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30 de abril, 11h33 AMT
Boa Vista, Brasil
— Isto é muito interessante — disse o doutor Lucas Cardoza, endireitando-se da posição curvada sobre o ecrã do computador.
Painter levantou-se de um banco e dirigiu-se a ele.
O geneticista brasileiro estava à frente do Projeto Genográfico em Boa Vista. Era um homem corpulento, com cabelo escuro, bigode farfalhudo preto e olhos estudiosos por detrás de um par de óculos de armação grossa. Cardoza e a sua equipa recolhiam e registavam ADN das tribos nativas da América do Sul há mais de uma década. Utilizando um algoritmo próprio, tinha compilado os dados recolhidos para averiguar padrões de antiga migração de centenas de tribos que habitavam as florestas brasileiras.
Painter e Drake reuniram-se com Cardoza no seu gabinete na Universidade Federal de Roraima, a universidade principal da cidade. O investigador concordara fazer uma análise de ADN da amostra de sangue do único atirador sobrevivente do ataque ao café. Como era de esperar, o prisioneiro, agora sob custódia das autoridades, recusara-se a falar e chegara mesmo a tentar enforcar-se na sua cela numa tentativa falhada de se suicidar. Um ato tão desesperado dizia muito sobre o fervor dos seguidores de Cutter e do forte tribalismo que unia o grupo.
Mas que tribo era?
— Acho que descobri alguma coisa — disse Cardoza, acenando para que Painter se aproximasse do computador.
Drake também se aproximou, murmurando entredentes:
— Já não era sem tempo.
Painter olhou para o relógio. Jenna fora raptada há cerca de três horas. Os seus captores tinham um avanço considerável e, à medida que o tempo passava, o seu rasto ficava mais difícil de seguir. Ele sabia que a sua equipa tinha um tempo muito limitado para a encontrar. Cutter Elwes raptara-a por alguma razão, provavelmente para a interrogar, para descobrir o que os americanos sabiam sobre ele. Contudo, depois disso, Jenna deixaria de ter utilidade para ele.
Consciente disso, Painter enviara Malcolm e Schmitt para a base aérea brasileira, para prepararem o seu novo modo de transporte. O avião vinha de um navio de guerra americano que se encontrava no Atlântico Sul. Kat tratara de todos os pormenores, pressionando os seus contactos no governo brasileiro e nas forças militares para obter a sua cooperação. Estando um passo à frente, Kat arranjara apoio adicional a Painter, que já vinha a caminho. Esse era o ponto forte de Kat: antecipar sempre o que viria a ser necessário em vez de aguardar ordens de forma passiva.
Ele agora apreciava essa qualidade mais do que nunca.
Não podemos perder mais tempo.
E não só por Jenna.
Kat também partilhara com ele a notícia de que um dispositivo nuclear chegara à região do lago Mono e que estava a ser preparado para detonação. A sua avaliação das consequências era devastadora. Uma área total de duzentos e sessenta quilómetros quadrados seria completamente destruída pelo fogo e explosões, enquanto a radiação e detritos contaminariam mais de mil quilómetros quadrados de área, incluindo todo o Parque Nacional de Yosemite. Ainda pior, não existia qualquer garantia de que uma medida tão drástica erradicasse o organismo.
Assim, Painter precisava de respostas… e o geneticista brasileiro era a sua maior esperança.
— O que descobriu? — inquiriu Painter.
— Peço desculpa por ter demorado tanto tempo — lamentou Cardoza. — O processo de análise de ADN tornou-se bastante mais rápido nos últimos anos, mas o nível de pormenor necessário para um estudo genético deste tipo requer uma precisão minuciosa. Não queria cometer um erro e orientar-vos na direção da tribo errada.
Painter colocou a mão sobre o ombro do homem.
— Agradeço a sua disponibilidade em ajudar-nos, sobretudo tão em cima da hora.
O investigador acenou com a cabeça, com um ar sério, e apontou para o ecrã.
— Veja isto.
No ecrã brilhavam múltiplas filas de barras verticais em tons de cinzento. Parecia um código de barras, mas este código representava, na verdade, a herança genética do prisioneiro.
— Identifiquei vinte e dois marcadores que são exclusivos dos nativos do norte do Brasil, o que em circunstâncias normais não ajudaria muito, pois o número de tribos nessa área é elevado e elas encontram-se espalhadas um pouco por toda a parte. Mas esta sequência aqui… — Cardoza circulou com o dedo um grupo de barras no ecrã — … é uma mutação única encontrada num subgrupo da tribo macuxi, uma tribo dentro de uma tribo, por assim dizer. Este grupo em particular é conhecido pelo seu isolamento e por procriarem dentro do próprio grupo, incluindo até casos invulgares de nascimentos múltiplos.
— E o prisioneiro pertence a este grupo fortemente unido?
— Tenho quase a certeza de que sim.
Era esse quase que punha Painter nervoso.
— Quanta certeza tem disto?
Cardoza ajustou os óculos.
— Estou no percentil dos noventa e nove. Talvez até mais uma fração disso.
Painter dissimulou um sorriso. Só um cientista classificaria uma correspondência de 99 por cento como um quase.
— Onde vive essa tribo? — perguntou Drake, aproximando-se mais.
Cardoza teclou mais um pouco e fez surgir no ecrã um mapa topográfico. Apareceu um ponto vermelho a cerca de cento e sessenta quilómetros a sudoeste de Boa Vista, nas profundezas da floresta tropical.
Painter suspirou, frustrado. Ainda era muito território para bater.
— O que sabe sobre esta zona da floresta? — perguntou ele, procurando alguma pista.
Cardoza abanou a cabeça.
— Muito pouco. É praticamente impossível chegar lá por terra, devido à natureza acidentada da sua geologia. O terreno está cheio de abismos profundos e coberto de vegetação. Muito poucos se aventuraram por lá.
— Não admira que essa tribo se reproduzisse dentro do próprio grupo — comentou Drake.
— Aqui está uma imagem via satélite da zona. — Cardoza passou da imagem do mapa topográfico para uma fotografia panorâmica, tirada de uma órbita baixa, mostrando um área coberta por densas copas de árvore.
Parecia impenetrável. Qualquer coisa podia estar escondida por baixo daquelas copas verdejantes, mas Painter tinha um palpite.
Ao ler tudo o que conseguira sobre Cutter, Painter começara a delinear um perfil da personalidade do homem. Cutter tinha um gosto especial por tudo o que era dramático, juntamente com um ego que faria com que fosse impensável esconder-se… mesmo enquanto se fingia de morto.
— Pode afastar a imagem, de forma a vermos a área circundante? — perguntou Painter, lembrando-se de uma característica invulgar que se encontrava no mapa topográfico.
— Com certeza.
A imagem alargou, revelando um área maior da floresta tropical. O ponto vermelho que assinalava a aldeia ficava próximo do único ponto que sobressaía naquele mar de esmeralda. Uma montanha alta emergia da floresta tropical, mais para sul. Os penhascos eram enormes, parecendo impossíveis de escalar. O seu cume permanecia envolto em névoa.
— O que é aquilo? — perguntou Drake.
— Um tepui — explicou Cardoza. — Um pedaço fragmentado de um planalto antigo. Os planaltos elevados desta região são centros de mitos e lendas, repletos de histórias de espíritos vingativos e passagens perdidas para o submundo.
Painter endireitou-se.
E talvez sejam também um bom lugar para um homem morto regressar ao mundo dos vivos.
Drake olhou de relance para Painter.
— Achas que é ali?
— Se não for, fica suficientemente perto da aldeia assinalada no mapa. Podemos sempre passar por lá, cair lá de surpresa.
Cair lá, era a melhor descrição possível.
Painter acrescentou:
— Se não encontrarmos nada naquela montanha, com sorte, alguém naquela aldeia sabe alguma coisa sobre Cutter Elwes.
— Então, vamos. — Drake virou-se rapidamente, sem agradecer, nem se despedir do doutor Cardoza.
Painter compreendia a pressa do fuzileiro, mas foi apertar a mão do geneticista.
— É capaz de ter salvado a vida de uma jovem.
Enquanto seguia Drake apressadamente, Painter rezou para que isso fosse verdade.
11h38
Jenna encontrava-se no limiar da civilização.
A selva estendia-se à sua frente, com o zunir dos insetos e o chilrear dos pássaros, enquanto, atrás dela, o motor do helicóptero estalava e crepitava ao arrefecer parado na clareira da floresta.
Um par de nativos de tronco nu e calções sujos abasteciam o avião parado com combustível puxado de enormes bidões pretos. Ao fundo, avistavam-se redes, presas aos troncos das árvores, cobertas por mosquiteiros. Pilhas de beatas de cigarros sujavam o chão da floresta por baixo das redes. Uma revista pornográfica encontrava-se pousada num monte, parecendo atirada para lá à pressa, provavelmente por alguém ao ouvir o barulho do helicóptero a aproximar-se. O ar tresandava a óleo, fumo de tabaco e dejetos humanos.
Afastara-se até à orla da clareira para fugir a tudo isso, imaginando o cheiro nauseabundo que se instalaria quando a rede de camuflado fosse colocada por cima deste buraco putrefato de corrupção humana. Neste momento, a rede encontrava-se pendurada na copa de uma árvore, à espera de que o helicóptero levantasse voo novamente para voltar a cobrir a área e ocultar esta estação de abastecimento.
Olhou para cima, de frente para o sol do meio-dia, para o mais azul dos céus. O calor era escaldante, já queimava a sua pele ainda pálida do inverno, agravado pela humidade excessiva. Abrigou-se à sombra de uma árvore de mogno, o que captou a atenção do seu guarda. O piloto tinha uma espingarda ao colo e olhou na sua direção. Os seus raptores não se tinham dado ao trabalho de a amarrar.
Para onde poderia fugir?
Mesmo que tentasse fugir, estes indígenas conheciam a selva melhor do que ela e seria rapidamente recapturada.
Na orla da floresta tropical, Jenna inspirou o perfume da selva, tentando acalmar o terror que sentia. Uma brisa agitava as folhas, trazendo consigo o aroma das flores da floresta, da terra húmida, da vegetação abundante. Enquanto guarda-florestal, era-lhe difícil ignorar a beleza pura deste lugar e o milagre da vida em toda uma imensidão de formas: desde as árvores altíssimas que se erguiam em densas copas verde-esmeralda à passagem sussurrante de um bando de macacos por entre os ramos mais baixos, até mesmo a fila de formigas que subiam pelo tronco da árvore onde Jenna se abrigava. Ela lera que o naturalista E. O. Wilson contara mais de duzentas espécies de formigas só numa árvore da floresta tropical. Parecia que a vida estava determinada a preencher cada fenda e cada buraquinho deste Éden resplandecente.
Algo maior agitou a vegetação na selva, mais perto dela, saindo das sombras a poucos metros de distância e assustando-a.
A mulher com cabelo cor de ébano, de tronco nu como os homens, aproximou-se. A única roupa que vestia era um par de calções castanho-escuros, que se confundiam com a sua pele. Sobre os ombros, equilibrava o corpo inerte de um veado. Tinha a cabeça cinzenta e as patas pretas, e o pelo castanho-avermelhado. Grandes olhos pretos, sem vida, fixavam o lugar onde outrora fora a sua casa.
Passou por Jenna sem sequer a olhar.
A mulher só estivera quinze minutos na selva. Pousou a carcaça junto às redes, deixando-a para os dois nativos que deviam viver nesta estação de abastecimento. Para a mulher, parecia que a caçada não fora para aproveitar a carne ou a pele, mas sim por desporto.
Jenna reparou como os homens evitavam olhar para a mulher, embora os seus seios, que eram verdadeiramente espetaculares, estivessem à mostra.
A mulher voltou a vestir a blusa que se encontrava pendurada num ramo e falou com o piloto num tom de voz baixo e calmo. Os seus olhos escuros moveram-se na direção de Jenna, depois de volta ao homem à sua frente. O piloto acenou com a cabeça, gritou para os dois nativos e acenou-lhes para que tirassem o seu equipamento do caminho.
Ao que parecia, estava na hora de ir embora.
Minutos mais tarde, Jenna estava de volta ao seu assento na cabina de trás. Os rotores começaram a girar, rugindo, e o helicóptero levantou voo, libertando-se da selva, em direção ao sol escaldante do meio-dia. Inclinando o nariz ligeiramente para baixo, o helicóptero percorreu a grande velocidade a interminável extensão de copas verdes.
Jenna olhou para a frente.
Uma sombra escura ergueu-se no horizonte, ainda muito longe.
Será que é para ali que vamos?
Não tinha como saber a resposta. Tinha apenas a certeza de que o que quer que se encontrasse no final desta viagem não seria agradável. Fechou os olhos e encostou-se para trás, preparando-se para o que estava por vir, sentindo falta da sua habitual fonte de força e resiliência.
Nikko…
Contudo, o seu parceiro tinha a sua própria luta para travar.
08h40 PDT
Sierra Nevada, Califórnia
Lisa empurrou a maca em direção à câmara pressurizada que dava para a saída do seu laboratório in vivo. O único rato sobrevivente moveu-se na sua gaiola de testes, aproximando-se das grades para a ver passar, o seu nariz rosado a mexer.
Desculpa, só posso salvar um passageiro neste navio prestes a afundar.
Nikko encontrava-se deitado de lado na maca almofadada, quase sem respirar depois da sedação ligeira. A sua pata dianteira esquerda estava esticada com uma tala, ligada por duas linhas intravenosas a dois sacos: um contendo fluidos misturados com um cocktail de antivirais e outro com plasma rico em plaquetas. Os sacos encontravam-se pousados sobre uma almofada ao lado do cão, prontos para serem novamente pendurados.
A maca onde Nikko se encontrava era uma maca de transporte de pacientes em quarentena, completamente selada, sob um capuz transparente com o seu próprio fornecimento de oxigénio, que fluía vindo de tanques presos à parte de baixo da maca.
Empurrou a maca para a câmara pressurizada, esperou que a pressão estabilizasse e, em seguida, quando a luz verde piscou, acenou com a cabeça para a figura que se encontrava no exterior do espaço selado. Edmund Dent abriu a porta do seu lado e ajudou-a a empurrar a maca até à pequena sala de reuniões no centro dos laboratórios de biossegurança nível 4.
— Temos de nos despachar — disse Edmund. — Já não temos muito tempo.
Lisa também estava consciente disso.
Lindahl e os seus comparsas tinham ido supervisionar a chegada do dispositivo nuclear à base na montanha, levando consigo toda a equipa de cientistas nucleares e de radiação. Por algum tempo, o laboratório estaria praticamente vazio. Os investigadores que ainda lá se encontravam eram colegas de Edmund e tinham concordado em ignorar o que eles estavam a fazer. Todos eles conheciam Jenna, sabiam que ela fora raptada e que Lindahl tencionava submeter o seu cão a alta radiação.
Ainda assim, quem sabe quanto tempo duraria aquele silêncio se fossem pressionados?
Edmund ajudou Lisa a levar a maca para a câmara pressurizada da sala de descontaminação principal. Um fuzileiro estava de guarda do outro lado. Edmund levantou o braço quando o guarda se virou, como se o que estivessem a fazer fosse perfeitamente normal.
Lisa entrou na câmara pressurizada sozinha, deixando Edmund para trás, para ajudar a encobrir os seus passos. Depois de ela passar, Edmund ia sabotar a câmara pressurizada que dava para o laboratório dela, de forma que Lindahl não desse pela falta de Nikko durante o máximo de tempo possível.
O processo de descontaminação começou. Jatos de água banharam o seu fato e a cobertura da maca, seguidos por radiações ultravioleta, depois novamente os jatos de água e a secagem. O processo completo demorou uns agonizantes vinte minutos.
O fuzileiro que se encontrava lá fora olhava na sua direção de vez em quando. Lisa evitava o contacto visual.
Por fim, a luz verde piscou, autorizando-a a sair. Na antecâmara a seguir à câmara pressurizada, Lisa despiu o fato de biossegurança. O suor colava-lhe a roupa a todas as fissuras do seu corpo, sobretudo por causa do calor que fazia dentro do fato, mas também pelo medo de ser descoberta. Agarrou nas pegas da maca e, com algum esforço, empurrou-a para o hangar principal.
— Está pronta? — perguntou o guarda.
Lisa acenou com a cabeça.
— Obrigada.
Sarah Jessup, uma cabo fuzileiro de cabelo castanho-avermelhado, vestida com um uniforme impecável, fora destacada como adjunta pessoal de Painter. Vinha altamente recomendada pelo comandante da base.
— Não tinhas de fazer isto — disse Lisa, enquanto as duas esgueiravam Nikko pelo espaço cavernoso.
A mulher encolheu os ombros.
— Não estou a violar lei nenhuma. O diretor Crowe foi designado meu superior direto. Ele aprovou verbalmente as tuas ações. Por isso, estou a seguir ordens, como qualquer bom fuzileiro. — Ainda assim, sorriu de forma suave para Lisa. — Além disso, tenho um labrador cor de chocolate em casa. Se alguém tentasse magoar a Belle, iria arrepender-se amargamente.
Lisa respirou fundo para se recompor, grata pela cooperação da cabo. Se Jessup não tivesse concordado e arranjado maneira de trocar o turno de guarda, tirar Nikko do laboratório teria sido impossível.
A cabo também facilitara a situação de outra forma.
— Estabeleci uma área temporária de quarentena seguindo as tuas instruções — disse Jessup. — Num lugar onde poucos pensarão em procurar.
— Onde?
Jessup sorriu novamente.
— Numa sala nas traseiras da capela da base. O capelão concordou em encobrir-nos e a afastar possíveis problemas.
— Conseguiste fazer um padre mentir por nós.
O sorriso dela alargou-se.
— Não te preocupes, ele é episcopaliano… e meu namorado. Além disso, ele adora tanto a Belle como eu… e ainda bem que é assim, senão nem consideraria casar com ele. A Belle e eu formamos um pacote, quem quer uma, leva as duas.
Lisa ouvia o amor jovem na voz da cabo, o que a lembrou das suas próprias bodas adiadas. Sentindo ainda mais a falta de Painter, Lisa engoliu a dor que sentia no coração.
Deixou a cabo Jessup liderar o caminho, sabendo que esta fuga só lhes ia dar um pouco mais de tempo. Alguém acabaria por falar ou o esconderijo de Nikko seria descoberto. Além disso tudo, a ameaça nuclear pairava no ar.
Com outra tempestade prevista para depois da meia-noite, Lindahl marcara a detonação para o anoitecer.
Lisa imaginou um cogumelo em chamas a erguer-se por cima das montanhas.
O desespero apoderou-se dela. Alguém tinha de arranjar uma forma de parar tudo isto antes que fosse demasiado tarde.
Mas quem… e, ainda mais importante, como?
11h43 AMT
Roraima, Brasil
Nas últimas duas horas, Kendall trabalhara sob o intenso escrutínio de Cutter Elwes no interior do laboratório de biossegurança nível 4 das suas instalações. Ambos estavam protegidos por fatos de biossegurança brancos com mangueiras amarelas presas à parede.
Kendall ergueu dois frascos no ar e leu as etiquetas.
25UG OF CRISPR CAS9-DIOA NICKASE MRNA
IUG OF CRISPR CAS9-DIOA NICKASE PLASMID
As pequenas ampolas de vidro continham os ingredientes essenciais para editar o código genético. Com estas ferramentas, um investigador podia quebrar as cadeias duplas de ADN em locais escolhidos especificamente, permitindo que as alterações fossem introduzidas. Estes frascos em particular eram mais usados para aplicações transgénicas: para inserir um gene estranho — chamado transgene — no código genético de outro organismo.
Como acrescentar asas a uma formiga-bala.
Cutter estava a fazer de Deus há já algum tempo, introduzindo genes estranhos em espécies existentes. O ato em si não era assim tão chocante. A tecnologia já existia há mais de uma década e era utilizada para criar criaturas transgénicas em laboratórios por todo o mundo. De bactérias a ratos, e até uma colónia de gatos que brilhavam no escuro. Na verdade, o trabalho de Cutter não era assim tão avançado, sobretudo tendo em conta que ele tinha acesso aos processos MAGE e CAGE, técnicas que possibilitavam a introdução de centenas de alterações mutagénicas em simultâneo.
Infelizmente, embora as criações de Cutter fossem monstruosas, Kendall não tinha moral para criticar o seu trabalho. No lago Mono, Kendall utilizara o conteúdo destes mesmos frascos para desenvolver o seu vírus sintético. A sua criação também fora o resultado de manipulação transgénica. Mas os transgenes que ele inserira eram ainda mais estranhos, sendo provenientes de uma das espécies AXN que se encontrava na biosfera-sombra por baixo da Antártida.
O último pormenor fora crítico para o seu sucesso no lago Mono. Conduziu à descoberta que lhe permitiu transformar um invólucro vazio num organismo vivo e que se multiplicava.
Que Deus me ajude… não posso deixar Cutter descobrir como o fiz.
Cutter regressou dos frigoríficos altos ao fundo do laboratório. Através das janelas de vidro, as filas de tubos de ensaio brilhavam. Era a biblioteca genética das suas criações… as do passado e as que ele queria criar no futuro.
Regressava agora com dois tubos de vidro, cada um cheio até meio de uma solução turva.
— Na minha mão direita — disse ele, levantando o braço correspondente —, está o eVLP que tu manipulaste geneticamente. O teu invólucro vazio perfeito.
Kendall já vira provas da reivindicação de Cutter, passando a primeira hora no laboratório a analisar os seus dados, para garantir que o homem reproduzira, de facto, o mesmo invólucro de proteína.
Cutter ergueu o outro tubo.
— E esta é a minha criação, um pedaço do tamanho de um prião de um código genético único.
Então é isto que o sacana quer colocar no interior do meu invólucro.
O uso da palavra prião por parte de Cutter era algo preocupante. Os priões eram proteínas infeciosas responsáveis por doenças tão graves como a doença das vacas loucas nos bovinos e a Creutzfeldt-Jakob nos humanos. Os sintomas clínicos dessas infeções tinham uma natureza invariavelmente neurológica, afetando sobretudo o cérebro. O pior de tudo é que estas doenças eram incuráveis e, muitas vezes, fatais.
Cutter ergueu os dois frascos ainda mais alto.
— Agora tens de me mostrar como combinar os nossos trabalhos. O teu invólucro e o meu código genético.
Passou os dois frascos para uma mão e entregou-os a Kendall.
Kendall aceitou-os com relutância.
— O que faz o teu código?
Cutter repreendeu-o, acenando com um dedo enluvado, depois apontou para a bancada de trabalho.
— Primeiro provas-me o teu conceito. Mostra-me que o teu sucesso na Califórnia não foi acidental.
Com esta afirmação, Kendall apercebeu-se de como deveria ter sido embaraçoso para Cutter pedir-lhe ajuda. Em vez de aceitar que alguém conseguira fazer o que ele não fora capaz, preferia rotular o feito de Kendall como um golpe de sorte ou um mero acidente. Por muito que Cutter tivesse mudado depois de ser atacado pelo leão, a sua arrogância permanecia intacta.
— Vai demorar algum tempo — empatou Kendall. — Vou precisar de uma análise completa do ADN do teu código para arranjar uma maneira de o inserir no invólucro.
— O ficheiro com essa análise já está guardado no computador da tua bancada de trabalho.
— Gostava de ser eu a fazer a análise completa.
A desconfiança fez a sobrancelha de Cutter franzir.
— Para quê repetir o que já foi feito?
— É uma parte fundamental do meu procedimento. É provável que precise de alterar o teu código, acrescentar uma sequência-chave para desbloquear o invólucro.
Pelo menos, isso era verdade.
Talvez reconhecendo a lógica das suas afirmações, Cutter suspirou e acenou com a cabeça.
— Então, começa a trabalhar.
Antes de o homem se conseguir virar, Kendall parou-o.
— Eu concordei em cooperar. Não me podes dizer como parar o contágio na Califórnia?
Antes que seja demasiado tarde.
Cutter parecia estar mesmo a considerar o seu pedido. Por fim, os seus olhos pousaram em Kendall.
— Dou-te parte da solução se me contares como é que esta chave desbloqueia o teu invólucro. Tenho de admitir que me intriga o suficiente para mostrar alguma boa vontade.
Kendall lambeu os lábios secos, sabendo que devia ser muito cuidadoso. Tinha de lhe dar informação suficiente para ser credível, o homem não era parvo, mas não demasiada para não revelar tudo.
Kendall aclarou a garganta.
— Soubeste da atenção mediática que recaiu sobre o Scripps Research Institute em maio de 2004? Depois de terem anunciado a criação de uma colónia de bactérias vivas, que se multiplicava e que continha novas letras do alfabeto genético?
Cutter semicerrou os olhos, pensativo.
— Referes-te ao facto de terem inserido bases de nucleótidos artificiais no ADN de bactérias?
Kendall acenou com a cabeça. Fora um trabalho inovador. Toda a biodiversidade neste planeta, desde o bolor limoso aos humanos, tinha como base um simples alfabeto genético de apenas quatro letras: A, C, G e T. Fora através da combinação dessas quatro letras que as espécies surgiram na Terra. Mas, pela primeira vez, os investigadores do Scripps criaram uma bactéria viva com duas letras adicionais no seu código genético, que denominaram X e Y.
— E então? — perguntou Cutter.
— Eu fiz algo semelhante — admitiu Kendall. — Utilizando a técnica CRISPR, consegui retirar secções de ADN viral e substituí-las por secções estranhas de AXN. É essa sequência exata de genes AXN, e não outra, que funciona como chave para desbloquear o invólucro.
— Dando vida à tua criação. — Cutter sorriu. — Por isso é que eu continuava a falhar. Não tinha essa chave.
E espero que nunca venhas a ter.
— Devia ter pensado nisso — disse Cutter. — Aquela cápside viral, aquele invólucro perfeito… manipulaste a sua configuração invulgar produzindo proteínas a partir de genes AXN. Então, para inserir material genético naquele invólucro, é preciso uma sequência específica de marcadores AXN para esse invólucro o aceitar.
— Uma chave que corresponda à fechadura — disse Kendall. — Essa foi a minha grande descoberta.
Ou, pelo menos, parte dela.
— Genial, Kendall. Tu impressionas-me.
— Então, se já estás satisfeito, podes partilhar mais alguns pormenores sobre a cura?
Era a única esperança de Kendall. Se conseguisse descobrir a solução por si, então talvez não precisasse de dar a receita para armar a sua cápside viral a este cretino.
— É justo — concordou Cutter. — Antes de mais, deves lembrar-te que eu disse que a solução para aniquilar a tua criação, para a neutralizar, estava mesmo à frente dos teus olhos e dos de Harrington. Tal como a tua solução com a chave, tem tudo que ver com AXN.
— De que forma?
— O que vocês, infelizmente, se esqueceram de questionar foi a razão por que aquela biosfera-sombra exótica permaneceu encapsulada na Antártida durante milhares de anos, sobretudo quando existe um mundo inteiro praticamente indefeso contra a sua natureza agressiva e única.
— Qual é a resposta a essa pergunta?
— Dás-me a chave e eu dou-te a resposta… e o método para resolveres a situação na Califórnia.
Kendall não insistiu, sabendo que não ia conseguir arrancar mais nada do homem.
Cutter virou-se novamente e afastou-se.
— Vou deixar-te trabalhar. Temos um convidado prestes a chegar, com quem quero conversar. — Olhou para trás, de relance, para Kendall. — Mas espero resultados quando voltar. Acredita quando digo que não me queres desiludir.
Kendall observou-o a afastar-se pela câmara pressurizada da sala. No laboratório principal, para lá de onde se encontrava, a figura gigantesca de Mateo mantinha-se de guarda, garantindo que Kendall não fugia dali.
Sem escolha, Kendall começou a estudar o pedaço único de código genético de Cutter, o material que ele queria inserir no sistema de entrega genética perfeito de Kendall.
Mas o que era? Qual era o seu propósito?
Se conseguir descobrir isso, posso arranjar uma forma de o travar.
E, se não servisse para mais nada, trabalhar neste código adiaria o momento em que teria de dizer a verdade a Cutter: que a chave que ele tanto queria se encontrava fora do seu alcance. Kendall não era capaz de a reproduzir aqui. Para criar essa chave, precisaria primeiro dos linfócitos de uma espécie específica daquela biosfera. O seu AXN era de tal maneira único que não podia ser sintetizado em laboratório. Precisava de uma amostra viva para construir a chave.
Mas durante quanto tempo consigo guardar esse segredo?
Por agora, tudo o que podia fazer era atrasar o máximo de tempo possível.
Mas com que propósito?, pensou ele. Quem me pode ajudar?
11h55
Painter encontrava-se num local remoto do aeroporto internacional de Boa Vista sob o sol escaldante do meio-dia. Protegeu os olhos do sol levantando o braço que não estava ferido e observou o céu. Tinha o outro braço ao peito, a ligadura que envolvia o ferimento fora mudada recentemente.
O aeroporto ficava a apenas três quilómetros da cidade e partilhava as suas instalações com a Base Aérea de Boa Vista, o contingente local da força aérea brasileira. Este canto do aeroporto era raramente utilizado, o que era bastante evidente pelas ervas daninhas que cresciam em todas as fendas do alcatrão. Não existia pista, apenas um parque de estacionamento rodeado por uma fila decrépita de hangares velhos e outros edifícios há muito abandonados.
A base aérea atual fora mudada para instalações mais recentes do outro lado do aeroporto. Mas este local servia os interesses de Painter na perfeição, pois ficava longe do trânsito habitual e de olhares indiscretos. Um pequeno grupo de militares da força aérea brasileira guardava a entrada desta área, mantendo afastados os mais curiosos.
Drake andava impacientemente de um lado para o outro, enquanto os seus colegas de equipa, Malcolm e Schmitt, descontraíam à sombra de um dos hangares.
— Aí vêm eles — disse Painter, avistando um avião cinzento-prateado a aproximar-se no céu profundamente azul.
— Por que raio demoraram tanto? — resmungou Drake.
Painter não respondeu, sabendo que era a frustração que pusera o fuzileiro tão impaciente. Drake sentia-se responsável pelo rapto de Jenna, tendo-a abandonado no interior do café. Não que tivesse sido culpa sua, mas dizê-lo não fazia diferença alguma. O fuzileiro tinha um código de honra intransigente. Ainda assim, Painter desconfiava que o motivo da frustração de Drake fosse mais de natureza pessoal do que profissional. Ele e Jenna tinham-se tornado mais próximos durante esta prova de fogo.
Drake juntou-se a Painter, protegendo os olhos do fulgor do sol.
No céu, a aeronave aproximava-se deles rapidamente. O avião viera do USS Harry S. Truman, um superporta-aviões da classe Nimitz, que realizava exercícios no oceano Atlântico.
Enquanto Painter observava, as hélices duplas do avião oscilaram da posição vertical para a horizontal, fazendo-o abrandar e transformando-o num helicóptero. A aeronave era semelhante ao seu irmão mais velho, o MV-22 Osprey, que transportara Painter da costa da Califórnia para a base naval das montanhas da Sierra Nevada. Era o novo Bell V-280 Valor, por vezes chamado «Son of Osprey», «filho de Osprey», devido ao seu desenho mais pequeno e mais esguio. Desempenhava funções de avião batedor e podia atingir uma velocidade de trezentos nós, cobrindo uma área de oitocentas milhas náuticas.
Era perfeito para onde eles precisavam de ir.
O Valor planou por cima deles e começou a baixar. Painter e Drake afastaram-se no asfalto rachado, ou melhor, foram empurrados pela deslocação de ar das hélices duplas. O Valor aterrou tão suavemente como um mosquito sobre um braço nu. O ruído não era tanto quanto o esperado, devido à tecnologia stealth incorporada no seu desenho, que abafava o rugido do motor.
A escotilha lateral abriu.
Fiel à sua palavra, Kat enviara-lhe mais homens: outro trio de fuzileiros saltou do Valor, equipados com coletes à prova de bala e capacetes. Drake e os seus colegas de equipa cumprimentaram os seus camaradas, apertando os antebraços de uma forma fraternal.
O líder moreno da equipa de apoio dirigiu-se a Painter.
— Ouvimos que estava com problemas, senhor — disse ele com um ligeiro sotaque hispânico. — Sou o sargento Suarez. — Acenou com o braço para os dois homens ao seu lado, um fuzileiro negro e musculado de olhar implacável e um homem ruivo corpulento. — Os primeiros-marinheiros Abramson e Henckel.
Painter apertou a mão a cada um dos soldados.
— Agradeço a vossa ajuda.
Suarez virou-se para o avião.
— O Valor, o pequeno grande pássaro. Vai ser uma viagem um pouco apertada a bordo, mas cá nos arranjamos. — O sargento olhou para o sol escaldante. — Está um dia quente hoje, não?
Painter acenou com a cabeça.
E é provável que venha a ficar ainda mais quente… de muitas formas.