LEONARDO
As praias da Fonte da Telha tinham apenas um acesso do exterior. Uma única estrada muito inclinada, chamada de Descida da Fonte da Telha, terminava num entroncamento com a estrada que corria paralelamente a todas as praias. Não era de surpreender que, no verão, o trânsito fosse sempre tão intenso. No entanto, neste caso em particular, era uma vantagem haver apenas uma entrada: o controlo efetuado pelos militares da GNR tornava-se muito mais fácil.
Leonardo e Marta passaram o primeiro posto de controlo, onde apresentaram os respetivos distintivos, desceram a estrada e estacionaram o carro no largo onde se encontrava uma paragem de autocarros. Avistaram imensos veículos de civis a abandonarem a zona, certamente por recomendação da GNR, que tomara conta da ocorrência e contactara a Polícia Judiciária assim que percebera do que se tratava.
Os inspetores saíram do veículo e aproximaram-se dos bares que antecediam o areal. Uma fita da GNR vedava o acesso à praia e um militar encontrava-se de plantão a controlar quem passava. Tinha um bigode grotesco, que lhe assentava bastante mal no rosto escanzelado.
– Boa tarde. Sou o inspetor Leonardo Rosa e esta é a inspetora Marta Mateus – apresentou-se, assinalando a sua parceira com o olhar e mostrando o distintivo novamente.
– Boa tarde, inspetor Rosa. – O militar, bastante jovem visto de perto, pareceu ficar assoberbado perante a presença de Leonardo. – É um prazer conhecê-lo. Já agora, parabéns pela sua detenção do Monstro de Lisboa.
Leonardo assentiu.
– É bom ver o meu trabalho reconhecido. Mas não o consegui trabalhando sozinho. Agora, poderia indicar-nos o caminho para o local do crime?
– É só seguir este troço e avistará a cena do crime facilmente – indicou, apontando para o percurso arenoso atrás de si. – Não há que enganar.
– Muito obrigado. Continue o bom trabalho.
O militar pareceu ficar delirante com o elogio de alguém tão conceituado no seu mundo.
Agacharam-se um pouco e transpuseram a fita policial, amavelmente erguida para passarem.
Deves ser o ídolo daquele tipo – comentou Marta, uns passos mais à frente. – Só faltou pedir-te um autógrafo. Adorava ver a tua reação.
– Para mim, não teria piada nenhuma.
– Pois, provavelmente terias de lhe quebrar o coração ao rejeitar o autógrafo.
– Sabes bem que detesto essas coisas.
– Sei, mas não compreendo. Deve ser ótimo sentires-te uma celebridade.
– Não é. Acredita.
Os sapatos de Leonardo enterravam-se na areia, atrasando-lhe a locomoção. A sua roupa não era apropriada para estar na praia. Em vez de fato de banho e chinelos, encontrava-se com sapatos polidos pretos e umas calças de linho bege com camisa verde-escuro, sem gravata. Marta vestia umas calças claras e frescas, uns sapatos leves e uma camisa azul-marinho. O cabelo ruivo esvoaçava livremente.
Os bares e restaurantes impediam-nos de ver a praia por completo. Ao passarem pelas pequenas construções, que tinham um aspeto informal e convidativo, percorreram um pequeno troço de areia que ficava um pouco acima do nível do mar. Mais à frente, conseguiram avistar a praia em todo o seu esplendor. Ao fundo, um pouco para a direita, em redor do que seria o local do crime, viam-se vários militares da GNR fardados e uns quantos veículos com tração às quatro rodas. Leonardo reparou que algumas pessoas pareciam enjoadas ou quase a vomitar. Outras estavam chocadas e abanavam a cabeça. A inspetora Mateus apontou para algo em específico.
– Já reparaste que…?
Marta não conseguiu terminar a frase. Leonardo assentiu. Reparara quando estavam a descer o acesso à Fonte da Telha.
No meio do enxame de agentes policiais, destacava-se uma retroescavadora. A máquina estava parada. Provavelmente já escavara o suficiente para pôr a descoberto o que quer que estivesse naquele local.
Leonardo engoliu em seco. Uma escavadora nunca era sinónimo de boas notícias. Fora a presença daquela máquina que lhe fizera ver que a parceira tinha razão.
Aquele era um caso que lhe interessava.
A areia irradiava o calor acumulado ao longo do dia. Mesmo sob a sola dos sapatos, conseguia sentir a planta dos pés a aquecer. Caminhar pelo areal trouxe-lhe memórias de infância, quando corria com o pai, até chegarem à água, para depois recuarem abruptamente após o choque térmico com os membros inferiores; ou quando se deitavam na areia seca depois de darem um mergulho e simularem que eram uns croquetes, para voltarem para a água e se rirem despreocupadamente.
– Boa tarde, inspetor Rosa.
O cumprimento súbito arrancou-o dos pensamentos nostálgicos. Sentia saudades do pai, mas tentou voar sobre esses sentimentos para encarar quem o interpelara.
Cerrou os olhos perante a ofuscação repentina do sol tardio e demorou a reconhecer a mulher que esticava o seu braço para um aperto de mão.
– Boa tarde, inspetora Santos.
Leonardo trabalhara anteriormente com a sua homóloga de Setúbal. Era uma mulher mais velha, já com os seus 44 anos, e pouco dada a salamaleques ou conversa fiada. Ótima para trabalhar, mas péssima para ter uma relação de amizade. Apresentava sempre um ar soturno, como se todos lhe devessem e ninguém pagasse. Era alta, tinha seios pequenos e umas ancas largas, apoiadas numas coxas grossas, mas que disfarçava bem com as saias dos seus fatos de senhora.
– Estávamos à sua espera, inspetor. – Disse-o como se fosse culpa de Leonardo não ter chegado mais cedo. – Os peritos da Polícia Científica já analisaram o local de uma ponta à outra de forma exaustiva. Creio que temos tudo o que nos possa ser útil.
– Aguardaram a minha chegada para só depois removerem o corpo?
O rosto bem definido de Joana Santos transparecia a irritação que sentia perante a situação, mas Leonardo estava habituado. Não era fácil atingir um lugar na carreira como o de inspetor, para depois se ver rebaixado por outro que deveria ser de igual importância e autoridade. Pior ainda quando pertencia à PJ de outra cidade.
– O ministro da Justiça e a procuradora-geral da República fizeram questão que você liderasse esta investigação, apesar de estar sob a nossa jurisdição. – Leonardo espantou-se que ela conseguisse dizer aquilo tudo quase sem mexer os lábios. Falava entre dentes e parecia pronta para uma discussão. Por isso, era difícil para ele dizer alguma coisa que não soasse mal aos ouvidos da inspetora de Setúbal.
– Vamos ver o que aconteceu. Estou muito curioso.
A inspetora Santos, com o semblante a demonstrar que estava claramente contrariada, virou-se de costas e avançou por entre os militares da GNR. Leonardo e Marta seguiram-na de perto, ignorando, pelo caminho, todos os cumprimentos e acenos que recebiam dos colegas.
Leonardo parou junto ao limite circular do buraco escavado no areal. Àquela hora, a maré começava a subir novamente, mas as ondas morriam a cerca de quinze metros do local. Tinham tempo mais que suficiente antes que a água do mar atingisse aquele nível.
Colocou a mão diante da testa, a servir de pala, a fim de evitar que a posição frontal do sol o incomodasse demasiado.
O que viu não era acessível a todos os estômagos.
Sobre a areia húmida do fundo daquele pequeno poço encontravam-se os constituintes de um corpo humano. Todos os membros e a cabeça estavam separados do tronco, esquartejados de uma forma limpa. As partes do corpo estavam dispostas de uma forma anatomicamente correta, com as pernas e o braço direito num ângulo de quarenta e cinco graus. Era notório que a parte superior do corpo estava mais elevada que as pernas, como se os restos mortais estivessem numa plataforma inclinada, com o braço esquerdo mais elevado, como que a apontar para cima.
O tronco estava separado dos restantes constituintes por cerca de cinco centímetros. O assassino queria que fosse percetível de imediato que esquartejara todo o corpo.
Um dos braços, no entanto, fora completamente esfolado; não tinha carne, apenas osso. Reparou que o dedo indicador da mão esquerda, a do braço sem carne, estava manchado de sangue. E que era o único dedo que fora deixado para trás. Os restantes, incluindo os dos pés, tinham sido removidos.
A imagem do rosto da vítima eriçou os pelos da nuca a Leonardo.
A boca estava completamente aberta, a pele lívida como a espuma que era criada no embate das ondas do mar, e o cheiro a putrefação fazia-se sentir com uma intensidade que justificava em pleno a imagem que observara ao longe, dos militares enjoados e com vómitos. Aquele rosto era de um homem. A barba rala de cor preta era indicadora de que se tratava de um adulto e provavelmente ainda jovem.
O corpo esquartejado depressa se revelou a Leonardo. Havia algo de muito errado. Percebeu a dimensão do que tinham encontrado, porque havia um pormenor que saltava imediatamente à vista. A perna direita tinha a pele escura, enquanto que os restantes membros pertenciam a pessoas caucasianas. Os membros superiores e inferiores não coincidiam. Eram diferentes entre si. O braço direito tinha um comprimento superior ao esquerdo. A perna esquerda era mais esguia e curta, e estava num estado de decomposição mais avançado que o da direita. O rosto pertencia claramente a um homem e o tronco indicava que pertencia a uma rapariga. Os pequenos seios e o órgão sexual não enganavam ninguém.
O que explicava as dimensões desmesuradamente grandes do buraco escavado. Leonardo agachou-se para observar mais de perto. Sentiu o cheiro mais intensamente, que o fez desviar um pouco o rosto.
– Como descobriram isto? – perguntou a Santos, tapando o nariz com a mão.
– A testemunha chama-se Micaela Pinto. Esta manhã, estava a fazer jogging aqui na praia, quando pisou o dedo indicador do braço esquerdo da vítima. – A inspetora Santos apontou para o dedo manchado de sangue. – Antes de perceber que se tratava de um dedo humano, tentou puxá-lo para a superfície, a fim de evitar que outras pessoas se ferissem. Mal sabia ela o que se encontrava aqui enterrado.
O pesar com que Santos relatou o sucedido mostrava que existia um pingo de compaixão dentro de si, sob camadas de arrogância que a tornavam um pouco detestável.
Leonardo sentiu o coração a pulsar-lhe na garganta. Havia muita coisa para assimilar, muitos pormenores que exigiriam mais tempo e uma análise mais profunda, mas a imagem geral da situação tornara-se clara para si. Levantou-se. Marta aproximou-se do parceiro e olhou-o, também ela compreendendo que nada batia certo. O inspetor falou, sem desviar os olhos do cenário macabro.
– Podem estar aqui partes de seis corpos. Seis vítimas.