para a Coroa, o Beagle procurou a sua localização… mas o que descobriram foi de tal forma assustador que o local foi apagado para sempre dos registos da viagem.
Jason estudou a imagem e perguntou:
— O que é que eles descobriram?
— Já lá chego — disse Harrington. — Darwin não podia deixar que esse conhecimento fosse perdido para sempre, por isso conservou o mapa junto ao seu diário secreto. Apenas alguns cientistas privilegiados tiveram acesso a ele. A maioria considerava a sua história demasiado fantasiosa para ser credível, sobretudo porque a local só voltou a ser encontrado um século depois.
— Hell’s Cape — disse Gray. — Este lugar.
— Ao longo da maior parte do século passado, plataformas compactas de gelo esconderam a verdadeira linha de costa. Foi só depois do degelo das últimas décadas que a conseguimos descobrir novamente. Ainda assim, tivemos de utilizar bombas para soltar os últimos pedaços de gelo a fim de chegar a este lugar e estabelecer a nossa base. Só depois é que percebemos que não tínhamos sido os primeiros a chegar aqui desde a fatídica viagem de Darwin. Mas já me estou a adiantar na história.
Harrington colocou mais mapas no ecrã. Gray reconheceu o que fora desenhado pelo explorador turco Piri Reis, juntamente com o mapa de Oronteus Finaeus.
— Estes mapas antigos sugerem que, algures no passado, há cerca de seis mil anos, grande parte da costa não tinha gelo. O almirante turco que desenhou este primeiro mapa declarou que o compilara com base em mapas muito antigos, alguns datados do século quatro antes de Cristo.
— Há tanto tempo assim? — perguntou Jason.
O professor acenou com a cabeça.
— Naquele tempo, os minoicos e os fenícios eram marinheiros exímios, construindo gigantescos navios de guerra a remos que navegavam mares e oceanos. Por isso é possível que tenham alcançado este continente mais a sul e registado a sua descoberta. O almirante Piri Reis compilou a sua carta de navegação a partir de mapas guardados numa biblioteca em Constantinopla, mas até ele desconfiava que algum do seu material de origem mais antigo tivesse vindo da famosa Biblioteca de Alexandria antes de ter sido destruída.
— Porque achava isso?
— Ele mencionou que alguns dos mapas que estudou em Constantinopla tinham anotações que sugeriam uma origem egípcia. E, de acordo com alguns arqueólogos, os antigos egípcios já navegavam pelos mares em 3500 antes de Cristo.
— Há quase seis mil anos — disse Gray. — Quando a costa não tinha gelo. Mas porque estão estes mapas relacionados com Darwin?
— Depois de regressar a Inglaterra, Darwin ficou obcecado por descobrir mais sobre o que encontrara no local a que chamara Hell’s Cape. Reuniu mapas antigos e pesquisou registos de grande antiguidade, à procura de qualquer outra menção deste lugar. Também tentou compreender a sua geologia única.
— Porquê única? — perguntou Kowalski. — Parece uma enorme caverna.
— É muito maior do que imagina. Tudo aquecido pela atividade geotérmica. Na verdade, quando Darwin descobriu a entrada desta caverna, estava manchada de vermelho-vivo devido ao óxido de ferro que saía da sua abertura em forma de vapor, erguendo-se de um mar escaldante de água salgada rica em ferro, que se encontra nas profundezas. Do outro lado do continente podemos encontrar uma formação geológica semelhante, chamada Cataratas de Sangue, nos vales secos de McMurdo, perto da vossa base americana.
Gray nem conseguia imaginar quão sinistra aquela visão deve ter sido para aqueles homens da era vitoriana que seguiam a bordo do Beagle.
— A obsessão de Darwin tomou conta da sua vida, de tal maneira que atrasou a publicação da sua famosa dissertação sobre a evolução, A Origem das Espécies. Sabiam que foi quase vinte anos depois da sua viagem a bordo do Beagle que Darwin publicou o seu trabalho revolucionário? Sabemos que não foi o medo de causar controvérsia que atrasou a publicação. Foi outra coisa qualquer.
Harrington agitou as mãos por cima do conjunto de mapas.
— Foi esta obsessão. Além disso, o que ele descobriu nestas cavernas, penso eu, pode ter sido fundamental para o ajudar a formular a sua teoria de que as espécies evoluem de forma a adaptar-se ao seu ambiente e de a sobrevivência do mais apto ser a força motriz da Natureza. Tal teoria é certamente comprovada aqui.
A curiosidade de Gray tornou-se ainda mais aguçada.
O que se esconde aqui?
— Qual é a dimensão deste sistema cavernoso?
— Não temos a certeza. Não vale a pena utilizar georradares devido aos muitos quilómetros de gelo que cobrem o interior do continente. Levantamentos deste tipo são ainda mais complicados de fazer porque este sistema se estende por baixo das montanhas costeiras.
Gray imaginou a cordilheira recortada dos penhascos de Fenriskjeften.
O professor continuou:
— No entanto, já enviámos drones com equipamento de radar para o interior do sistema tão longe quanto conseguimos. Julgo que os túneis e as cavernas se estendam por grande parte do continente, talvez até cheguem ao lago Vostok ou até mesmo à cratera da Terra de Wilkes, o que abre algumas possibilidades interessantes relativamente às origens do que descobrimos. E somos capazes de ter alguma corroboração do seu enorme tamanho por parte de fontes históricas.
— Que fontes históricas? — perguntou Jason.
— Os nazis… mais especificamente o cabecilha da marinha alemã na altura.
— O almirante Dönitz — disse Jason, fazendo uma careta assim que o nome deixou os seus lábios, revelando sem querer que já tinham acedido a alguns destes ficheiros D.A.R.W.I.N.
No entanto, Harrington não reagiu. Talvez assumisse que esse conhecimento era do domínio público. Contudo, Stella lançou um olhar desconfiado ao jovem.
Harrington continuou:
— Dönitz defendia que os nazis tinham descoberto uma trincheira debaixo de água que se encontrava ligada por túneis ao coração deste continente, formada por uma série de lagos, rios, cavernas e túneis de gelo interligados.
Gray lembrou-se de Jason ter partilhado as palavras do almirante alemão durante os julgamentos de Nuremberga, de que os nazis tinham descoberto um oásis paradisíaco no meio do gelo eterno.
Jason falou novamente, mais devagar, claramente cuidadoso depois do seu deslize.
— Não foram os únicos. Sabiam que o governo dos Estados Unidos da América já detonou bombas nucleares nesta área? Justificaram-no dizendo que estavam apenas a testar armas nucleares, mas faz-me pensar se não estariam antes a tentar encobrir uma grande confusão, a tentar aniquilar algo que, inadvertidamente, deixaram escapar. Ocorreu na mesma área onde foi descoberto um vírus único em 1999, um que parecia ser universalmente patogénico.
Gray lembrava-se de como essa descoberta intrigara Hess e Harrington, que o descreveram como a chave dos portões do Inferno.
— Foi o doutor Hess que reconheceu o código genético único desse vírus, algo muito diferente dos nossos. Foi um indicador que nos levou a descobrir este lugar, embora ainda tenha demorado outros oito longos anos a descobrir a abertura deste sistema cavernoso.
— Até o continente ter derretido o suficiente para revelar os seus segredos — disse Gray.
— Exatamente.
Jason aclarou a garganta.
— Mas como tem a certeza de que os americanos e os alemães já aqui estiveram?
— Porque…
Um retumbante boom estremeceu o mundo, fazendo os vidros das janelas abanar nos caixilhos. Todos se baixaram, esperando o pior, mas, ao ver que a superstrutura aguentou, Gray correu agachado em direção à fileira de janelas que dava para o enorme hangar. Alcançou-as a tempo de ver uma das enormes portas de aço a sair das calhas e a ser projetada no ar, acabando por esmagar uma das aeronaves flutuadoras que se encontrava estacionada.
Fumo negro encheu o hangar. Vultos de armadura branca como a neve entraram encobertos pela nuvem.
Tinha de ser a equipa do major Wright.
Começou um tiroteio.
Dois soldados britânicos foram abatidos, mas um alcançou um suporte da metralhadora e começou a disparar contra o inimigo. O metralhar da arma era ruidoso o suficiente para chegar ao topo da superstrutura… até uma granada-foguete atingir a posição do homem com uma explosão atroadora.
— Vamos! — disse Harrington, puxando a manga de Gray. — Não os podemos deixar soltar o inferno sobre o mundo!
Gray seguiu o professor para o lado oposto da ponte, perseguido pelos sons do combate que decorria em baixo. Na parede do fundo, o professor agachou-se e atravessou o mesmo par de cortinas pelas quais entrara.
Gray seguiu-o, levando toda a gente consigo.
Para lá das cortinas, estendia-se uma longa passagem em direção às traseiras da superstrutura. As suas botas batiam ruidosamente no chão de aço. O túnel terminava na plataforma de observação envidraçada na parte de trás da estação. Estava ligada ao teto da caverna. Pelo teleférico parado ao seu lado, dava para perceber que esta plataforma de aço e vidro era também a última paragem do sistema de roldanas que corria por cima.
Gray chegou à plataforma pouco depois de Harrington.
Quando viu o que se estendia à sua frente, parou, demasiado aturdido para se mexer, para falar.
O mesmo não podia ser dito de toda a gente.
— Okay — disse Kowalski —, agora o maldito nome faz sentido.