CARLOS
Escuridão.
Carlos abriu os olhos, assustado. Sentiu-se a respirar de forma ofegante pelas narinas. Em pânico. A boca estava selada com adesivo. Começava a duvidar se estaria cego ou se estava extremamente escuro quando, aos poucos, surgiu uma luz crepuscular. Era a luz lunar a irromper pelas pequenas janelas localizadas no alto do edifício. Iluminavam parcamente aquilo que parecia ser um armazém antigo.
Fez um esforço mental para se recordar de como fora ali parar. Num minuto, estava a preparar a música para a sua namorada; no seguinte, acordara naquele espaço escuro.
Uma torneira suja e desgastada gotejava a um ritmo rápido e irritante, um salpicar constante que lhe ressoava na mente como um martelo.
Tentou mexer-se.
Os pés estavam presos a uma cadeira de madeira, que rangeu perante o movimento insistente e nervoso do seu ocupante. Testou as cordas, mas estas não folgavam um milímetro. Os seus braços também estavam severa e impiedosamente amarrados às costas da cadeira. Tentou lutar para se desembaraçar do aperto claustrofóbico, mas foi em vão.
Aquilo só podia significar uma coisa. Fora raptado.
Essa perceção deixou-o num estado de desmesurada aflição. O seu pensamento voou para os pais. Para Vanessa. Estariam eles a par do seu desaparecimento? Uma torrente de vontade jorrou-lhe nas veias e fê-lo tentar novamente desembaraçar-se das cordas. Sem sucesso.
Uma luz forte surgiu de vários candeeiros presos ao teto elevado, ferindo-lhe os olhos. Captou, também, o som de sapatos de salto alto a ecoar pelo armazém, aproximando-se provocatoriamente. Tentou livrar-se das amarras ainda com mais persistência e luta.
Novamente, nada se alterou.
Uma mão surgiu no seu campo de visão e deu-lhe uma bofetada que lhe rasgou o lábio superior. Um pequeno fio de sangue escorreu-lhe para dentro da boca, emprestando-lhe à língua um sabor metálico.
Quando os seus olhos começaram a habituar-se à nova luminosidade do espaço, pôde confirmar que se encontrava no meio de um armazém aparentemente abandonado, com imensos caixotes de cartão e paletes amontoados numa desarrumação atroz, que lhe dava poucas esperanças de ser encontrado caso precisasse de ajuda.
Carlos exibia um olhar furioso e mantinha a respiração ofegante. Continuava a tentar mover os membros, sempre sem resultado. Não queria ser uma presa fácil, mas era complicado contrariar essa tendência.
Surgiu, então, uma mulher de cabelo loiro muito liso, de olhos azuis esverdeados, que devia ter mais de trinta anos. O seu corpo era sensual e movia-se de forma provocante, como se se voluteasse num strip club.
Colocou-se diante de Carlos, impedindo-o de continuar a analisá-la devido à luz que surgia por trás, tornando-a quase numa sombra cheia de curvas que noutra situação seriam bastante apreciadas.
– Olá, borracho. Chamo-me Luna. Gostas do nome? – Carlos não se dignou a responder. Odiava quando lhe falavam com ironia. – Estás nervoso por me veres, é? Até parece que vou fazer-te algum mal…
Os olhos de Carlos prenderam-se no antebraço da mulher, onde se via uma pequena tatuagem, do tamanho de uma noz. Não conseguiu distinguir muito bem a sua forma.
Tentou gritar, mas só se ouviam gemidos sufocados pelo adesivo.
– Coitadinho do meu menino, nem sequer consegue falar. Como estamos num sítio onde ninguém poderá ouvir-te, vou conceder-te esta benesse.
Luna aproximou-se mais de Carlos e inclinou-se, para que a sua cabeça ficasse bastante próxima da dele. Beijou sedutoramente a testa do prisioneiro, e foi descendo pela cana do nariz. Beijou as bochechas, sempre num ritmo lento e provocador.
Repentinamente ouviu-se um rasgão. Fora Luna que, com uma rapidez violenta e fria, retirara o adesivo da boca dele. Aproveitando o momento de confusão de Carlos, Luna avançou com a sua boca e beijou-o nos lábios. Quando ele tentou afastar-se, Luna agarrou-lhe na cabeça e chegou-o para perto de si. Beijaram-se durante alguns segundos, até que a mulher descolou e saiu de perto do jovem traceur.
Carlos sentiu repulsa por ela. Lambeu o lábio, para remover o sangue acumulado após a pancada inicial. Cuspiu repetidamente para o chão, como se estivesse prestes a vomitar. Não sabia o que era mais grave, se ela o ter beijado ou se estar a sangrar do lábio.
– Eu sei que gostaste – disse, saboreando o sangue de Carlos. – É o sonho dos jovens da vossa idade, beijar uma mulher já feita e sedutora como eu, não é? Realizei o teu desejo. – Baixou dramaticamente o tom de voz. – O teu último desejo.
Esta última frase teve o condão de o arrebitar perante o perigo que insinuava.
– O que queres dizer com isso? O que está a passar-se?
Luna parecia divertida com o medo do seu prisioneiro. Várias gotas de suor começavam a surgir no topo da testa de Carlos.
– Calma, querido. Não tenhas medo. Não vou fazer-te mal.
– Então, porque é que me raptaram? O que querem de mim, foda-se?
Luna fingiu-se ofendida. Abriu a boca num pequeno «O» fingidamente chocado.
– Tento na língua, Carlitos. Como já deves ter reparado, não estás na situação certa para falares dessa forma. É que até parece que queres que te faça mal. Mas se é isso que queres…
Lançou a Carlos um olhar interrogativo, aguardando que ele respondesse. O jovem desviou o olhar e a sua expressão alterou-se.
– Vais contar-me alguma coisa do que se passa? O que querem de mim?
– Sim, mas conto-te apenas o que quero.
Carlos sentiu-se mais calmo.
– Sou todo ouvidos. Aliás, nem tenho outra opção.
Luna falou, enquanto caminhava de um lado para o outro à frente de Carlos. A luz proveniente das lâmpadas parecia saltitar entre os seus braços, o pescoço e a cabeça, conforme a sua posição perante iluminação.
– Carlos, ainda não sabes, mas a tua vida vai mudar de rumo. Para pior. Muito pior. Se queres safar-te desse novo rumo, precisas de nós. Para limpar o teu nome. Somos a tua única salvação.
– Como assim? Nós, quem?
– A organização que represento pode salvar-te. Mas só te revelamos o que sabemos se te juntares a nós agora.
Esta deve ser a organização secreta de que aquele homem me falou.
Tentou analisar a tatuagem estampada no antebraço da raptora. Quando a luz lhe era favorável, avistou-a. Era um símbolo redondo com algo no interior. Precisava de mais tempo para perceber melhor.
– «Salvar-me» do quê?
Luna pegou numa lima e começou a tratar distraidamente das unhas, sem alterar a sua passada para lá e para cá.
– Somos a tua única hipótese de limpares o teu nome e de viveres em paz. Sem o nosso apoio, nunca mais serás livre e não poderás viver uma vida normal com os que mais amas. A menos que aceites entrar na nossa organização. Voluntariamente.
– Isto é alguma partida? Que eu saiba não é dia 1 de abril. Ou deixaram-me inconsciente durante nove meses?
Luna ignorou a provocação, focando o olhar numa unha em particular, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Carlos reparou que a lima era cor-de-rosa e que tinha um pequeno desenho da Hello Kitty. Não pôde deixar de achar a situação irónica.
– Se não aceitares cooperar connosco, saberás da pior maneira. E aí não só estarás sozinho, como nos terás à perna.
A tensão era enorme quando Luna estacou o seu movimento e encarou Carlos, que retesou os músculos, preparando-se para o pior. Luna aproximou-se vagarosamente e sentou-se lentamente no seu colo. Aproximou novamente a sua boca da dele e ficou a escassos milímetros, com a respiração dela a ficar ofegante com a expetativa. Mostrou a mão direita a Carlos. A lima desaparecera, mas fora trocada por outro objeto bem pior. Os dedos da raptora envolviam o cabo de uma faca ameaçadoramente afiada e reluzente, que refletia a luz fantasmagórica das lâmpadas do armazém.
Carlos esbugalhou os olhos e Luna moveu calmamente a sua mão para as costas dele. Durante alguns segundos, fitaram os olhos um do outro, ele na expetativa do que Luna iria fazer com a arma, ela para ver a reação dele.
A mulher mexeu o braço com firmeza. No segundo seguinte, o aperto nas mãos de Carlos desapareceu. Estavam livres. Olhou para elas como se as visse pela primeira vez. Luna beijou novamente os lábios de Carlos e levantou-se, afastando-se alguns passos à retaguarda.
– Não precisas de agradecer.
Carlos lançou-se para as cordas que lhe prendiam as pernas. Queria desembaraçar-se delas, para equilibrar a balança daquela situação.
– Afinal, o que estás a fazer? Não passava tudo de uma brincadeira?
Luna manteve o olhar sério, mostrando que Carlos estava errado.
– Não estás a perceber nada, pois não?
– Desde o início que não digo outra coisa.
– Ouve, Carlos. O nosso chefe é um tipo simpático e acredita em segundas oportunidades. Ele está disposto a ajudar-te. Mas tens de aceitar a ajuda de forma voluntária. É por isso que te raptei e que te deixo ir embora, se for essa a tua escolha. – Apontou para trás de Carlos. – Mas a partir do momento em que saíres por aquela porta, estás por tua conta. O que está prestes a acontecer-te é algo que te transcende e nós queremos ajudar. Mas, como é óbvio, a nossa ajuda tem um preço. Tal como tu vais precisar de nós, também precisamos de ti. Precisamos de que nos ajudes a resolver um problema. É algo muito pessoal para o nosso líder e tu és a solução. E esse problema é algo que pode custar algumas vidas, incluindo a tua se não cooperares. Se aceitares ficar, saberás de tudo e a situação resolver-se-á de uma forma muito mais airosa e célere. Senão, o nosso chefe não ficará nada satisfeito e irás ter-nos à perna.
Carlos engoliu em seco, sentindo que a ameaça era tão real quanto o chão que pisava.
A história do homem do dia anterior estava a acontecer. Ele tinha razão.
– Há mais uma informação que pode ajudar-te a decidir. – Passou um dedo pela lâmina da faca. – É que, se escolheres não ficar connosco, virás a rastejar para nós na mesma. Quando quiseres voltar à tua vida normal, ficarás tão encurralado pelo que está a passar-se, que não terás outra opção senão vir ter connosco. E aí já não te garanto ser tão simpática contigo como fui desta vez. Depende do que aceitares fazer para nós. – Levantou o olhar na sua direção – Neste mundo onde acabaste de entrar, matar é a única forma de sobreviver.
Carlos deu um passo atrás, cada vez mais estarrecido com o que estava a acontecer-lhe. A última frase de Luna retesou-lhe todos os músculos.
– Jamais tirarei uma vida humana – disse, paulatinamente.
Luna encolheu os ombros.
– Isso é o que dizes agora. Se te fores embora, hás de mudar de ideias.
– Não há nada que possa levar-me a cometer o crime mais horrível que existe.
Luna riu-se de forma insana e trocista, deixando-o sem jeito e envergonhado. Como se tivesse dito a maior estupidez do mundo. Momentos volvidos, ficou novamente séria.
– Já chega de conversa fiada sobre o futuro. O que interessa é o presente. Como é, Carlos? Juntas-te a nós e ficas a saber de tudo, e ainda tens a sorte de estar na equipa vencedora?
Uma gota de suor surgiu no topo da testa de Carlos. O seu olhar revelava a incerteza que lhe ia na alma. A respiração acelerou-se. Abriu e fechou a boca várias vezes, várias tentativas falhadas de dar uma resposta. Não poderia aceitar ficar do lado de uma mulher nitidamente louca, sem saber o que se passava. Nunca poderia confiar nela.
– Qual é a tua escolha? – gritou ela, impaciente.
Carlos suspirou bem fundo. Deu um passo na direção de Luna. Ela começou a sorrir, mas de repente Carlos iniciou uma corrida desaforida até ao portão. Abriu-o com toda a força que tinha e deparou-se com um pano negro a cobrir o céu.
– Então, adeus, fofo! – gritou Luna, fazendo-se ouvir por cima da respiração controlada de Carlos. – Não demores muito a voltar a rastejar para nós!
O medo de Carlos adensava-se a cada passo que dava para longe do armazém. Começava a acreditar que a sua vida estava realmente em perigo.
Restava descobrir os motivos.