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29 de maio, 23h29 PDT
Vale de Yosemite, Califórnia

— Não foi propriamente o teu casamento na praia — disse Painter, rodando um copo de whisky numa mão, com o amor da sua vida enroscada debaixo do seu outro braço.

— Foi perfeito — disse Lisa, aconchegando-se a ele.

Já tinham mudado para uma roupa mais confortável e encontrado aquele sofá de dois lugares extremamente confortável em frente da enorme lareira de pedra do salão principal do Hotel Ahwahnee. A receção do casamento esmorecia atrás deles, com os convidados a subirem para os quartos ou a irem-se embora.

O casamento acontecera ao pôr do sol numa enorme extensão de relvado, maravilhosamente iluminado e repleto de flores, incluindo as preferidas da sua mulher, os crisântemos, cada pétala de um tom profundo de cor de vinho delineada a ouro. O hotel até pagara todas as despesas, um pequeno agradecimento por tudo o que o par fizera para salvar o vale e a área circundante. A oferta generosa fora possível pois o movimento ainda estava lento, com os turistas a regressarem lentamente à área.

Bioterrorismo e bombas atómicas…

Ainda demoraria algum tempo a afastar essa reputação, mas facilitara os planos de casamento feitos à última da hora. Tinham adiado a data até Josh estar suficientemente recuperado para vir, exibindo os últimos avanços da DARPA relativamente a próteses. Ele e Monk tinham muito de que falar à mesa. O irmão mais novo de Lisa era extremamente resiliente, tendo em conta as circunstâncias, estando até ansioso por regressar às montanhas e enfrentar novos desafios.

A última razão por que tinham escolhido aquele lugar para celebrar o casamento fora a sua proximidade da zona de limpeza e supervisão da área próxima do lago Mono. Lisa ainda se encontrava a trabalhar com o doutor Edmund Dent, o virologista, e a sua equipa. Por sua vez, Painter podia aproveitar a oportunidade para passar algum tempo longe do escritório com Lisa. Kat era capaz de assegurar o trabalho diário, à exceção deste fim de semana.

Ela e Monk tinham saído pouco depois do jantar, com as duas meninas ao colo, regressando aos seus quartos antes do primeiro voo da manhã para casa. Durante a sua ausência, Gray aguentava o forte em D.C., tendo que se manter perto de casa por razões pessoais.

Alguns dos outros convidados, bem…

Kowalski apareceu ao lado deles, o casaco sobre um braço, os dois botões de cima da camisa abertos. Fumava um charuto.

— Acho que não deves poder fumar aqui — avisou Lisa.

Kowalski tirou o charuto de entre os lábios e olhou fixamente para ele.

— Oh, vá lá, é cubano. Não há mais formal que isso.

Jenna passou por trás dele com Nikko preso a uma trela.

— Tenho de ir tratar de um assunto urgente! — disse ela, dirigindo-se ao parque de estacionamento. — … Ou, pelo menos, o Nikko tem.

Tal como Josh, o husky siberiano recuperara completamente e até recebera uma medalha pelos seus serviços.

Kowalski olhou para eles com um ar carrancudo e abanou a cabeça.

— Primeiro, o Kane, agora este cão. Daqui a pouco, a Sigma vai ter de mandar construir o seu próprio canil. — Kowalski apontou o charuto para Painter. — E não tenhas ideias, não vou limpar a porcaria deles.

— Combinado.

Kowalski acenou com a cabeça e afastou-se, envolto numa nuvem de fumo.

Painter suspirou e estendeu a mão.

— Vamos retirar-nos?

— Com certeza. — Lisa colocou a palma da sua mão sobre a dele. — Mas não estavas a contar com uma noite de sono, pois não?

Com um movimento suave, Painter puxou-a para si, deslizou a mão por trás da sua cabeça e beijou-a, afastando-se apenas o tempo suficiente para dizer:

— Quem é que tem tempo para dormir? Temos uma família para começar.

30 de maio, 06h36
Lee Vining, Califórnia

Jenna conduzia em direção à estrada 395 pelo centro da cidade na sua nova pick-up Ford F-150, com a estrela dos guardas-florestais da Califórnia recentemente decalcada no veículo. Fora uma oferta do departamento depois de tudo o que acontecera. O interior ainda cheirava a novo.

Não que vá cheirar assim durante muito mais tempo.

Nikko encontrava-se no banco de trás a arfar-lhe ao ouvido. Geralmente, Jenna repreendia-o, mas desta vez esticou-se para trás e acariciou-lhe o focinho. Embora tivesse recuperado fisicamente, Jenna conseguia ver pequenos sinais de stresse pós-traumático no cão. Não saía de junto dela e era cada vez menos capaz de enfrentar situações sozinho, mas, até nesse aspeto, estava a recuperar lentamente.

Tal como eu.

Ainda se lembrava da sensação de se estar a perder, o nevoeiro a ficar mais denso, inundando-a aos poucos e empurrando tudo o que ela era para fora de si mesma.

Até agora se arrepiava. Dava por si a fazer constantemente um inventário pessoal. Se se esquecesse das chaves, seria um sinal de danos residuais? E se não conseguisse encontrar uma palavra ou lembrar-se de uma morada ou número de telefone? Aquilo era, por si só, desconcertante.

Habituara-se a levantar-se todos os dias ao nascer do sol. Sempre adorara as manhãs junto ao lago. O sol transformava as águas espelhadas numa miríade de sombras, que mudavam em cada estação. As ruas estavam praticamente desertas. Ou, se fosse época alta, era a essa hora que a cidade começava a acordar, a bocejar e a esticar as pernas.

O sossego da manhã sempre lhe dera tempo para refletir, para se recompor. E, neste preciso momento, precisava disso mais do que tudo.

Mas as manhãs agora também significavam outra coisa.

Pegou no rádio e contactou a central.

— Bill, vou parar e comer qualquer coisa.

— Recebido.

Estacionou por baixo do letreiro amarelo do restaurante Nicely e saiu do carro, seguida de perto por Nikko. Entrou no restaurante, fazendo soar a campainha. Atrás do balcão, Barbara ergueu o copo de café expresso quente, o melhor da cidade, e atirou um biscoito a Nikko, que o apanhou no ar, um truque aprendido ao longo dos muitos anos de experiência.

Mas ela agora tinha uma nova rotina.

Uma figura chamou-a de uma das mesas, sem nem sequer se dar ao trabalho de desviar os olhos do jornal.

— Bom dia, querida.

Ela atravessou o restaurante e sentou-se no banco com o seu café na mão.

— Então, o que é que o teu dia te reserva? — perguntou ela a Drake.

Drake aceitara um cargo permanente como monitor de fuzileiros na base da montanha.

— Tu sabes — disse ele —, é provável que tenha de salvar o mundo outra vez.

Jenna acenou com a cabeça, dando um gole no seu café, e estremeceu com a piada.

— MMDD.

Mesma merda, dia diferente.

Drake passou-lhe a secção de desporto do jornal, que ela aceitou.

Não havia nada melhor do que a normalidade.

14h07 GMT
Terra da Rainha Maud, Antártida

— Amigo, se queres continuar a vir para aqui, talvez queiras fazer um contrato de passageiro frequente comigo.

Jason deu uma palmada no ombro do piloto inglês e apertou mais o fecho da sua parka, puxando o capuz para cima.

— Sou capaz de ter de fazer isso, Barstow.

Jason desceu do Twin Otter para o gelo. Olhava fixamente para o aglomerado de edifícios que se espalhava como blocos de brincar à sombra dos penhascos das montanhas Fenriskjeften. Era como se a subestação da Porta dos Fundos tivesse sido uma semente que germinara com o calor por baixo dela e da qual brotara este complexo de investigação internacional cada vez maior sobre a superfície gelada.

Fizeram um enorme progresso.

Ainda assim, lembrava-se daquela viagem há um mês, de abandonar Hell’s Cape pela Porta dos Fundos com Gray, Kowalski e Stella. Tal como Stella prometera, tinham encontrado um CAAT estacionado numa garagem à superfície e tinham-no usado para se aventurarem para a linha costeira, acompanhados pela doutora Von Der Bruegge e os restantes investigadores da estação Halley VI. Com o fim da tempestade solar, conseguiram contactar a estação McMurdo para pedir auxílio.

Agora, estou de volta.

Mas tinha uma boa razão. Ela saiu de uma das estruturas novas mais altas, que se encontrava pintada de vermelho e preto, as cores do British Antarctic Survey, que combinava com a pintura do Twin Otter. Até a sua parka tinha as letras BAS no peito.

Ela caminhou na sua direção, com o capuz para baixo, como se estivesse a passear por um parque em vez de estar a enfrentar o inverno rigoroso da Antártida. Nesta altura do ano, o continente estava mergulhado numa eterna escuridão, mas as estrelas brilhantes e a lua cheia prateada proporcionavam luz suficiente, sobretudo quando acompanhadas pelas rodopiantes ondas elétricas da aurora austral.

— Jason, é tão bom ver-te.

Stella abraçou-o — o seu abraço demorando-se um pouco mais do que o esperado —, mas ele não se queixava.

— Tenho tanto para te mostrar, para te contar.

Stella começou a conduzi-lo para a estação, mas Jason não saiu do lugar.

— Eu tenho lido os relatórios — disse ele, sorrindo. — Realmente, tens muita coisa em mãos. Selecionar secções de Hell’s Cape, abri-las e transformá-las em biosferas protegidas não deve ser uma tarefa fácil. Estava sempre a prometer que te arranjava ajuda especializada e aqui estou eu para cumprir essa promessa.

Jason acenou para o compartimento das traseiras do Otter. A escotilha abriu e duas pessoas saíram do avião vestidas com equipamento para o gelo bastante usado. A mulher enfiou longas madeixas de cabelo encaracolado preto, salpicadas com alguns fios cinzentos, dentro do capuz enquanto o puxava para cima. Foi ajudada a sair por um homem mais alto, encorpado, cuja idade a maioria das pessoas nunca adivinharia. Tal como o seu equipamento, também eles pareciam bastante usados enquanto par, um casal inseparável.

Jason apresentou-os.

— A minha mãe, Ashley Carter. E o meu padrasto, Benjamin Brust.

Stella cumprimentou-os com um aperto de mão, um sorriso de surpresa fazendo-a parecer ainda mais bonita.

— É um prazer conhecer-vos. Entrem, vamos aquecer-nos.

Stella levou-os em direção à estação da Porta dos Fundos, a nova entrada para aquele mundo subterrâneo. Quando se virou, Ben inclinou-se para trás e deu uma cotovelada a Jason.

— Boa, amigo — disse Ben, exagerando o seu sotaque australiano, como fazia sempre que o provocava. — Agora percebo porque querias vir e apresentar-nos pessoalmente. Arranjaste uma miúda à maneira.

Ambas as mulheres olharam de relance para trás, para eles.

Jason baixou a cabeça, abanando-a ligeiramente.

Ben apressou o passo e meteu-se no meio das duas mulheres, colocando os braços por cima delas.

— Então, o miúdo disse-me que encontraste um sistema cavernoso interessante por baixo do gelo.

— Sabe muito sobre cavernas? — inquiriu Stella.

— Fui conhecido por aí a explorá-las.

O padrasto de Jason era, de facto, um espeleólogo exímio, com décadas de experiência, a maior parte delas neste mesmo continente.

— Bem, duvido que alguma vez tenha visto algo como o que encontrámos aqui em baixo — disse Stella, com orgulho.

— Ficarias surpreendida com o que já vimos — disse a mãe de Jason com um sorriso. — Um dia convidamos-te para vires para os nossos lados.

Ben acenou com a cabeça.

— É capaz de haver aí aventuras para todos nós — disse Ben, olhando de relance para Jason. — O que me dizes? Apetece-te divertir?

Jason apressou o passo para os acompanhar.

Porque achei que isto fosse uma boa ideia?

20h23 EDT
Roanoke, Virgínia

Kendall Hess conduzia o carro de aluguer pela longa entrada bordejada de árvores, em direção às instalações privadas do hospital psiquiátrico. Relvados aparados na perfeição estendiam-se até às alamedas ajardinadas e pequenas fontes. O edifício em si estava dividido em quatro alas, que se ramificavam como uma cruz no meio destas instalações de alta segurança.

O hospital não se encontrava em nenhum diretório e poucos tinham conhecimento da existência destes dezasseis hectares, que faziam fronteira com o Blue Ridge Parkway na periferia de Roanoke, Virgínia. Eram instalações para casos especiais, de interesse ao nível da segurança nacional. Para conseguir uma cama aqui, Kendall teve de apelar aos seus contactos junto ao Bioterrorism Risk Assessment Group (BRAG), o grupo de avaliação de risco de bioterrorismo do FBI.

Chegou ao último posto de controlo, mostrou a sua identificação e estacionou. Teve de deixar uma impressão digital na receção e ser escoltado por um dos enfermeiros.

— Como é que ele está? — perguntou Kendall.

— Na mesma. Deseja falar com o responsável clínico dele?

— Não é necessário.

A enfermeira, uma mulher jovem e formal de voz suave, vestida de azul e com sapatos de sola grossa, olhou para ele.

— Ele tem uma visita.

Isso era bom.

Percorreram juntos um longo corredor asséptico, pintado em tons pastel, cores supostamente calmantes. Por fim, chegaram a uma porta que requeria uma chave-mestra especial. Abria para uma pequena sala de avaliação clínica, ao lado do quarto do paciente. Um espelho unidirecional dividia os dois espaços.

Kendall aproximou-se do espelho unidirecional. O quarto ao lado estava decorado com painéis de madeira e uma lareira falsa que tremeluzia chamas de seda. Estantes delineavam a parede do fundo, repletas de livros.

Kendall achou triste, mas algo reconfortante, que os livros ainda trouxessem alguma consolação a Cutter, como se, enterrada nas profundezas do seu córtex cerebral tão danificado, ainda subsistisse alguma memória, alguma paixão pelo conhecimento.

Viu que Ashuu se encontrava sentada num canto, mas olhava tristemente pela janela.

Kendall assegurara que a família de Cutter fosse bem tratada, oferecendo-lhes acomodação e uma pequena mesada para poderem ficar por perto. Jori frequentava uma escola local de Roanoke, acomodando-se bem a esta nova realidade com a adaptabilidade típica dos jovens. A mulher de Cutter era mais preocupante. Ele desconfiava que ela acabaria por regressar à floresta, talvez quando Jori fosse para a universidade. O miúdo era inteligente, era certamente filho do seu pai.

Cutter encontrava-se deitado de costas na cama, os seus pulsos presos por algemas almofadadas, não que ele fosse violento, mas por vezes magoava-se a si mesmo quando não estava a ser observado. Fazia passeios diários com os funcionários e tinha a companhia dos livros, ficava mais calmo quando se encontrava ao ar livre, na natureza, um resquício do que um dia fora.

— Estão a prepará-lo para a noite — disse a enfermeira. — O filho lê sempre para ele à noite.

Kendall ligou o intercomunicador para ouvir, enquanto Jori se sentava na cadeira ao lado da cama, com o livro aberto sobre os seus joelhos magros, e lia para o pai.

A enfermeira acenou com a cabeça para o livro que Jori tinha sobre o colo.

— O filho contou-me que o pai lhe costumava ler este mesmo livro todas as noites.

Kendall leu o título e sentiu um laivo de culpa.

O Livro da Selva, de Rudyard Kipling.

A voz de Jori era doce, cheia de amor pelas palavras, pelas memórias que partilhavam.

Este é o momento do orgulho e do poder,

Garras e presas e gadanhos.

Oh, ouve o chamamento! — Boa caçada, a todos

Que seguem a lei da selva!

23h48
Takoma Park, Maryland

Gray encontrava-se sentado no baloiço do alpendre, com uma cerveja fresca equilibrada sobre o corrimão à sua frente. A noite ainda estava quente, mais de trinta graus, e muito húmida. A temperatura e a humidade punham-no de mau humor… ou talvez tivesse sido o longo dia a visitar lares, limitando a sua escolha aos que tivessem unidades especializadas em Alzheimer.

Uma mão fresca entrelaçou-se na sua. Com apenas um toque, a tensão dentro dele atenuou-se. Ele apertou-lhe a mão, agradecendo-lhe.

Seichan estava sentada ao seu lado, acabada de regressar de Hong Kong. Deixara as malas em casa dele e viera diretamente para aqui, percorrendo ruidosamente a rua na sua mota e chegando mesmo a tempo do jantar. Seichan e o pai de Gray davam-se muito bem.

Mas também quem não o faria?

Olhem para ela.

Mesmo na escuridão, ela era uma escultura de elegância e força, ferocidade e ternura, curvas suaves e músculos definidos. Os seus olhos captavam todas as partículas de luz. Os seus lábios eram suaves como seda. Gray levantou uma mão e percorreu o queixo dela com um dedo, seguindo um fiozinho de suor ao longo da sua garganta.

Meu Deus, como sentira saudades dela.

A sua voz desceu uma oitava para um tom sedutor e intenso.

— Devíamos ir para casa.

O seu corpo estremeceu com aquele convite.

— Vai andando — disse ele. — Vou só verificar se a enfermeira da noite tem tudo de que precisa e depois vou ter contigo.

Seichan endireitou-se e começou a levantar-se, mas deve ter sentido algo e voltou a sentar-se sobre as tábuas do baloiço.

— O que se passa?

Gray virou-se para o outro lado, reparando num bando de pirilampos nos arbustos que se estendiam para lá do parapeito do alpendre. Tinham vindo cedo este ano, como mensageiros que anunciavam a mudança do tempo, diziam alguns, um lembrete das grandes forças que controlavam verdadeiramente este mundo, fazendo com que tudo o resto parecesse insignificante e pequeno.

Gray suspirou, detestando admitir que, por vezes, era demasiado pequeno.

— Posso salvar o mundo inúmeras vezes. Porque não posso salvá-lo a ele? — Encolheu os ombros vigorosamente. — Não há nada que eu possa fazer.

Seichan encontrou as mãos dele e segurou-as entre as palmas das suas.

— És um cretino, Gray.

— Nunca o neguei — disse ele, esboçando um sorriso.

— Há sempre alguma coisa que podes fazer. Já o fazes todos os dias. Podes amá-lo, cuidar dele, lembrar-te por ele, viver por ele, tratar dele, lutar por ele. Tu mostras esse amor com cada decisão difícil que tomas… é isso que podes fazer. Isso não é nada.

Gray permaneceu em silêncio.

Havia outra coisa que ele podia fazer… mas, para isso, precisava de um momento de privacidade.

— Já percebi, Seichan. — Ele afastou as mãos das dela. — Vai andando. Já vou ter contigo.

Ela inclinou-se para a frente e beijou-o na face, depois com mais intensidade nos lábios.

— Não me deixes muito tempo à espera.

Nunca.

Enquanto ela descia os degraus do alpendre, Gray entrou na casa e acenou com a cabeça à enfermeira da noite sentada no sofá.

— Vou vê-lo antes de me ir embora.

— Acho que ele já está a dormir — disse ela.

Ainda bem.

Subiu as escadas e atravessou o corredor em direção ao quarto do pai. A porta estava entreaberta, por isso entrou e dirigiu-se para a sua cabeceira.

Do bolso, retirou um frasquinho e uma seringa.

Há uns dias, interrogara o doutor Kendall Hess sobre o antídoto para a ameaça criada por Cutter Elwes. Ele ouvira Kendall dizer que acreditava que o fármaco pudesse ajudar a melhorar outras disfunções neurológicas. Gray expusera o caso do pai diretamente ao doutor Hess e este enviara uma amostra para a sua morada durante a noite.

Gray encheu a seringa.

Uma vez, que parecia ter sido há décadas, fora-lhe oferecida uma escolha semelhante, algo que poderia ter ajudado a melhorar a doença do pai. Acabara por despejá-la pelo cano abaixo, acreditando que tinha de aprender a aceitar o inevitável, a não lutar contra o que não podia ser vencido.

Ergueu a seringa, empurrando uma gota para a ponta da agulha.

Que se lixe isso tudo.

As palavras de Seichan ecoavam na sua cabeça.

… luta por ele…

Inclinou-se sobre o pai, espetou a agulha no seu braço e empurrou o êmbolo até ao fim. Retirou a seringa antes que as pálpebras do pai se abrissem. Quando ele acordou, os seus olhos arregalaram-se ao ver o filho inclinado sobre ele.

— Gray, o que estás a fazer?

A lutar por ti…

Inclinou-se para baixo e beijou o pai na testa.

— Só vim desejar-te uma boa noite.