EPÍLOGO

Naquele dia, em finais de julho, em que Leonardo saíra da clínica, desmascarara Teresa Lencastre e confirmara a teoria de Sabrina sobre a localização do Segredo Mortal, ficara combinado que ele e Marta iriam beber uns copos.

No entanto, após ter a confirmação de que a pen se encontrava ao peito de Carlos Caetano, Leonardo decidiu ir visitá-lo, para trocar os colares, ciente de que teria tempo para isso sem atrasar o compromisso com a colega. Era algo que ele precisava de fazer para sentir que o caso estava fechado. Depois, faltaria apenas lidar com a criadora do Segredo Mortal, Roberta Schulz, mas isso ficaria para dali a uns dias. Tinha uma ideia na cabeça e não tardaria a pô-la em prática.

Portanto, o inspetor apareceu em casa de Carlos nessa mesma tarde, apenas com o intuito de recuperar o colar que continha a pen com o Segredo Mortal e de o trocar pelo original. Seria muito rápido. No entanto, os pais adotivos do jovem receberam-no de forma tão calorosa e com tanta delicadeza, que o inspetor percebeu logo que eles iriam querer conversa. E quiseram. Muita.

Por isso, Leonardo contara a Carlos e aos pais adotivos tudo o que acontecera desde a sessão de hipnose do traceur. Sem omitir nenhum detalhe, como insistira Maria.

Ofereceram-lhe chá e bolachinhas de manteiga. No final da conversa, insistiram para que jantasse com eles. Disseram que seria uma honra. Além de que, àquela hora, havia imenso trânsito na ponte em ambos os sentidos, por causa da praia.

Resignado, Leonardo não teve outra hipótese senão aceitar o convite.

Com alguma dificuldade, conseguiu arranjar um minuto para enviar a Marta uma mensagem de texto, a avisá-la que os copos teriam de ficar para depois do jantar e desculpando-se pela alteração de planos. Não conseguira explicar decentemente mais nada porque os pais de Carlos não o largavam e ele não queria ser rude.

Durante o jantar, falaram do Desastre de Lisboa, do clima e de como o ser humano estava a arruinar o meio ambiente. Neste ponto, Leonardo concordou com muita sinceridade com os pais de Carlos. O ser humano estava a brincar com a casa que permitia à nossa espécie e a tantas outras desfrutarem da vida. Viver era um privilégio e as pessoas pareciam querer acabar com esse direito.

Pior ainda era quem se negava a ver as evidências das alterações climáticas. Praticamente todas as semanas ocorriam eventos estranhos, batiam-se recordes negativos que todos prefeririam que nunca fossem batidos e, ainda assim, havia quem as negasse.

Leonardo esteve quase para dizer que, no futuro, até se poderia controlar o estado do tempo, mas preferiu não abordar um assunto que iria atrasá-lo mais uma hora. Marta já iria matá-lo pela demora; seria melhor não abusar.

Falaram das perspetivas de Carlos para o futuro. O inspetor ficou bastante contente ao ver nos olhos e nas expressões do jovem a determinação para lutar pela sua vida. Aqueceu-lhe o coração e fê-lo torcer ainda mais por ele.

No final do jantar, trocaram contactos e Leonardo prometeu seguir de perto o julgamento. Agradeceu a refeição, a conversa e toda a amabilidade.

– O Carlos tem muita sorte em ter-vos como pais.

Esta afirmação comoveu imenso o casal Caetano.

Antes de sair, o inspetor agradeceu a Carlos por ter cuidado tão bem do colar e por lho dar sem levantar problemas. A vida de muita gente sairia beneficiada com esse gesto. Em troca, deu ao rapaz o colar originalmente oferecido por Sabrina e Pedro.

Quando entrou no seu carro pessoal, verificou o telemóvel. Tinha cinco chamadas não atendidas de Marta. Como pusera o telemóvel no silêncio para não perturbar o jantar, não se apercebera das tentativas de contacto da colega.

Por momentos, arrepiou-se. Teria acontecido alguma coisa? Estaria Marta bem?

O caso Puzzle estava resolvido. Leonardo até tinha em mente um plano para afastar em definitivo Roberta Schulz da ONU, mas ficaria para os próximos dias. Por isso, Marta estaria bem de certeza. Não existiam ameaças.

Ia telefonar-lhe, mas preferiu fazer-lhe uma surpresa. Queria arranjar uma forma de se redimir por ter atrasado o encontro combinado. Ia fazer algo inédito para si. Achava que o momento precisava de algo assim.

Apesar de serem quase onze da noite, passou pelo Almada Fórum para comprar um ramo de flores. No entanto, já na florista, mudou de ideias ao encontrar algo único que poderia passar a mensagem que ele queria transmitir. Era uma ideia genial. Perguntou à empregada se poderia fazer uma alteração específica, ao que ela acedeu prontamente e executou-a com mestria.

De volta ao seu Mercedes branco, acelerou rumo a Lisboa. Ao passar a Ponte 25 de Abril e ao ver a capital portuguesa em todo o seu esplendor luminoso espraiando-se à sua frente, sentiu-se pequeno, quase insignificante. E sentiu que todos mereciam uma segunda oportunidade. Fosse para o que fosse, todos mereciam uma nova tentativa depois de aprenderem com os erros e seguirem em frente de forma mais madura. Mas havia uma coisa na qual todos deveriam ter oportunidades infinitas.

No amor.

Ao sair do carro em Odivelas e ao entrar no prédio onde Marta morava, Leonardo sentia que se encontrava perante uma grande oportunidade de ser novamente feliz. Mas tinha receio de se abrir. Não lhe era fácil. Já com Diana acontecera o mesmo, mas, quando o fizera, fora o melhor que poderia ter feito. Por isso, teria de arriscar. Poderia correr mal, mas teria de tentar.

Não poderia deixar uma ponta solta.

Chegou ao segundo andar e dirigiu-se para a porta que dizia «2.° Esquerdo». Era ali.

O seu futuro poderia começar ali. Ou poderia ter interpretado tudo mal e passar por uma vergonha monumental. Estava preparado para o que desse e viesse.

Nervoso, com as mãos a tremer ligeiramente, Leonardo pressionou a campainha. Ouviu-a ecoar pelo apartamento. Sorriu ansiosamente. Escondeu atrás das costas a oferta que levava e aguardou que a colega abrisse a porta.

Finalmente, ouviu-a do fundo do apartamento. Ria-se à gargalhada.

Isso só poderia significar uma coisa: Marta não estava sozinha.

Constrangido, Leonardo deixou que a porta se abrisse, resistindo à tentação de fugir e esquecer que ali fora.

A colega surgiu, com o cabelo ruivo a brilhar como labaredas sob a luz do candeeiro do vestíbulo. Vestia um robe felpudo, provocadoramente curto e muito revelador nos seios.

Então, Leonardo teve uma epifania. Aquele era o famoso «robe do sexo».

Era esse o nome que Marta dera àquela peça de roupa e que confidenciara ao parceiro numa das muitas conversas desinibidas que ambos tinham regularmente. A colega gostava daquele robe porque era algo confortável que podia vestir depois do sexo, mas que também poderia proporcionar-lhe mais sexo. Como lhe deixava à vista as pernas bonitas e lisas e os seios apetitosos, raras eram as vezes que os seus encontros fortuitos não se prolongavam.

Marta ficou surpreendida por o ver ali. Naquele olhar, Leonardo percebeu exatamente o que ela estava a pensar. Que ele nunca fora a casa dela. Que nunca entrara naquele apartamento. Que jamais lhe fizera uma surpresa. Que nunca a vira naqueles trajes tão femininos e provocantes. Que achava que não iria vê-lo hoje.

Mas o que ela disse nada teve que ver com isso.

– Leo, está tudo bem? Que fazes por aqui?

Leonardo teve de reunir toda a sua lucidez para conseguir responder, afastando o olhar do peito da colega.

– Pensei… uh… pensei que tínhamos combinado beber uns copos depois de jantar. Estou enganado?

Marta franziu o sobrolho e mexeu nervosamente no cabelo.

– Não, Leo. Nós combinámos uns copos antes do jantar. Antes. Não depois.

– Eu sei, mas, entretanto, mandei-te uma mensagem a avisar que tinha ficado retido em casa do Carlos.

– Ah, mas é claro! Como é que fui esquecer-me dessa bela mensagem? – Fingiu estar a pegar no seu telemóvel e leu a mensagem de cor. – «Copos depois de jantar. Retido em casa do Carlos. Desculpa.» Eu é que peço desculpa se não fiquei logo entusiasmada por adiar quatro ou cinco horas o nosso encontro. Não tinha mais nada que fazer senão ficar aqui à espera do menino.

Ela estava bastante aborrecida. Leonardo não contara com isso. Estava tudo fora do seu controlo.

– M&M, está bem explícito que…

– Poderias ter telefonado, Leo – respondeu, com frieza. – Se tivesses telefonado, teria esperado por ti de boa vontade. Era o mínimo que podias fazer por mim.

Perante esta resposta, Leonardo começou a sentir-se revoltado com a situação.

– E tu não podias ter esperado? Não consegues passar uma noite sem sexo? É que o nosso encontro era literalmente para beber uns copos e conversar. O sexo não fazia parte do programa.

– Eu sei disso.

– Então, porque é que foste meter-te debaixo de um gajo qualquer, só porque me atrasei umas horas? É assim que fazes as coisas? – Falou a seguir com uma voz esganiçada: – «Há um atraso? Eu não posso esperar. Vou engatar o tipo mais próximo e ir para a cama com ele.» Sei que adoras sexo, mas também não é preciso ofereceres-te assim só para ocupar o tempo, caramba!

Leonardo percebeu que cometera um grande erro ainda antes de ver a mão de Marta na sua direção. A estalada que sentiu no rosto foi mais dolorosa que os dois combates com o Esquartejador. Marta nunca lhe levantara a mão. Nunca se chateara com ele a esse ponto. E já tinham tido muitas discussões acesas em momentos de grande tensão, como seria de esperar em tantos anos a trabalharem juntos e na profissão que exerciam.

– M&M…

– Sai! – ordenou ela, intransigente e a apontar para as escadas, os olhos a brilhar.

– M&M, ouve…

– Sai daqui! Deixa-me ir para debaixo do homem que está ali dentro à minha espera. Só assim é que posso esquecer-me desta conversa, certo?

– Não foi isso que quis dizer.

– Ao menos, aquele homem sabe o que quer! Não anda com rodriguinhos, como certas pessoas. Viu-me, desejou-me, quis-me e lutou por mim. É mais do que alguma vez outros tenham feito.

Leonardo sabia quando devia parar.

Inspirou fundo e fitou duramente os olhos de Marta. Sabia que, se continuassem a falar, iriam dizer mais coisas que não queriam. Coisas que se diziam apenas de cabeça quente. Coisas que podiam magoar e, em última instância, estragar uma relação. Por isso, calou-se. Em nome da amizade deles. E de tudo o mais que parecera haver entre eles.

Estendeu o braço direito para a frente, revelando a prenda.

– Toma. É para ti. Era para ti – corrigiu, cabisbaixo.

Marta pegou na oferenda, hesitante. Aquilo sim, era uma surpresa. Ficou a olhar para o objeto e os olhos ficaram húmidos ao perceber a mensagem de Leonardo. Toda a dureza e maldade se desvaneceram do semblante de Marta. Os ânimos arrefeceram vertiginosamente perante o gesto do colega.

– Leo… – disse, colocando a mão no ombro dele.

Leonardo sacudiu-a, mantendo a sua expressão dura.

– Desculpa se te importunei por ser espontâneo uma vez na vida. Não volta a acontecer. Por isso é que não costumo fazer estas coisas. Sou mesmo otário.

– Não, Leo, espera.

Marta tentou pegar na mão dele, mas Leonardo deu um passo atrás e abriu os braços, furioso por se ter exposto daquela forma.

– Tens razão. Se calhar, deveríamos ter falado do que se passou em minha casa. O que foi aquele sexo? Hã? Porque é que nos envolvemos daquela forma? Tinha sido melhor se tivéssemos falado sobre isso, porque claramente teve significados diferentes para nós.

– Estás enganado, Leo, para mim signific…

– Mas nunca falámos sobre isso e agora deu nisto – cortou Leonardo, que não suportava continuar a ter aquela conversa. – Lamento muito que tenha acabado assim. Se calhar, essa surpresa adequa-se mais do que eu pensava. Voltamos ao trabalho na próxima semana. Adeus, Marta. Diverte-te.

Leonardo virou costas e foi-se embora, descendo furiosamente as escadas.

Marta estava incrédula. A utilização do seu nome verdadeiro em vez da alcunha carinhosa, aliada à surpresa que tinha nas mãos, fez com que a inspetora se emocionasse e as lágrimas lhe jorrassem dos olhos.

A chorar e especada à porta do seu apartamento, Marta voltou a apreciar o que o colega lhe oferecera.

Uma única rosa, corada de laranja como o tom do seu cabelo, colocada em pé, bem no centro de uma bonita e elegante campânula de vidro.

Ao estilo de um filme que poderia representá-los na perfeição.

Ela era claramente a Bela e ele, sem um dedo e sem jeito para romantismos, era obviamente o Monstro. Restava saber se ambos teriam o mesmo destino que as personagens da clássica história ou se esqueceriam para sempre aquele assunto e voltariam ao trabalho como se nada fosse.

Eles, que eram dois inspetores extraordinários.

Marta e Leonardo.

M&M e Leo.

A Bela e o Monstro.