LÚCIO & LEONARDO
Leonardo sentiu o pelo arrepiado na nuca perante o olhar assassino de Lúcio. Ele fora emboscado. Fora atraído ali, julgando que era ele quem estava um passo à frente do Esquartejador. Afinal, fora bem enganado. Possivelmente, de forma fatal.
– Tu planeaste tudo para que eu viesse aqui – constatou, incrédulo. – Isso significa…
A M&M. Estará segura?
Queria muito virar-se para trás. Queria verificar se Marta estava bem. Mas, se o fizesse, Lúcio poderia aproveitar-se e atacá-lo.
– Liga-lhe, Leonardo – aconselhou o assassino. Aquele rosto seco, duro e frio olhava para o inspetor com um sorriso matreiro. – Liga- -lhe, para teres a certeza de que ela está bem.
Normalmente um homem decidido, custava muito a Leonardo não saber o que fazer. Estaria Lúcio a fazer bluff? Lúcio sempre trabalhara sozinho. Teria pedido uma mão extra desta vez? Não era provável, mas o que estava em jogo era efetivamente demasiado importante. Era o futuro do planeta.
Que mal faria, se ligasse a Marta? Mantê-lo-ia debaixo de olho durante o telefonema.
O problema era que tinha a mão esquerda ligada. As pontas dos quatro dedos estavam livres e poderiam segurar no telemóvel, mas precisaria da mão direita para marcar o número. Mas a mão direita era a que tinha a arma. Para fazer o telefonema, teria de baixar um pouco a guarda, talvez guardar a pistola no coldre.
Era isso que Lúcio queria.
Leonardo não podia abdicar da arma. Teria de espreitar. Um segundo seria suficiente para verificar se Marta estava bem ou não. Ela ficara à porta do hotel, a uns cinquenta metros de distância.
Lúcio continuava a sorrir, adivinhando o dilema que bailava na cabeça do inspetor.
– Olha que talvez não disponhas de muito tempo. Se fosse a ti, fazia esse telefonema.
Leonardo avaliou o inimigo: tinha a mão direita no bolso. Estaria uma faca ali escondida? Teria ele o cabo da faca na mão?
Tomando uma decisão, o inspetor manteve a arma na mão direita e, rapidamente, rodou a cabeça para trás. Os seus olhos captaram o verde do Chevrolet de Marta. Ela encontrava-se encostada ao capô do carro. Estava séria e bastante tensa, a olhar para ele. Ainda assim, esboçou um ligeiro sorriso, que lhe aqueceu um pouco o coração.
Quando Leonardo se virou, uma faca voava na sua direção. Tentou desviar-se, agachando-se. Evitou que a faca lhe perfurasse o peito, mas não que se cravasse no seu ombro direito.
A dor explodiu e espalhou-se por todo o braço, levando-o a deixar cair a sua arma. No entanto, antes de a largar, conseguiu premir o gatilho uma vez. Esse disparo acertou na perna de Lúcio, embora sem grandes consequências imediatas a não ser um berro de fúria. O tiro ecoou pela marginal, assustando as poucas pessoas que se encontravam mais próximas, incluindo os empregados do hotel que estavam no exterior para receber os clientes. Assustados, fugiram todos, deixando os dois homens sozinhos.
Furioso, Lúcio atirou-se a Leonardo, desferindo-lhe socos consecutivos no rosto ainda um pouco vermelho da luta anterior. A perna esquerda de Lúcio sangrava, mas ele não parecia sentir o ferimento, tal devia ser a adrenalina que lhe percorria o corpo. No entanto, quando Leonardo lhe deu uma joelhada nesse sítio, Lúcio uivou e caiu ao lado dele, desamparado. O inspetor usou a sua mão esquerda para esmurrar a cara e as costelas de Lúcio, fiando-se na ação dos analgésicos para não sentir dor. A seguir, tirou a faca do ombro com um urro de dor. Ia espetá-la em Lúcio, mas o assassino deu-lhe um safanão que a atirou para longe.
Levantaram-se e Leonardo tentou agredir novamente o rosto de Lúcio. Este conseguiu desviar-se e o inspetor perdeu o equilíbrio, acabando por se agarrar ao pescoço do inimigo. Tentavam esmurrar-se um ao outro naquele abraço gladiador. Sangue a escorrer da perna de Lúcio e do braço de Leonardo. Socos e pontapés desferidos, mas sem nenhum deles largar o outro. Começaram a andar em círculos.
Vendo o rio ali tão perto, ocorreu a ambos a ideia de atirarem o outro para as águas escuras. Leonardo tentou usar o seu tronco para fazer rodar Lúcio contra o gradeamento de proteção e o levar a perder o equilíbrio. Sentiu o corpo dele embater contra o metal, mas manteve-se hirto, sem vacilar, e o assassino usou esse movimento para também ele puxar o inspetor. Ficaram ambos encostados à barreira metálica. Leonardo deu um pontapé na perna ferida de Lúcio e este gritou de dor e levantou-a do chão. Desequilibrado, não aguentou o empurrão do inspetor e tombou para o outro lado.
Leonardo ia vencer.
No entanto, o aperto no seu pescoço aumentou de intensidade. Lúcio estava a cair, mas queria levá-lo consigo. Até ao fim.
Com o ombro a latejar, Leonardo não conseguiu contrariar o movimento. Sentiu o seu tronco curvar-se para a frente e passar o limite. Já em queda, Lúcio tentou agarrar-se ao inspetor para não ir parar à água. Leonardo fez toda a força que conseguia para aguentar a sua posição em terra firme, mas o peso era demasiado. Acabou por perder o equilíbrio e também ele passou por cima da grade, o corpo a dar uma cambalhota.
Caíram os dois no rio, que os arrastava para a direita, na direção do oceano.
Marta surgiu nesse momento, de arma em punho, junto do gradeamento. Várias pessoas espreitavam ao longo da marginal, algumas delas a filmarem os dois homens que haviam caído ao rio e continuavam agarrados um ao outro e a lutar com ferocidade e muito ódio.
– Dispara, M&M! Aproveita a oportunidade!
Marta parecia querer atirar. Fazia pontaria a Lúcio, mas a sucessão de socos e de tentativas de submergir o inimigo impediam-na de disparar. Mudavam constantemente de posição, o que lhe dificultava a ação.
Leonardo sentiu os olhos incharem, os lábios rebentados e o corpo todo dorido. No entanto, a água fria do rio ajudava a amenizar o sofrimento.
Lúcio não estava melhor. Tinha o rosto ensanguentado e a perna enfraquecida, mas continuava a esmurrá-lo com pujança.
Agarravam-se ambos com força um ao outro, tentando submergir o adversário e levar a melhor sobre o outro. Não conseguiam dar pontapés, porque usavam as pernas para se manterem à tona, mas de vez em quando entrava-lhes água pela boca, que os fazia tossir freneticamente em busca de ar, abrandando os ataques.
– Dispara! – gritou Leonardo, entre golfadas de ar.
– Não consigo! Não tenho um tiro limpo!
– M&M, dispara! O importante é eliminar este cabrão!
Por fim, Leonardo conseguiu submergir Lúcio, aproveitando-se do ferimento na perna do assassino, que não o deixava manter-se à superfície com tanta facilidade. Essa era a sua vantagem, mas não podia fazer muita força de braços por também ele estar fragilizado.
– Prepara-te, M&M!
Sôfrego por ar, Lúcio esmurrou e beliscou Leonardo debaixo de água, magoando-o. O inspetor berrou e afrouxou o aperto, levando a que Lúcio voltasse à superfície e inspirasse fundo várias vezes com a boca completamente aberta. Quase sufocara. Marta não atirou; a cabeça de ambos estava em constante movimento e ela corria o risco de abater o colega.
Então, ciente do problema da parceira, Leonardo teve uma ideia.
Na tentativa seguinte, deixou que Lúcio o afundasse. Sentiu os seus braços fortes nos ombros, a empurrá-lo para baixo, a querer mantê-lo no fundo, para não conseguir respirar.
A ideia era deixar Lúcio sozinho à superfície para que Marta tivesse a oportunidade de um tiro limpo. Ela apercebeu-se da estratégia do colega e fez pontaria.
Disparou.
Lúcio gritou de dor. A bala trespassara-lhe a orelha.
Não era suficiente.
Marta manteve a mira no assassino. Ele mexia-se freneticamente.
Disparou novamente. Novo grito de dor.
A bala trespassou o pulmão direito de Lúcio e levou a que ele deixasse de fazer força sobre Leonardo. Este voltou à superfície e, em poucos segundos, apercebeu-se da situação. Aproveitou para lhe dar uma cabeçada que o deixou à beira da inconsciência.
Reparou, então, que a corrente os levara para mais longe e que Marta os fora acompanhando em terra. Aproximavam-se da Estação Norte da Telecabine de Lisboa. O início da linha dos teleféricos estava construído sobre o rio, sobre uma plataforma. Os dois homens embateram num dos postes de sustentação da plataforma, continuando a ser arrastados por baixo da mesma. Enquanto ali estivessem, Leonardo não poderia ser ajudado.
No entanto, o inspetor deu mais um soco e, aproveitando a inércia de Lúcio, afundou-o com a certeza de que seria a última vez. Sentiu-o sem forças para ripostar e manteve-o debaixo de água. Estavam quase a passar a plataforma. Marta estaria certamente do outro lado, pronta a intervir.
Ao fim de largos segundos, quando o corpo de Lúcio começou a exigir oxigénio com a máxima urgência por estar prestes a entrar em colapso, Leonardo sentiu uma força brutal numa das pernas. Foi puxado para baixo.
Ficaram ambos submersos ao passarem a plataforma do teleférico.
Cada vez mais pessoas acompanhavam o progresso dos gladiadores aquáticos, sempre a filmar o momento, algumas até a fazer diretos no Facebook, Twitter e Instagram. Infelizmente, poucas eram as que percebiam o que estava realmente a acontecer. A maioria achava que se tratava de uma rixa entre dois homens, mesmo tendo em conta a mulher que disparara uma arma e que continuava a segui-los com a pistola apontada.
Debaixo de água, decorria uma luta em câmara lenta.
Leonardo tentava usar as pernas para pontapear Lúcio e tentar subir à superfície, mas Lúcio não o largava, tentando inclusivamente esmurrá-lo. Mas, estando ambos submersos, estes movimentos eram inconsequentes devido à resistência da água que lhes retirava ímpeto e força.
O que doía verdadeiramente eram os pulmões. Debaixo de água há largos segundos, Leonardo começava a sentir uma enorme falta de ar derivada também do esforço empreendido, que exigia sempre mais oxigénio.
Lúcio começou a perder forças, mas manteve o aperto forte no pescoço de Leonardo, impedindo-o de emergir. O peso de ambos, aliado à roupa encharcada, empurrava-os para o fundo.
Afundavam-se. Cada vez mais.
Leonardo, claramente quem tinha mais hipóteses de sobreviver, não via forma de o conseguir. Lúcio, com o pulmão perfurado, perdera já as forças, mas mantinha o aperto a Leonardo. O inspetor, vendo a superfície cada vez mais distante, começou a entrar em pânico por não ter força de braços para afastar o inimigo.
Começou, também, a fraquejar. Os pulmões gritavam por ar.
Era só isso que ele queria. Respirar. Precisava de ar.
Quando Lúcio ficou finalmente inconsciente, Leonardo conseguiu livrar-se do seu peso, mas por essa altura já estava ele a ficar sem reação e a uns bons três metros da tona da água. Sozinho, tentou nadar para a superfície, mas estava cheio de cãibras e sem energia. Os pulmões pareciam querer explodir. Sem ar no seu interior, sentia o corpo ainda mais pesado e a ser puxado para o fundo.
A luz da superfície tornava-se cada vez mais ténue, mas, enquanto caía no conforto da inconsciência, Leonardo sentiu-se em paz. Ao seu lado, era certo que Lúcio morrera por afogamento e se afundava no rio.
Com a sensação de missão cumprida, o inspetor teve a noção de que iria pelo mesmo caminho. Pelo menos, fizera a sua parte. O seu sacrifício valeria a pena.
O Esquartejador estava morto. E, em breve, também o inspetor estaria.
Contudo, antes de perder os sentidos, pareceu-lhe ver um rosto. Um anjo, talvez. Viria salvá-lo da morte certa? Seria ótimo, mas era demasiado tarde.
Talvez o anjo o levasse diretamente para junto de Diana. Seria uma ótima opção. Ficaria feliz se se juntasse à sua falecida esposa. Tinham muita coisa para discutir. Muitas saudades para matar.
Antes de se afundar na inconsciência, pensou nesse anjo e em como o rosto lhe era familiar.
M&M…