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30 de abril, 13h45 AMT
Roraima, Brasil
Jenna afastou-se aos tropeções da sombra que caía entre a copa das árvores. O seu grito foi abafado, enquanto tentava perceber o que aterrara à sua frente. Era um rapaz alto e magro, de dez ou onze anos, com cabelo preto e olhos azul-claros. Estava descalço, vestia calções e um colete de safari por cima de uma t-shirt.
O rapaz dirigiu-se apressadamente para ela, agarrou-lhe na mão, puxando-a para que o seguisse.
— Anda…
Na sua outra mão, segurava um bastão elétrico comprido e amarelo.
Apontou-o na direção do feto gigantesco que começara a desenrolar novamente a sua folhagem, escondendo a besta enorme que se encontrava do outro lado.
O megatério desceu de duas para quatro patas. Arqueou os ombros, eriçando os pelos da nuca, a pelagem escura riscada em tons pretos e castanhos, de uma cor perfeita para servir de camuflagem nesta floresta sombria e primitiva.
Exibiu os seus dentes grandes e afiados.
O rapaz carregou no botão do bastão. A eletricidade dançou em faíscas luminosas azuis entre os contactos em forma de U. Por esta amostra de poderio, a ferramenta devia ser muito mais potente que os modelos normais.
Os olhos do megatério semicerraram. As suas enormes garras, afiadas como lâminas, cravaram-se com mais força no solo macio da floresta.
O rapaz puxou o braço dela novamente.
Jenna fugiu com ele.
A besta perseguiu-os, movendo-se com cuidado, mantendo a distância. Pelo menos, por agora. Jenna olhava de relance para a esquerda e para a direita, ouvindo ramos a partirem e a folhagem a mexer em trilhos paralelos ao deles.
Esta besta não era a única da sua espécie aqui em baixo.
Movendo-se mais depressa, recuaram até à clareira com chão de cascalho. As três jaulas encontravam-se ao centro, ainda trancadas e eletrificadas. Não se podiam refugiar dentro delas.
Ainda assim, o rapaz recuou até terem as costas quase encostadas às jaulas eletrificadas. Pelo menos, ficavam protegidos de qualquer ataque que surgisse por trás.
E talvez não fossem só as jaulas a fornecer proteção.
O megatério chegou à orla da clareira e parou. Uma pata com garras recuou ao tocar no cascalho, claramente desconfiado deste local. Será que este predador arbóreo estava apenas desconfortável por estar em campo aberto ou seria antes alguma memória, um aviso de uma dor antiga? Era evidente que reconhecia o bastão elétrico.
O rapaz inclinou ligeiramente a cabeça, verificando o estado das jaulas.
A luz vermelha ainda brilhava em todas elas.
Pelo franzir do sobrolho, era óbvio que não esperava isso. Olhou para cima, para a copa das árvores. Havia ramos baixos, para onde seria fácil trepar se pudessem subir para cima das jaulas.
— Era por aí que querias ir? — perguntou Jenna, não tendo bem a certeza se o rapaz falava inglês. — Para cima das árvores?
O rapaz acenou, mostrando que compreendia, mas os seus olhos pareciam assustados.
Já devia ter feito isto antes, aprendendo a explorar esta floresta a uma distância segura. Se se mantivesse no cimo e escalasse por entre os ramos mais finos, os predadores maiores não o conseguiam apanhar. Qualquer coisa mais pequena seria facilmente afastada pelo bastão elétrico.
Era uma boa estratégia de fuga, mas de certeza que não precisavam das jaulas para tirar partido dela.
Jenna apontou para um emaranhado de trepadeiras próximo, um dos muitos que caíam dos ramos.
— Podemos subir por ali.
— Não — respondeu ele.
O rapaz baixou-se, pegou numa pedra maior do chão de cascalho e atirou-o na direção das trepadeiras. Onde a pedra atingiu, a corda folhosa fez um movimento semelhante a um espasmo muscular e espinhos curvos brotaram dela, brilhando com seiva.
— Venenosa — disse o rapaz. — Pica muito e depois morres.
Jenna encolheu-se, pensando como fora pouco cuidadosa quando entrara na floresta anteriormente. Observou aqueles espinhos a retraírem-se de novo, lembrando-se de uma trepadeira que existia numa floresta tropical australiana, equipada com picos curvos semelhantes. Tentou recordar-se do nome, mas a confusão cada vez maior na sua mente fazia com que fosse muito difícil pensar.
Na orla da clareira, o megatério voltou a colocar uma pata no cascalho, as suas garras abriam sulcos profundos. Qualquer que fosse o medo que o mantinha afastado, estava a esmorecer.
O rapaz encontrou a mão de Jenna e apertou-a com força.
Mais sombras moviam-se na orla da clareira, apertando o cerco sobre eles.
Jenna puxou o rapaz para mais perto, colocando-o ligeiramente atrás de si, preparada para o proteger. Ela sussurrou-lhe:
— Como te chamas?
13h48
Uma voz preocupada desviou a atenção de Kendall da pilha de apontamentos da investigação de Cutter. Olhou de relance e viu a mulher de Cutter entrar no laboratório. Parecia desesperada, levantando um braço quando viu o marido.
— As-tu vu Jori?
— Jori? — perguntou Cutter, passando pela bancada de trabalho em direção à mulher e falando francês. — Pensava que ele estava contigo.
Ashuu abanou a cabeça.
Kendall colocou um dedo sobre o papel para assinalar onde ficara. Estivera a ler rapidamente nos últimos minutos, sem saber quanto mais tempo Cutter o deixaria aceder a estes ficheiros. Continham relatos das suas experiências sobre o uso do magnetismo para quebrar cadeias de AXN, destruindo aquelas colunas de ferro com a intensidade certa. Escreveu os achados do homem num bloco de notas: tem de se gerar um campo com a força de, pelo menos, 0.465 Tesla, utilizando um campo magnético estático.
—Vamos ver as câmaras — disse Cutter, tocando no ombro da mulher de forma reconfortante. — Já sabes como é o rapaz. Sempre a explorar. Está naquela idade, cheio de curiosidade, as hormonas começam a manifestar-se, está a tentar encontrar o seu lugar no mundo entre a infância e a juventude.
Cutter dirigiu-se para Kendall e enxotou-o do caminho.
— Podes ler isso mais tarde.
Kendall fez deslizar a sua cadeira para o lado, levando os papéis consigo. Escurecera a imagem do ecrã depois de ver Jenna a sair da jaula e a entrar na floresta. Não queria ver o que acontecia a partir daí. Cutter iluminou o ecrã novamente, recuperando a imagem da clareira da floresta.
Kendall estava prestes a regressar à leitura quando um movimento no ecrã lhe captou a atenção. Jenna regressara, de costas voltadas para as jaulas… mas já não estava sozinha.
Um rapazinho segurava-lhe a mão, com um bastão elétrico na outra.
Cutter inclinou-se para a frente.
— Jori…
Ashuu aproximou-se rapidamente, olhou para o ecrã e soltou um pequeno gemido de medo, agarrando-se à garganta.
Cutter virou-se, agarrou-a pelos ombros e levou-a, firme mas gentilmente, para junto de Mateo.
— Fica aqui, mon amour. Vou buscar o nosso menino.
Kendall continuava a olhar fixamente para o ecrã. Viu um vulto escuro e gigantesco a mover-se em direção à clareira. O que quer que fosse, mantinha-se na sua periferia, mas Kendall suspeitava tratar-se da criatura que avistara antes por breves instantes. Lembrou-se daquelas garras, daquele manto de pelo escuro desgrenhado.
Megatério.
Uma criatura da última Idade do Gelo.
— Olhem! — gritou Kendall, chamando a atenção de todos para o ecrã.
Cutter chegou-se à frente, olhou de relance para o monitor e praguejou.
Agora, mais sombras moviam-se na orla da clareira.
— Não vais conseguir chegar lá abaixo a tempo — disse Kendall. — Mas olha para a Jenna. Repara no que ela está a fazer.
13h49
Vá lá…
Jenna olhou para a câmara. Estava montada no cimo da árvore, apontada para a clareira. Anteriormente, desconfiara que estava a ser vigiada. Por sorte, o rapaz sabia onde se encontrava a câmara.
Esticou-se para ficar à vista da lente e apontou com um braço para as jaulas, enquanto fazia um movimento de corte em frente ao pescoço.
Desliguem o raio da eletricidade.
O rapaz chamou-a.
— A luz está verde!
Até que enfim.
Jenna voltou a entrar na jaula. Tinham duas opções: esconderem-se lá dentro e esperar que alguém voltasse a ligar a eletricidade… ou seguir o caminho do rapaz e trepar pelas copas das árvores acima.
Não era uma decisão difícil.
Jenna olhou de relance para o megatério. A besta tinha metade do corpo na clareira e a outra metade na floresta, oscilando entre uma e outra. Lembrou-se da criatura a erguer-se sobre as duas pernas traseiras, atingindo quase quatro metros de altura, cada garra com mais de quarenta centímetros de comprimento. Não lhe apetecia confiar a sua vida ou a do rapazinho àquelas grades de aço, eletrificadas ou não.
E não era apenas com esta preguiça que tinham de se preocupar.
Avistara, pelo menos, mais quatro.
Apontando para o topo da jaula, Jenna disse:
— Sobe.
Jori passou-lhe o bastão elétrico e trepou pelas grades acima como um macaco. Quando chegou ao topo, Jenna passou-lhe o bastão. Jori debruçou-se sobre ela, cobrindo-a, soltando faíscas de eletricidade na direção do megatério que se encontrava à vista.
Jenna agarrou-se à jaula, colocou o pé na primeira grade… e viu a preguiça gigantesca a sair disparada da floresta, do outro lado das jaulas, e a correr na sua direção, prestes a atacar.
Jenna apercebeu-se do seu erro.
Não fora o medo que mantivera a matilha afastada.
As criaturas esperaram até terem a certeza de que a eletricidade estava desligada e que não voltaria a ser ligada, usando o rapazinho como cobaia. Enquanto ele estivesse lá em cima, as criaturas sabiam que podiam atacar sem medo de serem eletrocutadas.
— Jori! Salta!
Jenna conseguiu abrir a porta um segundo antes de a preguiça investir sobre o lado oposto da jaula. Rolou para dentro e fechou a porta. Por cima, Jori saltou do topo da jaula e agarrou-se a um ramo, saltando para cima dele com mestria.
Atrás dela, a preguiça embateu contra as três jaulas, fazendo com que estas ficassem de lado. Enquanto a besta rosnava, as garras cravavam-se na parte de cima, na tentativa de atirar as jaulas ao chão. Ela ficaria ali presa se a jaula aterrasse com a porta virada para baixo.
— Jenna!
Jori pendurou-se de cabeça para baixo e atirou o bastão elétrico para junto dela. Em vez de cair a direito por entre as grades, o bastão bateu de lado e começou a rolar pela lateral inclinada da jaula, mesmo entre as patas do gigante. Jenna tentou apanhá-lo, segurou o cabo e apontou a ponta eletrificada para a preguiça gigantesca. Golpeou-a na zona sensível da axila, onde tinha menos pelo, e os pontos de contacto explodiram ao tocar na sua pele, suficientemente escaldante para esturricar.
O megatério soltou um rugido e caiu, deixando a jaula voltar ao lugar. Torcendo-se para o lado, a criatura caiu de quatro, lambendo a ferida debaixo do braço, e retirou.
Jenna voltou a sair da jaula, agitando em movimentos amplos o bastão, tentando abranger a clareira toda.
O megatério que ainda se encontrava na clareira observou-a com os lábios arreganhados. Contudo, passados alguns momentos, retirou-se de volta para a escuridão. Naqueles olhos viu uma fúria imensa, uma promessa de que esta guerra não terminara ali.
Jenna aproveitou o momento de acalmia para trepar a porta, rolar para cima da jaula e depois saltar para se juntar a Jori nas árvores.
— Segue-me — disse o rapaz. — Muito cuidado.
Jori indicou o caminho, subindo cada vez mais alto nas copas, movendo-se de ramo para ramo, que abanavam com o peso dela. Assim que ficou satisfeito com a altura a que se encontravam, Jori começou a dirigir-se para os portões distantes deste nível. Jenna desconfiava que ele tivesse alguma forma de transpor essa barreira.
E depois?, pensou ela. Ainda estarei presa nesta ilha no céu… enquanto um vírus destrói a minha consciência.
Tentou afastar aquelas preocupações por agora. Um problema de cada vez. Era só isso que a sua mente aguentava.
Jori seguia um caminho que lhe parecia familiar, sabendo onde os ramos entre as árvores ficavam mais perto para saltar ou onde podia atravessar pontes de trepadeiras pendurado pelas mãos e pés. Juntos, atravessaram as copas das árvores.
— Não! — avisou Jori, afastando-a do que parecia ser um simples salto para uma árvore próxima. Apontou para uma colmeia do outro lado do tronco. — Vespas.
Jenna acenou com a cabeça, não estava com disposição para ser picada.
Jori levou-a por outro caminho, mais difícil, mas Jenna continuou a olhar para aquela colmeia. Um pequeno pardal voava a grande velocidade entre os ramos e passou muito perto daquele ninho que zunia. Um enxame de vespas avançou, envolvendo o pequeno pássaro. Após cada picada, o seu voo ficava mais errático. Em seguida, caiu aos trambolhões no chão da floresta, ainda coberto de vespas.
— São venenosas? — perguntou a Jori, que reparara na sua atenção.
— Não.
Jori continuou a atravessar a densa rede de trepadeiras, equilibrando-se com os braços abertos. Chegou ao outro lado e disse:
— Picam com… — começou ele, sendo evidente que não conseguia encontrar a palavra. Esfregou a barriga e continuou: — … Sucos que derretem a comida.
Jenna olhou ainda com mais medo para a colmeia.
Suco gástrico.
Então os seus ferrões devem produzir um químico semelhante ao veneno das aranhas.
— Comem-nos de dentro para fora — avisou Jori, como se isto fosse a coisa mais normal de se dizer.
Continuaram durante mais uns vinte metros em silêncio, acompanhados somente pelo canto dos pássaros e o palrar dos papagaios, vindo de cima, dos níveis superiores deste jardim. Em seguida, ouviu um gemido mais suave, vindo da sua esquerda. O choro desolado fê-la aproximar-se.
— Não — avisou Jori, novamente. — Demasiado perigoso.
Queria obedecer, mas o ruído parecia vir de perto, da árvore ao lado. Deu a volta ao tronco da árvore e afastou os ramos do rosto.
Demorou algum tempo a identificar a fonte dos gemidos suaves. Um ninho de trepadeiras encontrava-se pendurado em ramos que atravessavam uma pequena fenda. Um movimento mínimo captou-lhe a atenção, um membro peludo, do tamanho do braço de uma criança pequena, parecia chamar, implorar. Um conjunto de garras curvas abriam-se e fechavam-se, mais por causa da dor do que por vontade própria. Seguiu o braço até ver um corpo do tamanho de uma cria de urso, envolvido por trepadeiras. Até de onde se encontrava, conseguia ver os espinhos curvos, os pingos de sangue vermelho-vivo. O corpo moveu-se e as trepadeiras apertaram, provocando outro gemido da pequena criatura.
O seu coração condoeu-se com esta visão.
Jori puxou-lhe o braço para baixo e os ramos que Jenna empurrava para conseguir ver voltaram à sua posição inicial.
— Lei da selva — disse ele.
Ela conseguia ver que ele tentava dizer isto com bravura, como se fosse uma lição que ele queria mostrar que aprendera, mas, ainda assim, parecia desolado.
Continuou a percorrer o dossel da floresta, tentando trazê-la consigo.
— Porque me ajudaste? — gritou ela. — Porque contrariaste a lei da selva por mim?
Jori parou e virou-se. Olhou para o rosto dela, depois para as suas próprias mãos, desviando em seguida o olhar.
— És bonita. Lei da selva — Jori abanou a cabeça — não para ti.
Com essas sábias palavra, continuou em frente.
13h55
Cutter entrou na dolina, seguido por dois homens armados. Pediu via rádio que dois carros elétricos fossem ao seu encontro. Um deles traria mais quatro homens macuxi armados. A sua cunhada viria no segundo.
Rahei olhava furiosamente para ele, como se tudo isto fosse culpa sua. Embora a mulher tivesse o sangue-frio de uma cobra, amava Jori. Somente o rapaz conseguia trazer ao de cima alguma afabilidade na mulher, mas esse amor também se podia tornar feroz, transformando-a numa leoa a defender a sua cria.
Ainda assim, Cutter aceitava-o agora de boa vontade.
Entraram nos carrinhos e percorreram a grande velocidade o caminho sinuoso, quase sem esperar que os portões abrissem na totalidade, passando a rasar para continuar em frente.
Cutter não conseguia apagar da memória a imagem do filho a desaparecer entre aquelas árvores sombrias, o mais perigoso habitat imaginável. O que me passou pela cabeça ao espicaçar a curiosidade dele em relação à vida que criei?
Ele sabia que, em parte, era orgulho, ao ver o respeito e a maravilha no rosto jovem de Jori. Era todo o reconhecimento de que precisava para o seu trabalho árduo e ambição. O seu público era uma pessoa e isso bastava-lhe, sobretudo por essa pessoa ser Jori.
Percebeu que a sua respiração estava mais pesada, à medida que a tensão e o medo aumentavam. Rahei deve ter-se apercebido disso e agarrou-lhe o joelho, os dedos a cravarem-se como punhais, dizendo-lhe sem palavras para se aguentar.
Por Jori.
Finalmente, chegaram ao último portão, e os dois carrinhos estacionaram.
— Deixem o portão aberto — disse Cutter ao sair do carrinho. — Se o Jori estiver ferido, não quero perder um único segundo.
Deixou um guarda a vigiar os carros e o portão. Desceu a rampa com os outros, penetrando nas profundezas da floresta.
Colocando a mão à volta da boca, entoou o seu desafio a este mundo hostil.
— Jori! Onde estás?
13h56
Kendall selou o último fecho do seu fato de biossegurança e entrou no laboratório. Antes de sair a correr, Cutter avisara Kendall para dar início aos preparativos para introduzir aquele código destrutivo no seu invólucro. Ainda mais preocupante, Kendall fora instruído a esperar uma amostra de sangue de Volitox antes do final do dia.
Kendall não discutira. Ele queria voltar a ter acesso a este espaço de isolamento. Olhou pela janela, para onde Mateo e Ashuu falavam baixinho, as suas cabeças unidas, um irmão e uma irmã a consolarem-se mutuamente. O gigante ensombrava a figura frágil da irmã. Ela abrigava-se na sua força e apoio.
Kendall sentia-se mal por ter de os matar, mas tinha de chegar a um telefone, arranjar alguma forma de partilhar com o mundo exterior a cura para o que afligia a Califórnia, uma frequência magnética capaz de destruir o organismo que criara.
O caos atual em que se encontravam por causa do rapaz era a sua melhor oportunidade.
Até Cutter se descuidara, uma raridade para alguém tão genial.
Kendall bateu no bolso, onde escondera o objeto que roubara de uma das mesas enquanto estavam todos distraídos. Dirigiu-se aos grandes frigoríficos ao fundo do laboratório, abriu as portas e procurou entre várias prateleiras de frascos. Agradeceu a Cutter pelo seu minucioso sistema de catalogar e indexar. Encontrou rapidamente o que precisava e agarrou numa dúzia de frascos, enfiando-os no bolso.
Olhou por cima do ombro, certificando-se de que Mateo continuava ocupado.
Só mais um minuto ou dois.
Dirigiu-se para uma das salas de exame nas traseiras, os espaços utilizados para estudar os tecidos e a anatomia das criações de Cutter. Kendall passou pela máquina de raios X e de tomografia por emissão de positrões e entrou na sala da ressonância magnética, revestida a cobre.
Imagem por ressonância magnética.
A ironia da situação não lhe escapava. O magnetismo era a chave para salvar o mundo, mas poderia também levar à queda de Cutter.
Olhou fixamente para a mesa rodeada pelo anel fechado de ímanes enormes. Eram suficientemente poderosos para provocar danos graves quando operados por alguém descuidado ou sem o treino adequado. Lesões, até mortes, já tinham ocorrido devido ao uso inadequado destes enormes ímanes, mas eram perigosos por outra razão.
Dirigiu-se à caixa de refrigeração na parede junto à porta e levantou a tampa. Os ímanes utilizados numa ressonância magnética são arrefecidos por hélio líquido. Em caso de emergência, o hélio pode ser rapidamente libertado para retirar a potência a um íman, mas era algo perigoso de se fazer num espaço fechado, tal como um laboratório de biossegurança nível 4 hermético, sobretudo este, enterrado nas profundezas de um tepui.
A maior parte dos hospitais ventilava este cano de hélio para o exterior, mas Kendall já investigara e descobrira que Cutter, com toda a sua arrogância, não se tinha dado ao trabalho de o fazer.
Kendall saiu da sala da ressonância magnética e foi verificar qual era a situação no laboratório principal. Mateo estava agora sozinho, olhando fixamente para ele. Parecia que Ashuu já se tinha ido embora.
Kendall enfrentou o olhar do nativo, depois carregou no botão.
Mergulhou para fora da porta e atirou-se de cabeça, deslizando pelo chão de barriga para baixo.
Atrás dele, um rebentamento glacial explodiu com uma força tremenda, enquanto o hélio líquido se expandia oitocentas vezes mais que o normal, empurrando o oxigénio para a frente daquela onda. Janelas rebentaram para dentro do laboratório principal, estilhaçando-se sobre o rosto de Mateo. Um pedaço de íman saiu disparado da sala e atingiu uma fila de botijas de oxigénio na sala ao lado. Explodiram devido à faísca e formaram uma bola de fogo, desafiando a nuvem branca e gelada de hélio que irrompia por aquela janela estilhaçada.
A detonação fora maior do que ele esperava.
Pôs-se de joelhos, depois de pé. Dirigiu-se a cambalear para a saída, optando por sair pela janela de observação em vez da saída principal da área de isolamento.
Acho que já temos uma falha de contenção aqui.
Viu Mateo caído no chão, o seu rosto queimado pela bola de fogo, o cabelo chamuscado. Kendall tinha de passar por cima dele para atravessar a janela e trepar até à casa lá em cima para encontrar um telefone.
Algo lhe agarrou a perna.
Olhou para baixo e viu dedos presos ao seu calcanhar.
Mateo levantou-se, os olhos a brilhar na sua carne queimada.
Kendall tentou fugir, mas Mateo agarrou num cilindro de vidro partido e espetou-o na sua anca.