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30 de abril, 13h58 AMT
Roraima, Brasil
— Estou a avistar uma coluna de fumo à frente — disse o sargento Suarez do cockpit do Valor. — Está a subir daquele cume.
Painter inclinou-se para a janela à medida que o aparelho de rotores basculantes se deslocava rapidamente para o planalto. O compartimento dos motores rodou, diminuindo a velocidade da aeronave para a frente. O piloto posicionou habilmente o Valor sobre o tepui, o aparelho inclinou-se suavemente e a seguir pairou com precisão sobre o local. As suas lâminas cortaram a corrente de fumo que saía das portas abertas de uma casa rústica de estilo franco-normando, oculta sob a entrada de uma gruta.
Tem de ser a casa de Cutter Elwes.
Um pouco afastado, Painter viu um pequeno lago de águas calmas e uma dolina no meio de uma floresta raquítica. Enquanto desciam, avistaram um punhado de homens a correr lá em baixo e a disparar sobre o intruso.
— Abramson! Henckel! — gritou Suarez. — Que tal mostrar-lhes como é que os fuzileiros dizem olá?
O Valor desceu a pique, levantando ligeiramente Painter do seu lugar. A escotilha abriu-se de um dos lados, trazendo o rugido dos motores e a forte deslocação de ar das hélices para dentro. Os dois militares já tinham os cabos presos. As cordas foram atiradas para baixo e os homens rolaram para fora rapidamente. À medida que deslizavam pelas cordas, começaram a disparar, atingindo vários atacantes e dispersando os outros.
As rodas do Valor tocaram o solo um instante depois.
— Vamos juntar-nos à festa — disse Drake a Malcolm e Schmitt.
Empunhando uma Sig Sauer, Painter seguiu os fuzileiros que saltavam do avião.
Suarez ia atrás deles.
— Os meus homens e eu tomamos o cume. — Tocou com a mão no ouvido. — As comunicações estão abertas. Chama se precisares de ajuda.
Painter olhou para a casa envolta na bruma, sabendo onde deviam começar a busca.
Onde há fumo, há fogo.
Painter conduziu a equipa em corrida agachada para as portas abertas. Os fuzileiros levavam as espingardas apoiadas nos ombros, os rostos sombreados pela barba cor de ferrugem encostados às coronhas. Painter manteve a pistola pronta a disparar, agarrando a arma com as duas mãos.
Um atacante solitário disparou por uma das janelas do andar de cima.
Drake moveu-se mais depressa do que Painter conseguiu reagir — e disparou. Vidro estilhaçou e um corpo caiu pela janela e desabou sobre as pedras. Passaram por ele a correr e entraram num grande átrio.
Vazio.
— Elevador — disse Painter apontando a pistola para a gaiola de ferro forjado.
Correram para a frente e encontraram uma mulher atraente encolhida no chão num quarto ao lado. Ela parecia confusa mas ilesa. Não ofereceu resistência. Pelos olhos inchados e o rosto manchado de lágrimas, o que quer que a tivesse perturbado tinha pouco que ver com a chegada deles.
Painter sacou de um par de fotografias laminadas: uma de Kendall Hess, outra de Jenna Beck. Segurou-as em frente da cara dela.
— Estas duas pessoas estão aqui?
Ela olhou para cima, apontou para a de Hess, depois para o elevador.
Painter não tinha tempo para delicadezas, não com um dispositivo nuclear programado para detonar na Califórnia dali a menos de uma hora. Puxou a mulher para a pôr de pé.
— Mostre-me.
Ela cambaleou para o elevador e apontou o botão para um piso mais abaixo, algures sob a casa.
Painter soltou-a e entrou na caixa do elevador com Drake.
— Malcolm, Schmitt, revistem este lugar piso por piso. Procurem a Jenna. E o Cutter Elwes.
Os homens anuíram com a cabeça.
Drake fechou com um movimento rápido a porta do elevador e Painter carregou no botão. O elevador afundou-se, passou por rocha sólida, descendo mais do que Painter esperava. Por fim, o fumo tornou-se mais espesso e o elevador parou num laboratório gigantesco.
Havia focos de incêndio, fuligem pairava no ar e parecia que uma parede de vidro de um laboratório vizinho tinha sido estilhaçada para dentro daquela sala.
Dois homens a lutar ficaram à vista saídos de trás de um posto de trabalho.
O que se encontrava por baixo estava claramente a perder, tinha a barriga ensanguentada e estava a ser estrangulado por uma mão enorme. O atacante levantou o outro braço, empunhando um pedaço de vidro coberto de sangue. O rosto do agressor era uma ruína enegrecida — mas Painter reparou no traçado de uma cicatriz familiar.
Apontou a sua Sig Sauer e disparou duas vezes. Os dois tiros atingiram a testa do homem. O gigante tombou para trás e ficou estendido no chão.
Painter correu para a frente, indo em auxílio do homem ferido. Este usava um fato de proteção biológica com o capuz rasgado. Era Kendall Hess.
— Doutor Hess, chamo-me Painter Crowe. Viemos para…
Hess não precisou de mais encorajamento. Talvez o fuzileiro com todo o equipamento de combate atrás dele fosse suficientemente esclarecedor. Dedos enluvados agarraram o braço de Painter.
— Preciso de falar com alguém da Califórnia. Eu sei como travar o que se escapou do meu laboratório.
Eram as primeiras boas notícias em dias.
— E onde está a Jenna Beck? — perguntou Drake.
Hess olhou de relance para ele, notando provavelmente a angústia na voz do fuzileiro.
— Ela está aqui… mas corre grande perigo.
— Onde está ela? Que perigo?
O olhar de Hess voou para um relógio na parede.
— Mesmo que ela viva, não será a mesma dentro de trinta minutos.
O rosto de Drake empalideceu.
— O que quer dizer com não será a mesma?
14h04
Jenna debateu-se com o nevoeiro que enchia a sua cabeça. Era preciso um pensamento distinto para cada movimento:
… agarrar trepadeira.
… prender perna.
… içar para o próximo ramo.
Jori continuava a olhar para trás, para ela, franzindo a testa de preocupação, sem perceber porque é que ela se demorava tanto.
— Continua — disse ela, fazendo-lhe sinal com a mão para que ele avançasse. Até a língua lhe parecia mole e pesada, recusando-se a formar palavras sem aquela mesma parcela extra de atenção.
Tentou usar o seu mantra para a fazer mexer-se como antes.
Eu sou Jenna Beck, filha… filha de… Abanou a cabeça numa tentativa de desalojar aquele nevoeiro. Eu tenho um cão.
Visualizou o nariz preto do cão, sempre frio, a tocá-la.
Nikko…
Aquelas orelhas espetadas.
Nikko…
Os seus olhos — um azul-claro, o outro castanho.
Nikko…
Bastava por agora.
Concentrou-se no rapaz, seguindo os seus movimentos, imitando-o em vez de ter de pensar. Lentamente, ele ia-se afastando. Ela levantou um braço para o chamar, mas não saiu nenhum nome. Ela pestanejou — depois lembrou-se, o nome a subir através do nevoeiro, porém ela receava que, se aquele nevoeiro se tornasse mais denso, em breve nada sairia dele.
Abriu de novo a boca para o chamar, mas outra voz se sobrepôs, gritando de algum lugar mais à frente.
— JORI!
14h06
Cutter chamou outra vez, a voz cada vez mais rouca.
— Jori!
Um pouco antes, tinha ouvido uma explosão e visto uma estranha aeronave trovejar sobre a dolina, seguida por uma ruidosa saraivada de tiros. Sentiu o seu mundo colapsar à sua volta, mas nada disso lhe importava naquele momento.
— Jori! Onde estás?
O seu grupo tinha chegado à base da rampa em espiral e começara a percorrer o comprido caminho de gravilha que passava pela floresta. Rahei ia à frente, levando uma espingarda ao ombro equipada com um dispositivo de atordoamento. Mais cinco homens caminhavam ao seu lado e atrás dele, todos fortemente armados. Cutter também tinha um dispositivo de detonação para as munições enterradas por baixo do chão daquela dolina. Era um plano de contingência se ele alguma vez precisasse de depurar aquele lugar, mas de momento pensava nisso mais como um ato de vingança.
Se essas bestas magoaram o meu filho…
— Jori!
Então, à esquerda do caminho, um grito débil atravessou a floresta.
— Pai!
— É ele! Ele está vivo.
Uma alegria encheu-o como nenhuma outra — acompanhada por uma onda de terror. Ele não podia deixar que alguma coisa acontecesse ao seu filho.
Rahei voltou atrás e apontou para a floresta na direção da voz de Jori. Se havia alguém que podia encontrá-lo, esse alguém era a sua cunhada. Ela era um dos melhores caçadores que ele conhecia. Rahei pôs-se a caminho, arrastando todos com ela. Não diminuiria o seu andamento para compensar qualquer deficiência daqueles que a seguiam, e Cutter não admitiria que fosse de outra maneira.
— Pai!
Mais perto agora.
Um minuto depois, Rahei correu para a frente quando uma figura toda ela braços e pernas magros e compridos desceu das árvores e se precipitou nos seus braços. Ela fez girar Jori num círculo completo, depois largou-o e deu-lhe um forte abraço.
Cutter deixou-se cair sobre um joelho com os braços abertos.
Jori correu para ele e atirou-se para os seus braços.
— Estou muito zangado contigo, meu rapaz — ralhou, mas abraçou o filho ainda com mais força e beijou-o no cimo da cabeça.
Daquela mesma árvore, desceu outra figura, caindo nos últimos dois metros, mas mesmo assim aterrando de pé.
Rahei olhou para ela disposta a subjugá-la, mas Cutter sabia que Jenna não era responsável por nada daquilo. De facto, ela provavelmente salvara a vida de Jori. Dirigiu-se a ela e abraçou-a também, sentindo-a retesar-se ao tocá-la.
— Obrigado — disse ele.
Quando a soltou, ela engoliu visivelmente, parecendo que queria dizer alguma coisa. Os seus olhos tinham ficado sulcados de grossos vasos sanguíneos enquanto vagueavam pela floresta.
Estava quase a morrer.
Lamento…
— Vamos levá-la connosco — ordenou Cutter. Ela não merecia morrer ali, já não, não depois de ter salvado o seu filho. — Despachem-se. Vamos pelos túneis secretos da floresta. Não sei o que está a acontecer lá em cima, mas penso que estamos em perigo.
Rahei voltou a ir à frente, imprimindo um andamento duro.
O caminho apareceu à frente, mas, antes que o pudessem alcançar, o homem à esquerda de Cutter caiu com a cabeça para trás, a garganta aberta até ao osso. O sangue cobriu os ramos à medida que ele colapsava.
Alguma coisa atingiu Cutter por trás, levantando-o do chão e lançando-o vários metros pelo ar. Embateu violentamente contra um arbusto espinhoso e rolou. Viu de relance um flanco maciço e coberto de pelo passar rapidamente por ele. Cutter rolou para o lado, mantendo-se agachado, enquanto um tiroteio estalava, rasgando fetos, pulverizando troncos, mas não havia qualquer sinal dos atacantes.
Cutter levantou-se, procurando em volta.
Que diabo aconteceu?
— Jori — disse Jenna com a voz estrangulada. — Eles levaram-no.
Cutter girou sobre si mesmo, como um redemoinho de vento, procurando a toda a volta.
O seu filho tinha desaparecido.
Rahei apareceu ao seu lado, com o rosto frio de fúria.
— Para onde? — Cutter virou-se para Jenna. — Para onde é que foram?
Jenna apontou para a parte mais escura da floresta, onde a antiga selva desaparecia contra as paredes da dolina.
— As grutas deles… — percebeu Cutter.
Os megatérios habitavam as grutas e usavam as suas potentes garras para cavar túneis e cavernas.
Sem uma palavra, Rahei começou a correr naquela direção. O seu desprezo por todos eles era óbvio. Ela tencionava tomar o assunto nas suas capazes mãos. Mesmo que isso significasse levar todas as espécies de novo à extinção.
— Vamos — disse Cutter, dispondo-se a segui-la.
Jenna pôs-se à sua frente, colocando uma mão no seu peito.
— Não, não é… dessa maneira.
Ela debateu-se, abanando a cabeça para conseguir libertar as palavras.
Ele tentou passar por Jenna, mas ela impediu-o com os olhos suplicantes.
— Eles não o mataram — tentou ela de novo, apontando para o homem morto. — Levaram-no. Rahei. A maneira dela… a sobrevivência dos mais fortes… vai fazer com que o matem.
— Então, o que é que fazemos?
Ela fitou Cutter, mostrando no seu rosto toda a sinceridade e seriedade que ela lutava por encontrar nas suas palavras.
— Temos de fazer de outra maneira
11h14 PDT
Sierra Nevada, Califórnia
Lisa estava à janela da capela e olhava fixamente para o vizinho campo de aviação. Um drone do tamanho de um tanque encontrava-se na pista de descolagem. Tinha uma forma quadrada com quatro hélices, uma em cada canto. Parecia uma versão gigantesca desses quadricópteros vendidos nas lojas de modelismo, mas este não era de brincar.
No porão de carga estava um dispositivo nuclear preso por correias grossas a uma plataforma de metal. Um grupo de técnicos ainda trabalhava junto dele. Outros encontravam-se na pista claramente a discutirem. Ela sabia que um desses homens era o doutor Raymond Lindahl. Como diretor do Centro de Desenvolvimento de Testes do Exército dos Estados Unidos, era apropriado que se encontrasse presente, mas Lisa desejou que fosse Painter e não ele a estar ali, alguém menos ultraconservador, mais capaz de pensar fora da caixa.
Uma voz soou atrás dela.
— Já foi avisada de que esta área tem de ser evacuada — disse a cabo Sarah Jessup. — A detonação está marcada para daqui a quarenta e cinco minutos. Já temos pouco tempo, sobretudo porque ouvi dizer que podem adiantar a hora devido a uma ameaça de ventos cruzados.
— Só mais uns minutos — retorquiu Lisa.
Painter nunca me desiludiu.
Como que convocado por este pensamento, o telefone tocou. Apenas um punhado de pessoas tinha este número. Lisa saltou para o aparelho e pegou nele. Nem se preocupou em confirmar que era Painter.
— Dá-me boas notícias — disse ela.
A voz dele estava cheia de estática, mas era tão bem-vinda.
— É magnetismo.
Ela tinha a certeza de que não tinha ouvido bem.
— Magnetismo?
Ela ouviu enquanto Painter explicava como tinha encontrado Kendall e que o homem tinha uma solução, uma resposta tão estranha como a própria doença.
— Qualquer força magnética forte provavelmente serve — rematou Painter —, mas, de acordo com alguns testes efetuados, é necessário, e estou a citar, gerar um campo de força de pelo menos 0.465 Tesla usando um campo magnético estático.
Ela anotou rapidamente a informação numa folha de papel.
— O efeito deve ser praticamente imediato, pois esse campo magnético destrói o organismo a nível genético, não danificando qualquer outra coisa.
Oh, meu Deus…
Ela olhou fixamente pela janela, sabendo da força destrutiva prestes a ser libertada naquele lugar sem necessidade alguma.
Painter tinha informação adicional.
— Hess diz que a explosão nuclear não terá qualquer efeito neste organismo. Só conseguirá que se espalhe a uma maior distância e num raio mais amplo.
— Tenho de os impedir.
— Faz tudo o que puderes. Kat já está a tentar pelas cadeias de comando até lá acima para parar isto, mas conheces Washington. Temos menos de quarenta e cinco minutos para mover uma pedra que raramente se move.
— Já fui. — Ela desligou o telefone, sem mesmo se despedir. Virou-se para Jessup. Temos de ir buscar Nikko. Ele é a nossa única esperança.