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30 de abril, 13h22 AMT
Roraima, Brasil
O que é que eu fui fazer?
Kendall encontrava-se sentado numa bancada de trabalho no laboratório principal. Não tinha outra escolha senão olhar fixamente para o enorme ecrã LCD. Emitia a imagem de vídeo captada ao vivo do cimo de uma árvore. A julgar pelos vários tons de cinzentos, devia estar a filmar através de um sensor de baixa luminosidade. A imagem revelava uma floresta densa, coberta de trepadeiras, ensombrada por copas de árvore cerradas. A lente apontava para baixo, para uma clareira ladeada por cascalho.
Um conjunto de três jaulas altas encontrava-se no meio da clareira. Sinais de perigo avisavam que as suas grades estavam eletrificadas, tal como as cercas que separavam os níveis do macabro jardim de Cutter.
Este deve ser o andar mais baixo.
Kendall lembrava-se de ver de relance este recanto isolado de floresta tropical. Mas o que mais estaria lá em baixo?
No ecrã, viu Jenna ser forçada a entrar na jaula do meio. Pela forma como encolhia os braços junto ao peito, mantendo-se afastada das grades, devia saber do perigo.
Rahei fechou a porta da jaula com brutalidade.
— A nossa querida menina Beck já deve estar a sentir os primeiros sinais da infeção — disse Cutter, andando de um lado para o outro atrás dele, sempre seguido de perto por Mateo. — Dores de cabeça, talvez dores no pescoço.
— Por favor, não faças isto — implorou Kendall.
No ecrã, Rahei afastou-se, juntamente com os dois cúmplices. Ambos os homens vigiavam a selva atentamente com bastões elétricos de controlo de gado e espingardas. Entraram rapidamente no carrinho, fizeram inversão de marcha na clareira e seguiram pelo caminho de onde tinham vindo.
— Porque a levaste ali para baixo? — perguntou Kendall, olhando para trás, para Cutter. — Porque a deixaste sozinha?
— Oh, ela não está sozinha.
Provando a sua afirmação, algo enorme passou à frente da câmara, demasiado rápido para que se visse mais que umas garras curvas gigantescas e pelo desgrenhado. Ainda assim, Kendall reconheceu a espécie, afundando-se na sua cadeira, horrorizado.
— Tu não foste capaz de… — murmurou Kendall.
Cutter encolheu os ombros.
— Foi uma das primeiras experiências, uma ideia tirada do teu livro sobre a preservação das espécies. Desextinção foi a palavra que usaste naquele teu artigo, se bem me lembro. Foi uma questão de utilizar as técnicas CAGE e MAGE para pegar numa espécie que já existia nesta floresta tropical, alterar-lhe o código genético e ressuscitar o seu ancestral.
Kendall sabia que era possível na teoria, que muitos laboratórios por todo o mundo tentavam alcançar este mesmo objetivo e que seriam bem-sucedidos dentro de alguns anos. Já muitas instalações procuravam formas de ressuscitar o mamute a partir do ADN do elefante, outros tentavam trazer de novo à vida o pombo-passageiro com a informação genética do pombo-comum, e ainda outros procuravam reavivar o há muito extinto auroque selvagem com a herança genética dos bovinos atuais. Estas aventuras ficaram conhecidas por muitos nomes: Revive & Restore, Projeto Uruz, um até foi chamado, de forma muito apropriada, Projeto Lázaro, que procurava desextinguir um sapo australiano que tinha as crias pela boca.
Mas o que Cutter conseguira fazer aqui…
— Não podes deixá-la lá em baixo — insistiu ele.
— Por agora, ela está suficientemente segura atrás daquelas grades eletrificadas. Vamos dar-lhe mais meia hora, quando a infeção a tiver reduzido a algo mais simples. Depois, terás um vislumbre do que este novo mundo será para a humanidade quando a nossa espécie for libertada da sua inteligência cancerígena.
Kendall sentiu lágrimas a surgir, sabendo que este monstro o faria assistir ao que estava prestes a acontecer a Jenna.
— Mas tu podes parar tudo isto — insistiu Cutter. — Diz-me apenas o nome da espécie de AXN que contém a chave genética para desbloquear o teu invólucro viral. Um nome… e tudo isto acaba. Eu trato de tudo.
Kendall sabia que, se Cutter descobrisse este último elemento crítico de informação, seria capaz de resolver o resto deste puzzle biológico.
— Não demores muito — disse Cutter, apontando para o ecrã. — Existe algo para reverter o mal de que a menina Beck padece, mas tem de ser administrado no período de uma hora ou os efeitos neurológicos serão permanentes.
— Existe uma cura? — perguntou Kendall, engolindo em seco.
— Existe, sim — respondeu Cutter, olhando na direção de um dos grandes frigoríficos ao fundo do laboratório de biossegurança. — Uma proteína, que é o espelho do que eu criei. É capaz de reparar os danos neurológicos provocados pelo meu prião, mas, tal como disse, há um limite de tempo. Um ponto a partir do qual a menina Beck estará perdida para sempre.
Kendall tinha uma preocupação ainda maior que a guarda-florestal.
— E, se eu te der o nome, dizes-me como travar o que está a alastrar pela Califórnia?
Cutter coçou o queixo, claramente fingindo concentrar-se.
— Eu sou um homem de palavra. Essa era a minha oferta inicial. Mas isso foi antes de a menina Beck chegar.
— O que queres dizer com isso?
— Diz-me o que eu quero saber e eu deixo-te escolher. Posso ensinar-te a erradicar o horror que escapou do teu laboratório ou… posso salvar a menina Beck. Mas as duas coisas, não.
Kendall olhou fixamente para o ecrã, sabendo que teria de dizer a verdade a Cutter. Com o passar do tempo, o sacana iria conseguir arrancar-lhe a informação de qualquer maneira.
Kendall virou-se para Cutter, o tom da sua voz baixo, anunciando a derrota.
— Vais precisar do sangue de uma das espécies da Antártida.
— De qual?
— Volitox ignis.
Cutter parecia verdadeiramente intrigado agora.
— Aquelas enguias temperamentais. Uma tarefa bastante árdua, de facto. Vou ter de fazer um telefonema antes que seja tarde demais. Parece que me antecipei demasiado com o meu plano. Pus a carroça à frente dos bois, como se costuma dizer.
O homem começou a afastar-se.
— Cutter, tu prometeste.
Cutter virou-se para trás.
— É claro, desculpa. Qual é a cura que queres? A da menina Beck… ou a do mundo inteiro?
Kendall voltou a olhar para o ecrã, para a jovem encolhida na jaula. Ao mesmo tempo, imaginou a fúria da destruição que consumia as montanhas da Califórnia.
Desculpa, Jenna.
Kendall virou-se para Cutter.
— Como matas o que eu criei?
— É a solução mais simples que existe. Alguma vez te perguntaste por que razão aquela biosfera debaixo da Antártica nunca se espalhou pelo resto do mundo? É claro que já houve evasões no passado, pequenas fugas. No entanto, nunca se disseminou em grande escala. Desconfio que fossem necessárias grandes quantidades para que isso acontecesse.
Kendall estava com dificuldade em chegar à resposta. O que teria a Antártida de tão único? O que teria mantido aquele mundo preso lá em baixo? Seriam os mares salgados, o gelo, o frio? Já fizera experiências com todas estas variáveis no seu laboratório.
— Nós já tentámos temperaturas negativas, vários níveis de salinidade, toxinas de metais pesados, como as que se encontram nos oceanos circundantes — admitiu Kendall. — Nada o matou.
— Porque estavas a pensar de forma muito limitada, meu amigo… sempre foi esse o teu problema. Tu olhas para as árvores, mas não vês a floresta. Tu pensas localmente, em vez de globalmente.
Cutter levantou uma sobrancelha, como que a testar Kendall.
Kendall ponderou o significado daquelas palavras.
Globalmente.
Onde queria Cutter chegar?
De repente, percebeu.
13h24
Jenna esfregou a parte de trás do pescoço, tendo cuidado para não se aproximar demasiado das grades da jaula. A moinha nas suas vértebras cervicais transformara-se num intenso espasmo muscular, disparando lanças aguçadas de agonia por todo o seu crânio. Até os olhos lhe doíam, fazendo com que o mortiço brilho verde da floresta parecesse demasiado intenso.
Ela sabia o significado destes sintomas.
Já está a começar.
Começou a repetir um mantra, receando o que estava para vir.
Eu sou Jenna Beck, filha de Gayle e Charles. Vivo na interseção da D Street com a Lee Vining Avenue. O meu cão chama-se Nikko, nasceu no dia…
Jenna lutava contra as dores intensas para se agarrar a qualquer parcela da sua identidade, testando a sua memória de forma a encontrar algum sinal de deterioração.
Mas será que vou sequer saber quando estiver a acontecer?
Respirou fundo, inalando o perfume intenso da selva, tentando encontrar o equilíbrio, afastar a sensação de pânico. A toda a volta, ouvia água a pingar, o raspar das asas dos pássaros, ramos a estalar, o murmúrio das folhas.
Um pormenor parecia-lhe errado, inquietava todos os níveis da sua consciência. Ainda estava tudo demasiado sossegado ali. Não ouvia o canto dos pássaros, nem o ruído dos macacos, nem sequer a passagem apressada de algum animal pequeno entre a vegetação.
Em seguida, como se algo se tivesse apercebido da sua tomada de consciência, um ramo partiu-se à sua esquerda. O seu olhar voltou-se nessa direção, mas só viu sombras a mudar de lugar. Esforçou os olhos para penetrar a parede de fetos que circundava a clareira.
Nada.
Contudo, ela sabia a verdade, lembrando-se do rugido furioso de antes, juntamente com a extrema cautela dos guardas quando a conduziram a esta prisão.
Não estou sozinha.
13h25
Pensa globalmente…
Teria sido sempre essa a resposta?
Kendall fechou os olhos, imaginando o planeta a girar, a crosta a deslocar-se por cima de um mar fundente, tudo em volta de um núcleo de ferro derretido com dois terços do tamanho da Lua. Os movimentos de convecção nesse ferro fundido, juntamente com a força de inércia de Coriolis, proveniente da rotação da Terra, geravam um dínamo elétrico que envolvia a Terra num vasto campo magnético.
— Magnetismo — disse Kendall. — É isso que mantém aquela biosfera-sombra contida debaixo da Antártida.
— E onde é que o campo magnético da Terra é mais forte?
— Nos polos — disse Kendall, imaginando aquele campo a emanar intensamente de cada um dos polos da Terra, circundando o globo. — E é mais fraco junto ao equador.
— E onde mais é fraco?
Kendall sabia que a resposta estaria relacionada com a localização de Hell’s Cape. Imaginou aquele mundo quente, muito abaixo do gelo, a incubadora perfeita para formas de vida estranhas. Lembrou-se do enxofre, das águas borbulhantes.
Olhou para cima, para Cutter.
— Nas zonas geotérmicas — disse ele. — O campo magnético da Terra é mais fraco nas regiões onde existe atividade vulcânica.
— Correto. O magma derretido por baixo dessas regiões não consegue conter o seu ferromagnetismo, criando uma inclinação magnética local no campo da Terra, uma ilha, se assim lhe quiseres chamar, num mar de correntes magnéticas mais fortes.
Kendall imaginou Hell’s Cape como uma dessas ilhas, presa dentro do campo mais forte da Antártida. Ainda lhe parecia um pouco rebuscada a ideia de o diferencial magnético ser suficiente para manter a vida presa a um lugar. Algo tinha de tornar a vida lá em baixo especialmente sensível aos campos magnéticos, algo intrínseco à sua natureza.
— AXN — disse ele, em voz alta, endireitando-se na sua cadeira. — Toda a vida lá em baixo é baseada num código genético que não utiliza o açúcar desoxirribose na sua base. É algo único, diferente de qualquer outro tipo de vida. Essa base de açúcar desoxirribose é substituída por uma combinação de arsénico e fosfato de ferro. — Kendall olhou fixamente para Cutter. — É o ferro, não é? É isso que faz com que a vida AXN seja tão sensível aos campos magnéticos.
— Eu estudei essa estrutura de ferro utilizando a difração de raios X e espectroscopia de fotoeletrões. Forma nanoanéis ferrosos ao longo da hélice de AXN, como um conjunto de vértebras forma a coluna vertebral.
— E com a intensidade magnética certa é possível estilhaçar essa coluna. — Kendall olhou esperançoso para Cutter. — Já conseguiste calcular essa intensidade?
— Sim… e testei-a. Não é assim tão inovador quanto isso. A própria FDA já testa oscilações dos campos magnéticos para eliminar bactérias, vírus e fungos na água e nos alimentos. Eu, simplesmente, modifiquei o que se descobriu nesse estudo e cheguei à intensidade que funciona melhor neste caso.
Kendall imaginou o organismo que Cutter criara no seu laboratório enfiado dentro das suas cápsides elaboradas de forma sintética, deixando para trás aqueles invólucros, tal como as muitas peles de cobra descartadas.
— Sem esta cura — disse Cutter —, nunca teria libertado o teu organismo. Tal como tu, eu também não quero que o mundo seja destruído pelo que tu criaste. Na verdade, se tivesses escolhido curar a menina Beck em vez de tentar descobrir esta resposta, eu ter-te-ia contado a verdade na mesma. Não posso deixar o mundo morrer antes de o salvar, pois não?
Kendall olhou para a imagem de vídeo. Uma onda de desânimo apoderou-se dele, mas tinha de a controlar. Ainda havia demasiado em risco.
— Então, vais deixar-me revelar a cura magnética às autoridades da Califórnia.
— A seu tempo.
— O que queres dizer com a seu tempo?
— Pelo que ouvi, os teus ilustres colegas estão prestes a detonar um dispositivo nuclear naquelas montanhas, por mais insensato que isso seja. Como ambos sabemos, não vai adiantar muito, só vai espalhar ainda mais o teu organismo e, ao mesmo tempo, deteriorar grande parte daquela área durante várias décadas. Mas é essa a tendência da humanidade: destruir antes de pensar. É por esta razão que estamos condenados enquanto espécie.
— Mas tu disseste que não querias que o meu organismo destruísse o mundo.
— E não quero. Assim que lhes deres a solução, vai demorar apenas mais tempo a limparem a porcaria que fizeram. Vai mantê-los ocupados durante muito mais tempo.
— E a radiação? Todos os estragos?
— A Terra já sobreviveu antes a este tipo de feridas infligidas pela humanidade e será capaz de fazer o mesmo agora. — Cutter suspirou. — Além disso, a distração vai dar-me jeito. Vai fazer com que a humanidade esteja a olhar para um lado, enquanto o seu fim vem da direção totalmente oposta.
Virá do trabalho que fazes aqui.
— E, se me dás licença, tenho de ir fazer aquele telefonema. A ver se consigo obter uma amostra do sangue de Volitox antes que seja demasiado tarde.
— Demasiado tarde?
Cutter parou.
— Escondeste aquele mundo subterrâneo durante demasiado tempo, Kendall, mantiveste-o preso, aquém do seu imenso potencial.
Kendall pensou que não era possível sentir mais desânimo e choque.
— O que… o que estás a planear fazer?
— Vou libertar aquela biosfera obscuramente linda e maravilhosamente agressiva sobre o teu mundo. Acho que chegou a altura de abandonarem a sua minúscula ilha de isolamento. Alguns morrerão durante a transição, claro, vítimas do fluxo magnético de que falámos antes, mas, como tu sabes, a Natureza é a maior inovadora. Devido à sua quantidade e variedade, algumas espécies sobreviverão adaptando-se, trazendo para o nosso mundo a resistência e a mutabilidade do AXN, traços perfeitos para sobreviver aos tempos difíceis que aí vêm.
Kendall imaginou o dano ambiental que seria provocado pelo ataque súbito de todas aquelas espécies alienígenas. Uma biosfera agressiva inteira à solta no nosso mundo. As repercussões ecológicas seriam devastadoras.
— Planeio afundar o teu mundo antigo por baixo deste mundo moderno. Durante esta guerra, libertarei as minhas espécies daqui, disseminando-as por todo o lado, trazendo permutações genéticas novas e inovadoras e acelerando o processo evolutivo ao fazer com que estes traços saltem entre espécies. Será o derradeiro teste evolutivo, em que a sobrevivência do mais apto constituirá a lei do mundo. Parafraseando o antigo estratega chinês, Sun-Tzu, entre tanto caos, existe oportunidade.
Kendall devia parecer horrorizado.
— Podes ficar ao meu lado, Kendall. Para assistir a esta transformação, à génese de um novo Éden, livre da degradação humana.
Kendall imaginou aquela destruição induzida por priões, levando a humanidade de volta ao seu estado mais primitivo.
Com um olhar triunfante, Cutter regressou à bancada de trabalho.
— Observa uma pequena amostra da guerra iminente, onde a praga da inteligência do Homem é arrancada, deixando a Humanidade submetida, por fim, à lei da Natureza.
Kendall sabia a que lei Cutter obedecia com uma convicção religiosa.
A Lei da Selva.
Cutter premiu uma tecla.
No ecrã, a porta da jaula de Jenna abriu-se.
13h29
— Quanto tempo falta? — gritou Painter ao sargento Suarez.
— Mais trinta minutos, senhor!
Demasiado tempo.
Painter mudou de posição no seu assento, impaciente, com o braço a arder e a dor a agravar a sua ansiedade. Ele estava demasiado consciente do prazo. O dispositivo nuclear seria detonado na Califórnia dentro de noventa minutos.
E aqui estou eu, sentado, de braços cruzados.
Passado um minuto, Suarez gritou:
— Senhor, é capaz de querer vir cá à frente ver isto.
Grato por qualquer distração, qualquer razão para se mexer, Painter abriu o arnês de segurança e dirigiu-se para a frente, agachado. Drake soltou-se e seguiu-o até ao cockpit do Valor.
— O que se passa? — perguntou Painter.
Suarez passou-lhe um par de binóculos e apontou para o tepui distante. Ainda se encontravam demasiado longe para se conseguir ver com pormenor, mas Painter obedeceu.
Suarez encontrou um segundo par de binóculos e atirou-os a Drake.
Painter demorou algum tempo a focar a montanha distante, com as suas encostas envoltas em nuvens.
— Olhe para a ponta mais a sul — instruiu o sargento. Também fez sinal ao piloto. — Dê-nos alguma inclinação.
Painter concentrou-se, encostando o seu ombro dorido sobre um anteparo para manter o equilíbrio, enquanto o piloto oscilava o avião para a frente e para trás.
Ao início, não viu nada, apenas rochas esculpidas pelo vento e uma floresta pouco densa a norte. Em seguida, quando o avião mudou de posição, algo brilhou intensamente, refletindo a luz do sol, vindo da floresta de pedras ao longo da orla a sul.
Drake assobiou.
— Para brilhar daquela maneira, tem de ser algo metálico.
— Tenho estado a estudá-lo nos últimos minutos — disse Suarez. — Parece ser uma turbina eólica.
Turbina?
Painter semicerrou os olhos, mas ainda assim não conseguia ver o suficiente para chegar a essa conclusão. No entanto, o sargento tinha os olhos de um homem mais novo e inúmeras horas de vigilância aérea a bordo do Valor.
Painter acreditou na sua palavra. E, se realmente existiam turbinas eólicas ali, então alguém devia estar estabelecido no cimo da montanha.
Só podia ser uma pessoa.
Cutter Elwes.
— Este avião pode ir mais depressa? — perguntou Painter.
Esta notícia deixou-o ainda mais ansioso de aterrar.
— Já vamos à velocidade máxima — respondeu o piloto.
Suarez olhou para o relógio.
— Ainda faltam vinte e sete minutos.
13h33
O estalido da porta da jaula distraiu Jenna do sofrimento intenso em que se encontrava. Dores lancinantes espalharam-se pelo seu crânio quando olhou para cima. A luz vermelha fixa no topo da jaula ficara verde.
A porta abriu-se alguns centímetros.
Jenna permaneceu de pé, com receio de que fosse um truque. Usou a borracha da sola das suas botas para tocar nas grades. Não estavam eletrificadas, por isso abriu o resto da porta e saiu da jaula. As suas botas esmagaram o cascalho no exterior.
Ficou imóvel ao ouvir um pequeno ruído, os pelos eriçados na base da sua nuca dorida. Sentiu que alguém a observava. Estudou o caminho que se estendia para o interior da floresta, imaginando o portão e a cerca eletrificada que limitavam este nível.
Mesmo que conseguisse lá chegar, continuaria encurralada.
Virou-se novamente para a jaula. O lugar mais seguro poderia ser no seu interior, trancada lá dentro, mas devia haver uma razão para as jaulas serem eletrificadas. Sugeria que as grades de aço não eram suficientemente fortes para resistir ao que quer que assombrasse esta floresta.
Ainda assim, aço era melhor que nada.
Dirigiu-se de volta para a jaula… vendo a porta deslizar e fechar com uma tranca magnética à sua frente. A luz ficou vermelha novamente.
Estou trancada do lado de fora…
Esforçou-se por pensar, por arranjar um plano, mas a sua mente tornara-se instável, incapaz de se concentrar num pensamento durante muito tempo. Queria culpar a dor e o terror que sentia por esta falta de concentração, mas receava que aquela dificuldade fosse um sintoma de um problema mais grave.
Sussurrou para a floresta silenciosa:
— Eu sou Jenna Beck, filha de Gayle e Charles. Vivo na interseção da D Street com a Lee Vining Avenue…
Espera. Estou certa?
Imaginou a pequena casa de estilo vitoriano com gabletes verdes.
É ali que eu vivo.
Jenna retirou forças daquela memória.
— O meu cão chama-se Nikko, nasceu no dia…
Com cada palavra sussurrada, dava mais um passo ao longo da clareira, escolhendo evitar o caminho. Contudo, essa decisão poderia não ter sido consciente. O instinto levava-a a esconder-se, a fugir de espaços abertos. Jenna decidiu confiar nesse instinto. O seu mantra passou a um monólogo interior silencioso quando chegou à orla da floresta e penetrou na vegetação sombria.
Os meus melhores amigos são o Bill e a Hattie. Deixou que a imagem da mulher paiute mais velha se tornasse cada vez mais vívida na sua memória. A Hattie pertence à tribo kutza… Jenna ficou ofegante, tentando lembrar-se do nome da tribo específica, os seus pés a tropeçarem devido à frustração; depois, lembrou-se do nome.
Kutzadika’a… era isso.
Inclinou-se para a frente para tirar uma folha grande de feto do seu caminho, mas esquecera-se da natureza invulgar da botânica por aqui. A planta encolheu-se ao seu toque, encaracolando as suas folhas e enrolando-se numa bola.
Por trás desse feto contraído, avistou uma criatura gigantesca a apenas alguns metros de distância. Encontrava-se de pé, tinha o tamanho de um rinoceronte, mas era peluda como um urso castanho com uma cauda comprida e espessa. As suas pernas dianteiras terminavam em garras reviradas e ferozes, cinco de cada lado. O seu focinho e pescoço eram enormes, grossos e musculados. Grandes olhos castanhos e pretos olhavam fixamente para ela.
Jenna paralisou, reconhecendo o suficiente da sua fisiologia para perceber que o que se encontrava de pé à sua frente pertencia à família das preguiças, aqueles herbívoros arbóreos que se mexiam lentamente e viviam nas florestas do Brasil. No entanto, este exemplar era gigantesco, uma versão ancestral da preguiça dos dias de hoje. Embora se parecesse com algo saído do passado pré-histórico, esta espécie extinguira-se há apenas dez mil anos.
Megatério, lembrou-se ela. A preguiça-gigante terrestre.
No entanto, Jenna tinha a impressão de que esta criatura não era mais natural na sua forma do que as outras que vira ao longo da sua viagem até aqui abaixo. A provar isto, a criatura arreganhou os lábios, revelando dentes grossos e afiados, concebidos para arrancar a carne dos ossos.
Não era um herbívoro… mas sim um novo carnívoro nascido neste mundo.
Com um rugido, ergueu-se sobre as pernas traseiras, elevando-se a uma altura de quase quatro metros. Lançou um braço curto, rápido como um relâmpago, cortando uma árvore ao meio.
Jenna caiu para trás, fugindo aos trambolhões.
Mais gritos guturais irromperam por toda a floresta à sua volta, ecoando pelas paredes de pedra, fazendo com que fosse mais difícil pensar.
Ainda assim, lembrou-se da carcaça de cabra a ser atirada para o caminho vinda de cima, possivelmente servindo de aviso.
Considerando agora esse aviso, Jenna olhou para cima… e gritou quando uma sombra caiu da copa das árvores na sua direção.