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30 de abril, 08h18 AMT
Boa Vista, Brasil

Em pânico com a emboscada repentina, Jenna escondeu-se atrás de uma mesa virada enquanto as balas destruíam o café.

Há apenas um momento, um trio de homens com máscaras irrompera da cozinha com espingardas em riste. Ao mesmo tempo, a janela da frente estilhaçara atrás deles, atingida por alguém que disparava da rua.

Era graças aos reflexos rápidos de Drake que Jenna ainda estava viva. Quando dispararam os primeiros tiros, Drake pontapeou a cadeira onde Jenna se encontrava sentada, amparou-lhe a queda e rolou o seu corpo para debaixo do dele. Um dos fuzileiros, Marlow, virou de lado a pesada mesa de madeira, fornecendo-lhes um local onde se abrigarem temporariamente. O seu colega, Schmitt, disparou contra os atacantes.

— Painter… — disse ela, num sobressalto.

O diretor ainda se encontrava na rua.

— Vou já tratar disso — disse Drake. — Fica aqui.

Drake levantou-se de um pulo, para tentar ver através da janela estilhaçada. Na rua, o ritmo em staccato de uma pistola soou, contrastando com o fogo mais ruidoso das espingardas.

Deve ser Painter a dar luta.

— Parece que ele está ferido, imobilizado — reportou Drake, enquanto se agachava novamente. — Malcolm, Schmitt, cubram-me e aguentem o forte.

Sem esperar por uma resposta dos colegas de equipa, Drake saltou do seu esconderijo. Ambos os fuzileiros continuaram o fogo de cobertura enquanto o sargento da artilharia se atirava de cabeça pela janela.

Jenna agarrou na sua mochila e tirou a arma, pronta para ajudar.

Enquanto os seus dedos apertavam o cabo da pistola, o tiroteio no interior, bem como no exterior, intensificou-se. Um dos atiradores caiu em cima de uma mesa. Os outros dois refugiaram-se atrás do balcão, disparando de um lugar bastante abrigado.

Malcolm praguejou, voltando a abrigar-se, com a orelha a sangrar.

Jenna levantou-se e assumiu a posição de Malcolm, sabendo que qualquer sinal de fraqueza, qualquer falta de retaliação, era um risco que poria o inimigo em vantagem e possibilitaria a sua vitória. Disparou a sua Glock, travando o avanço de um dos atiradores que começara a ganhar terreno.

Jenna aproveitou aquela fração de segundo para estudar o café. Corpos espalhados pelo chão, sangue salpicado sobre os azulejos. Reparou em ligeiros movimentos. Alguns dos cerca de seis clientes e funcionários ainda estavam vivos.

Contudo, foi outro movimento que lhe captou a atenção.

Um espelho atrás do balcão fora partido pela primeira rajada de tiros, mas, no reflexo estilhaçado dos pedaços que restavam, Jenna viu um dos inimigos de joelhos a recarregar a espingarda.

Não vai existir uma oportunidade melhor…

Disparou novamente na direção do primeiro atirador.

— Agora — gritou ela para os dois fuzileiros.

Não teve tempo de explicar mais, por isso saiu a correr de trás da mesa para o balcão, na esperança de que eles percebessem a sua intenção.

E perceberam.

Malcolm e Schmitt protegeram-lhe o flanco, disparando contra o atirador que ainda constituía uma ameaça. No meio de um tiroteio tão intenso, uma munição ricocheteou da estrutura de metal de uma cadeira e atingiu o atirador, projetando-o para trás.

Jenna chegou ao balcão e saltou bem alto, com os pés primeiro, deslizando a anca pelos pratos partidos e utensílios espalhados por cima do balcão. Manteve sempre o olhar fixo no reflexo do inimigo escondido. Já acabara de recarregar e estava a levantar-se para ir em defesa do colega.

Assim que ele se levantou, Jenna já tinha a perna esquerda esticada e acertou-lhe no nariz, tapado pela máscara, com o salto da bota. A sua cabeça foi para trás com um som bastante agradável de ossos e dentes a ranger. O seu corpo caiu no chão inerte, inanimado.

De um dos lados, Schmitt disparou uma rajada contra o outro atirador, enquanto este tentava apontar a sua espingarda.

A cessação súbita do tiroteio dentro do café deixou apenas um zumbido nos seus ouvidos, abafando a troca de tiros no exterior.

Malcolm dirigiu-se agachado para junto de Jenna, enquanto Schmitt espreitava para dentro a cozinha, entrando com a pistola em riste.

— Está tudo seguro aqui atrás! — gritou ele, voltando para junto deles.

Com o rosto vermelho de fúria, Malcolm ergueu o cano da sua arma para o rosto do homem inanimado no chão.

— Não o faças — disse Jenna. — Podemos precisar que ele fale.

Malcolm acenou com a cabeça.

Jenna manteve a sua Glock apontada para o homem caído no chão.

— Eu vigio-o. Vai ajudar o Painter e o Drake.

Pela intensidade do tiroteio no exterior, eles estavam em apuros.

08h20

— Estão a cercar-nos — disse Drake.

Painter também já reparara. Estava de cócoras, encostado ao fuzileiro, atrás de um caixote de lixo metálico. O abrigo mal servia de refúgio para os dois homens, que disparavam um de cada lado contra os três homens do outro lado da rua.

Infelizmente, o inimigo tinha uma vantagem óbvia. Uma fila de carros contornava o passeio, proporcionando-lhes bastante espaço para se abrigarem e movimentarem. O lado da estrada em que Painter e Drake se encontravam era uma área onde era proibido estacionar.

Ainda assim, se Drake não tivesse saído disparado da janela do café, provavelmente Painter já estaria morto.

A chegada súbita e oportuna do sargento de artilharia fez com que os três atiradores saíssem do meio da estrada e se abrigassem atrás dos carros. Contudo, o trio começava agora a separar-se. Dois homens corriam ao longo da rua, agachados atrás dos veículos, um à esquerda e o outro à direita, enquanto o terceiro continuava a bloqueá-los, as suas rajadas a atingir e a ricochetear no caixote de lixo.

Encurralados, Drake e Painter mal se conseguiam mexer. Demoraria poucos segundos até os dois homens que se aproximavam de lado chegarem a locais de onde conseguiriam disparar de forma certeira e desimpedida.

— Eu cubro-te — disse Painter, colocando um novo carregador. — Volta para dentro. Tenta sair pelas traseiras com os outros.

Painter reparara que estava silêncio no interior do café… mas seria um bom ou um mau sinal?

Em seguida, irrompeu um novo tiroteio, vindo da parte de dentro da montra do café e atingindo a fila de carros estacionados do outro lado da estrada.

Apanhado de surpresa, o atirador que se encontrava do lado esquerdo foi atingido com uma rajada no pescoço, caindo no chão a esguichar sangue. O atirador à direita teve um destino semelhante, sendo atingido com um tiro na testa.

O terceiro atacante escondeu-se atrás de um modelo antigo da Volvo, reconhecendo de imediato que a situação se invertera.

Drake pôs-se em bicos de pés, olhando de relance para Painter, para o seu ombro ferido.

— Nós apanhamos este — disse ele, obtendo um acenar de cabeça dos outros dois fuzileiros, enquanto saíam para a rua. — Os fuzileiros são feitos para isto.

Painter sabia que não adiantava protestar.

— Tentem apanhá-lo com vida.

Ao aperceber-se do seu destino iminente, o homem escondido começou a gritar, não para eles, mas, ao que parecia, para um telefone ou rádio, provavelmente a pedir ajuda ou reforços.

Painter percebeu algumas palavras em espanhol, mas o resto era um misto de algum patoá nativo desconhecido. Uma palavra em espanhol captou a sua atenção. Foi repetida novamente, com ainda mais urgência.

Mujer.

Painter ficou tenso, olhando para dentro do café.

Mujer significa mulher.

— Onde está a Jenna? — perguntou Painter, o seu coração a bater com mais força.

Malcolm manteve o seu olhar fixo no Volvo do outro lado da estrada.

— Lá dentro. Está tudo seguro.

Ou talvez não.

Ignorando a ameaça do atirador, Painter correu em direção à porta e entrou. Segurou a pistola em riste com o braço bom e estudou as mesas e os corpos, caminhando por entre os destroços do tiroteio. Espreitou atrás do balcão, dentro da cozinha.

Um tiro ecoou vindo da rua.

Passado um momento, Drake entrou no café pela porta da frente. O seu rosto parecia perturbado, receoso, revelando uma emoção profunda, para lá da simples preocupação em relação a um colega de equipa.

— Onde está a Jenna? — perguntou ele.

— Desapareceu. — Painter acenou com a cabeça em direção à rua, sabendo que só tinham uma oportunidade de descobrir quem a levara. — E o terceiro atirador?

Drake compreendeu a importância da sua pergunta, ficando pálido.

— Matou-se.

Morto.

Painter respirou fundo.

Então, perdemo-la.

08h22

Jenna recuperou os sentidos entre ondas de dor. A escuridão foi estilhaçada por uma luz demasiado brilhante, por sons demasiado altos. Levantou a cabeça do chão trepidante de uma carrinha em movimento, despoletando uma dor lancinante que se estendia de uma ferida na têmpora esquerda até ao pescoço.

Auuu…

Conteve um gemido, com medo de atrair a atenção dos seus raptores. Fez uma rápida avaliação da sua situação, o coração a bater com força na garganta. De onde se encontrava, só conseguia ver pela janela os andares do topo de edifícios a passar e linhas elétricas.

Um fiozinho de sangue escorria pela sua face esquerda.

Lembrou-se da emboscada, permitindo que a raiva que sentia controlasse o terror que a gelava. Estava agachada atrás do balcão do café, a observar Malcolm e Schmitt a sair pela janela e a começar a disparar na rua. O som ensurdecedor do tiroteio encobriu a aproximação do seu atacante vindo da zona da cozinha. O único aviso foi um suave aroma doce.

Virou-se e viu uma mulher morena de olhos sombrios, agachada a um metro dela, com as plantas dos pés descalços posicionadas de forma a desviar-se dos pedaços de vidro partido no chão… não para evitar ser cortada, mas na posição furtiva de um animal selvagem.

Antes de Jenna conseguir reagir, a mulher atacou-a, movendo o braço a uma grande velocidade. A coronha de uma pistola atingiu o crânio de Jenna. Viu um clarão de luz, seguido de uma escuridão absoluta, e perdeu a consciência.

Quanto tempo estive desmaiada?

Não lhe parecia ter sido muito. Não mais do que um ou dois minutos, estimou ela.

Do banco do passageiro, um rosto virou-se para a ver. O longo cabelo preto emoldurava um lindo rosto moreno. A sua pele tinha um tom de caramelo quente, os seus olhos negros brilhavam. Ainda assim, um vestígio de ameaça perpassava naquelas belas características físicas, desde os cantos austeros dos seus lábios cheios ao brilho implacável do seu olhar. Era como confrontar o focinho frio de uma pantera na árvore, revelando a natureza em toda a sua beleza… e letalidade.

Jenna queria desviar o olhar daqueles olhos penetrantes, mas manteve o contacto visual, recusando-se a desistir. Não que pudesse fazer alguma coisa. Tinha os pulsos e os tornozelos presos com tiras de plástico.

O som estridente de um toque de telemóvel interrompeu o confronto. A mulher virou-se para a frente, enquanto o condutor lhe passava um telemóvel.

Colocou-o junto ao ouvido.

Oui — respondeu ela, a sua voz tão sedosa, como o tom moreno da sua pele. Ela ouviu durante alguns momentos, depois olhou de relance para trás, para Jenna. — Oui, j’ai fini.

Jenna sabia que devia ser o tópico da conversa. Alguém estava a confirmar que ela fora capturada ou, pelo menos, que um dos membros da equipa americana fora feito prisioneiro. Esforçou-se por escutar o resto da conversa, mas não falava francês. Ainda assim, era capaz de adivinhar quem estava do outro lado da linha.

Cutter Elwes.

Era provável que Cutter tivesse alguém a vigiar aquele bangalô, para garantir que qualquer rasto que Amy deixasse em Boa Vista fosse constantemente monitorizado. Ou talvez aquela proprietária prestável afinal não fosse assim tão prestável e tivesse espalhado a notícia de que os americanos tinham aparecido. De qualquer forma, Cutter devia ter mobilizado uma equipa local para capturar um dos americanos, alguém que ele pudesse interrogar e descobrir o que o mundo sabia sobre ele, sobre as suas operações.

Enquanto homem morto, Cutter desejava claramente manter esse estatuto.

A carrinha acelerou quando saiu do centro de Boa Vista. Jenna esticou-se para olhar por cima do ombro, temendo por Drake e pelos outros. Será que tinham sobrevivido ao tiroteio? Rezou para que sim, mas não tinha qualquer esperança de que eles conseguissem descobri-la ou segui-la.

Virou o rosto novamente para a frente, reconhecendo a terrível verdade.

Estou por minha conta.

Passados mais alguns minutos, a carrinha travou de forma brusca, fazendo com que Jenna deslizasse meio metro para a frente. Levantou-se rapidamente. Do vidro da frente via-se um bairro degradado, as casas em cima umas das outras, nitidamente construídas com o que fora possível encontrar. Mas este não era o destino final dos seus raptores.

Um velho helicóptero encontrava-se parado num heliporto de terra batida. Os seus rotores já cortavam o vento, preparado para levantar voo.

Jenna desesperou.

Para onde me levam?

08h32

Ainda no laboratório principal de Cutter, Kendall encontrava-se à entrada de um laboratório de biossegurança nível 4, onde alguns técnicos trabalhavam no interior com os fatos de proteção equipados com mangueiras de ar amarelas. Há alguns momentos, Cutter afastara-se para atender uma chamada. Kendall respirou fundo, ainda com dificuldade em decidir se ajudava aquele sacana ou não.

Se não ajudar, o mundo pode ser destruído.

Se ajudar, o resultado final não será o mesmo?

Kendall estava na corda bamba, a sua decisão dependente de uma questão que ainda não fora respondida: qual era o plano de Cutter para o eVLP sintético de Kendall? Lembrou-se da descrição preocupante de Cutter daquele invólucro oco perfeito.

Um cavalo de Troia… um sistema de entrega genética infalível.

Era evidente que Cutter tencionava encher o cavalo de Troia… mas com o quê?

Será que posso confiar nele quando diz que ninguém morrerá com o que quer que ele tencione colocar dentro desse invólucro oco?

Kendall tinha a cabeça a andar à roda, agradecido pela chamada que surgira e lhe dera mais tempo para tomar uma decisão. Utilizou o contratempo para estudar o espaço de isolamento que tinha à sua frente. Tal como a instalação de bioengenharia principal atrás dele, o laboratório de biossegurança nível 4 continha o mais recente equipamento de análise de ADN e manipulação genética. A parede do fundo tinha uma grande unidade refrigerada com portas de vidro. Filas de frasquinhos de vidro brilhavam por trás dessas portas.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha enquanto tentava imaginar o que estava guardado ali. No entanto, eram as quatro salas adjacentes ao lado do frigorífico que o aterrorizavam verdadeiramente. Cada sala continha um tipo diferente de equipamento médico. Reconheceu um simples aparelho de radiografias numa das salas e um de tomografia axial computorizada noutra. As duas últimas salas tinham um equipamento de ressonância magnética, para analisar os tecidos em profundidade, e um de tomografia por emissão de positrões, a fim de criar imagens a três dimensões de processos biológicos.

A presença destes equipamentos não deixava dúvidas.

Cutter avançara para testes em animais.

Mas quão avançados seriam esses testes?

Cutter regressou por fim, a sua atitude mais descontraída, como se tivesse recebido boas notícias.

— Parece que vamos ter um convidado dentro de pouco tempo. Mas temos muito trabalho para fazer antes disso, não é, Kendall?

Cutter levantou uma sobrancelha, curioso, aguardando uma resposta.

Kendall olhava fixamente para o laboratório de biossegurança nível 4.

— E juras que, se eu colaborar, se te ensinar a minha técnica, ninguém morrerá?

— Posso prometer-te que tenciono usar a tua técnica para algo absolutamente não letal. — Cutter franziu o sobrolho ao perceber a desconfiança que ainda se refletia no rosto de Kendall. — Talvez te consiga sossegar com uma pequena excursão. Não demora mais que alguns minutos.

Cutter virou-se e começou a andar.

Kendall apressou-se a ir atrás dele, mais do que feliz pelo atraso adicional. Mateo seguiu-o de perto, a sua sombra constante.

— Onde vamos? — perguntou Kendall.

Cutter sorriu-lhe, um entusiasmo pueril irradiava do seu rosto.

— A um lugar maravilhoso.

Ainda assim, quando Cutter se voltou, Kendall reparou no seu ombro esquerdo. Imaginou as cicatrizes profundas naquele lado. Servia para lembrar que, apesar das aparências, aquele rapaz já não existia há muito. Morrera naquela savana africana há muito tempo. Apenas restava um génio insensível e perturbado com ambições sombrias, profundamente amargurado com o mundo.

Saíram do laboratório genético principal e seguiram por um longo túnel natural. Kendall supôs que estivessem a ir em direção ao centro do planalto.

Cutter continuou a andar, a passos largos.

— Não somos assim tão diferentes, tu e eu.

Kendall nem se deu ao trabalho de discordar.

— Ambos nos preocupamos com este planeta, preocupamo-nos com o rumo que está a seguir. No entanto, enquanto tu tentas preservar o status quo através dos teus esforços de conservação, eu acredito que o mundo já está para além disso. O Homem é incapaz de reverter o que o seu engenho criou. Os nossos apetites tornaram-se demasiado vorazes, mas a nossa visão mais limitada. A conservação é uma causa perdida. Para quê salvar uma espécie aqui e ali quando toda a ecologia está a ruir à nossa volta?

— Era precisamente essa calamidade que eu estava a tentar resolver na Califórnia — contra-argumentou Kendall. — Encontrar uma solução a todos os níveis.

Cutter troçou:

— Tentando inserir a resistência e a adaptabilidade do AXN em várias espécies? Só estás a roubar de uma biosfera para preservar outra que está a morrer.

Kendall ficou tenso. Então, Cutter sabia o que ele estava a tentar alcançar. O termo científico era adaptação facilitada, que visava fortalecer o ADN para tornar uma espécie mais resistente a doenças ou torná-la mais robusta para sobreviver num ambiente inóspito. Recusava-se a pedir desculpa pelo seu trabalho. A sua investigação tinha o potencial de proteger muitas espécies da destruição que estava por vir, mas o seu trabalho ainda se encontrava numa fase inicial. Infelizmente, o que criara até agora precisava de ser aperfeiçoado, era perigoso e consumia tudo em que tocava, destruindo todo o ADN que encontrava.

Nunca devia ter sido libertado.

Com um novo acesso de raiva, Kendall confrontou Cutter.

— Então, o que sugeres que façamos? Nada?

Cutter virou-se para Kendall.

— Porque não? Devíamos deixar de interferir no curso da natureza. A natureza é o maior inovador de todos os tempos. Vai ser capaz de sobreviver à nossa ação… talvez não da forma como gostamos ou conhecemos. No final, a natureza vai preencher todas aquelas falhas deixadas por uma extinção em massa. As cinco extinções anteriores despoletaram uma explosão de evolução a seguir. Considera a humanidade. Os dinossauros tiveram de morrer para nós nos podermos erguer. É somente através da morte que nova vida pode surgir.

Kendall já ouvira o dogma principal do Dark Eden vezes suficientes para o reconhecer naquele momento. Resumiu-o em poucas palavras:

— A extinção em massa traz consigo a promessa de uma nova génese.

Cutter acenou com a cabeça.

— O início de um novo Éden.

Pelo fervor na voz de Cutter, parecia que estava ansioso por que isso acontecesse.

Kendall suspirou.

— O teu raciocínio tem uma falha fundamental.

— E qual é?

— A extinção é rápida. A evolução é lenta.

— Precisamente. — Cutter parou, parecendo prestes a abraçá-lo. — É exatamente isso! A extinção será sempre mais rápida que a evolução. Mas e se conseguíssemos acelerar a evolução?

— Como?

— Eu mostro-te.

Cutter chegara a uma porta maciça de aço que bloqueava o túnel. Pegou no cartão que tinha ao pescoço e disse:

— Os esforços de conservação devem preocupar-se menos em preservar a vida tal como ela existe e concentrar-se mais em cuidar do que virá a seguir.

— Mas como podemos saber o que vem a seguir?

— Criando-o. Conduzimos a evolução em direção a essa nova génese.

Kendall ficou de tal modo impressionado que se manteve em silêncio.

Cutter passou o cartão na ranhura e enormes ferrolhos começaram a destrancar lentamente.

— Isso é impossível — murmurou Kendall, incapaz de se convencer a si mesmo. A manipulação genética e a síntese de ADN já se encontravam no seu limiar.

— Nada é impossível — contra-argumentou Cutter, enquanto abria a porta. — Agora já não.

A luz brilhante do sol inundou o túnel mal iluminado, juntamente com uma mistura doce de aromas, atenuada pelo familiar cheiro almiscarado a marga e folhas em decomposição. Atraído por essa luz, pelo ar fresco, Kendall seguiu Cutter para fora da passagem para uma estrutura de metal que sobressaía na parede lateral de um penhasco.

Enquanto as suas botas percorriam ruidosamente a grade, Kendall esticou-se em direção ao céu azul. A plataforma ficava a quatro metros e meio da orla do que parecia ser uma enorme dolina. As paredes tinham sido escalonadas em vários níveis de jardins, repletos de orquídeas, bromélias, trepadeiras frondosas e flores de todas as cores e tamanhos. Cada nível estava interligado por um caminho que se estendia numa espiral ao longo das paredes interiores.

Kendall observou um carrinho de golfe elétrico a deslizar silenciosamente pelo caminho, a subir na sua direção, passando por portões que se abriam de forma automática quando se aproximava. Um sinal triangular amarelo com um relâmpago preto estava pendurado numa vedação próxima, indicando que a barreira de cada nível se encontrava eletrificada.

Uma súbita preocupação fez esmorecer o seu encantamento momentâneo.

Cutter encontrava-se num dos lados, a examinar minuciosamente as paredes mais próximas, como se estivesse à procura de ervas daninhas a crescer no seu fantástico jardim.

— Ah — disse, por fim. — Aqui em baixo. Vem ver com os teus próprios olhos.

Cutter abriu um portão no gradeamento da plataforma e desceu uma escadaria íngreme de metal para o caminho de pedra que passava por este nível. Kendall recusava-se a olhar para o enorme precipício ao centro. Era tão alto que nem conseguia ver o fundo, sobretudo com o sol da manhã ainda tão baixo no horizonte. Ainda assim, reparou no que pareciam ser copas gigantescas de árvores no fundo, provavelmente uma parte da floresta tropical brasileira enclausurada lá em baixo.

Com enorme cuidado, Kendall desceu das escadas de aço para o arenito antigo. Afastou-se da beira do caminho, para longe do precipício abissal. Do outro lado, estendia-se uma série de canteiros em relevo com cerca de nove metros de profundidade. Estavam encostados aos penhascos, onde convergiam com a espessa cascata de folhagem verde que cobria as paredes. Passadiços estreitos atravessavam essas plantações, que poderiam ser facilmente confundidas com uma espécie de horta orgânica, mas Kendall desconfiava que o que crescia ali era algo mais insidioso e tudo menos orgânico.

Reparou numa fila de formigas de pernas longas, cada uma do tamanho do seu polegar, a percorrer a beira de um dos canteiros.

Paraponera clavata — disse Cutter. — São vulgarmente conhecidas por formigas-bala. As pestinhas receberam essa alcunha porque a sua picada é considerada uma das piores. Está no topo do Índice Schmidt de Dor de Picadas. As suas vítimas comparam a dor da picada a ser alvejado, e a dor pode durar até vinte e quatro horas.

Kendall deu um passo para trás.

— Consegui duplicar a sua carga venenosa.

Kendall olhou com um ar reprovador para Cutter.

— Uma picada de uma destas formigas pode deixar-te paralisado e com dores agonizantes. Um dos meus trabalhadores foi picado acidentalmente. Partiu os molares de trás com as dores. Mas isso não é tudo. Aproxima-te.

Não, obrigado.

Kendall permaneceu no mesmo lugar.

Cutter pegou num pedaço de ramo partido.

— As formigas-bala, como todas as formigas, pertencem à ordem Hymenoptera, que inclui as abelhas e as vespas.

Cutter tocou numa das formigas preto-avermelhadas, que respondeu abrindo um par de pequenas asas membranosas, completamente invisíveis antes. Voou alguns centímetros, depois aterrou em cima das suas irmãs, agitando-as.

— Foi fácil devolver-lhes as asas — disse Cutter. — Foi só uma questão de juntar os genes de uma vespa caçadora. Sobretudo porque as duas espécies partilham a mesma herança genética.

— Criaste uma quimera — desembuchou Kendall, por fim. — Um híbrido genético.

— Precisamente. Ainda não consegui dar-lhes a capacidade plena de voo, até agora só aqueles voos repentinos como o que viste, mas tenho esperança de que, com o tempo e com as pressões ambientais, a natureza faça o resto e as ponha a voar como as suas primas vespas.

— Como? — perguntou subitamente Kendall. — Como conseguiste isso?

— Não foi assim tão difícil. Sabes tão bem como eu que a tecnologia existe. Foi só uma questão de ter vontade e recursos para o fazer, longe de qualquer tipo de supervisão e regulação. Já reparaste que o meu laboratório está equipado com várias estações que utilizam a tecnologia CRISPR-Cas9 mais recente. Um procedimento que aperfeiçoei ainda mais, devo acrescentar.

Isso era uma notícia aterradora. A CRISPR-Cas9 permitia manipular qualquer parte do genoma com tamanha precisão que chegara a ser comparado à edição de letras individuais numa enciclopédia sem criar um único erro ortográfico.

— E, de certeza que conheces as técnicas MAGE e CAGE desenvolvidas por George Church.

Kendall sentiu o sangue gelar-se-lhe nas pernas. Tal como a CRISPR-Cas9, aquelas duas novas tecnologias — multiplex automated genome engineering (MAGE), engenharia genómica automatizada em multiplex, e conjugative assembly genome engineering (CAGE), engenharia genómica por ligação conjugada — eram várias vezes chamadas máquinas de evolução. Estas duas tecnologias de edição genética eram, de facto, isso mesmo, capazes de realizar automaticamente milhares de alterações genéticas em simultâneo. Conseguiam introduzir milhares de anos de evolução em poucos minutos.

As técnicas MAGE e CAGE traziam consigo a promessa de mudar a biologia sintética para sempre, de a levar a novos limites… mas onde nos levariam esses limites?

Kendall olhou aterrado para a fila de enormes formigas.

Cutter girou o raminho na sua mão, aparentemente desiludido com a reação de Kendall.

— Li num artigo que escreveste no ano passado que defendias a utilização de CAGE e MAGE enquanto ferramentas para ressuscitar espécies perdidas.

Cutter estava certo. Estas novas tecnologias de edição genética tinham um enorme potencial. Os investigadores poderiam pegar no genoma intacto de um animal vivo e começar a editar e a fazer alterações ao ADN, convertendo-o lentamente no genoma de uma espécie semelhante extinta.

— Começa com um elefante e és capaz de conseguir ressuscitar um mamute a partir dos seus genes — resmungou Kendall em voz alta.

Tal era possível não apenas em teoria. Um russo chegara mesmo a criar uma reserva experimental na Sibéria, chamada Pleistocene Park, onde, depois de criar estes mamutes, tencionava deixá-los andar à solta.

Desextinção foi a palavra que utilizaste no artigo — disse Cutter com desdém. — É uma distração infeliz. Utilizar uma tecnologia tão prometedora para um fim conservacionista tão limitado. Tudo o que estás a fazer é abafar a capacidade de a natureza responder aos danos provocados pela humanidade.

— E esta é a tua solução? — troçou Kendall, acenando para a fila de formigas pretas.

— Isto é apenas parte de um todo. Enquanto tu e os teus colegas vivem no passado, procurando a salvação através da desextinção, eu olho para o futuro, para me preparar para o que está por vir, com um plano de renaturalização.

— Renaturalização?

— Reintroduzir espécies-chave, animais e plantas que têm maior impacto no ambiente.

— Como as tuas formigas.

— Manipulei as minhas criações, todas as minhas criações, para serem mais fortes, com as ferramentas necessárias para sobreviver ao Homem. Juntamente com inovações mais recentes.

Cutter pegou no raminho e fez com que uma das formigas subisse para a sua ponta. Antes que esta conseguisse trepar pelo ramo acima e mordê-lo, Cutter atirou-a para um dos canteiros mais próximos. A formiga aterrou em cima de uma folha larga de bromélia e percorreu-a atabalhoadamente. Asas finas vibraram como sinal de irritação.

Em seguida, de um poro na folha, surgiu uma bolha cintilante, que envolveu a formiga numa seiva gelatinosa. O inseto contorceu-se, tentando lutar, mas em poucos segundos as suas patas dissolveram-se, seguidas do resto do corpo. Depois disso, a bolha gelatinosa rapidamente se tornou líquida e escorreu pelo interior da folha até à sua raiz.

— Neste caso introduzi a sequência genética de uma planta carnívora — explicou Cutter — e intensifiquei as suas enzimas digestivas.

O estômago de Kendall estava às voltas, enquanto se virava para observar o jardim sombrio que se estendia em baixo.

— Quantas mais espécies?

— Centenas. Mas são apenas a primeira vaga. Fui mais longe e associei geneticamente cada alteração a sequências de retrotransposões de ADN.

Kendall começou a imaginar o que Cutter pretendia. Os retrotransposões eram também chamados «genes saltitantes», pela sua capacidade de saltar entre espécies num processo chamado transferência horizontal de genes. Os geneticistas chegaram a defender que estes genes saltitantes eram motores de evolução poderosos, transmitindo traços entre espécies. Estudos recentes realizados no ADN de gado revelaram que um quarto do seu genoma era oriundo de uma espécie de víbora-cornuda, o que provava que a Mãe Natureza já trocava genes há vários milénios, criando espécies híbridas desde os primórdios dos tempos.

No entanto, já não era apenas a Mãe Natureza a fazê-lo.

— É assim que tencionas acelerar a evolução — apercebeu-se Kendall em voz alta. — Tencionas usar estes traços associados aos genes saltitantes para espalhares o que criaste por todo o lado.

— Cada espécie será como uma semente lançada ao vento. Um híbrido dará origem a dois, dois a quatro. Com todas estas trocas, consegues imaginar que novas espécies poderão aparecer? Que novas combinações irão surgir? Todas elas a lutar para sobreviver neste mundo danificado que nós criámos.

Kendall imaginou uma enorme conflagração a espalhar-se pela floresta tropical e por todo o mundo.

Se Cutter já conseguiu alcançar tanto sozinho, porque precisa do meu invólucro geneticamente manipulado? O que tenciona colocar no seu interior?

De certeza que existia outro passo neste seu plano louco.

— Um novo Éden avizinha-se — continuou Cutter, a sua voz triunfante. — Estamos no limiar de um mundo novo. Um génese tão dramática, a que podemos assistir na nossa vida. Quero partilhar isso contigo. Ajudas-me a alcançá-la?

Kendall confrontou a paixão pura que se encontrava perante si e fez a única coisa que podia fazer. Tinha de sobreviver tempo suficiente para travar o homem.

— Sim… eu ajudo-te.

08h44

— Temos de ir atrás dela — disse Drake, caminhando pesadamente por entre a carnificina deixada pelo tiroteio, seguido por dois colegas de equipa.

Painter ajoelhou-se junto a um dos sobreviventes, uma jovem empregada de mesa. Pressionava a ferida que ela tinha de um dos lados com uma toalha, tentando estancar a hemorragia provocada por um tiro no abdómen. O seu próprio ombro ardia devido ao ferimento da bala que lhe arrancara um pedaço da parte de trás do braço. Pouco tempo antes, Malcolm fizera-lhe um curativo com o estojo de primeiros socorros da sua mochila.

Os três fuzileiros já tinham batido as ruas atrás do restaurante, mas não havia qualquer sinal de Jenna.

Painter compreendia a frustração evidente na voz de Drake.

À distância, ouviram-se sirenes a vir na sua direção. Iriam perder ainda mais tempo precioso a lidar com as autoridades locais.

Um gemido ecoou de trás do balcão.

Então, alguém decidira finalmente acordar.

Painter fez sinal a Schmidt para o substituir.

— Faz uma ligadura no ferimento desta mulher.

Enquanto o fuzileiro obedecia à sua ordem, Painter dirigiu-se para a origem do ruído. Um vulto levantou a cabeça do chão. As suas mãos estavam presas atrás das costas. Sangue ensopava a máscara que escondia o seu rosto. Era o atirador que Jenna pusera inconsciente durante o confronto. Com a pressa, os raptores de Jenna deviam ter pensado que ele estava morto, sobretudo pela quantidade de sangue à sua volta.

Painter aproximou-se e arrancou-lhe a máscara, provocando um grito de dor que lhe trouxe uma enorme satisfação. Mais sangue escorreu do seu nariz desfeito. Os seus olhos estavam tão inchados que quase nem abriam.

— Leva-o — ordenou Painter a Drake.

As sirenes soavam agora ainda mais alto.

Painter reparou que Schmidt já terminara a ligadura à volta da barriga da empregada de mesa. Ela sobreviveria.

— Vamos embora — disse Painter e acenou para todos saírem.

Drake e Malcolm dirigiram-se para a porta dos fundos, com o atirador desorientado arrastado entre eles. O SUV esperava-os no beco das traseiras. Fora estacionado ali pelos fuzileiros para facilitar uma evacuação rápida.

Drake atirou o prisioneiro para o banco de trás e perguntou:

— E se este cretino não falar?

Painter usou um dos nós dos dedos para limpar uma gota de sangue do atirador do banco da carrinha.

— Talvez não tenha de o fazer. Mas vamos precisar de ajuda.