CARLOS
Vanessa olhava para o envelope como se encerrasse o maior segredo de todos os tempos e se tratasse de algo aterrador. As mãos de Carlos tremiam ligeiramente e o objeto parecia pesar uma tonelada. Ele tinha a certeza de que era da organização que andava atrás dele, para a qual Luna trabalhava. Quem mais poderia entregar-lhe uma carta daquela forma tão estranha?
Virou o envelope. Quando ia rasgá-lo, Luís Castanheira abriu novamente a porta.
A sua expressão era de pânico.
Carlos entendeu imediatamente que algo se passava e que chegara a hora de se ir embora. Definitivamente. Nunca mais poderia voltar, se não quisesse ser capturado.
– A inspetora da PJ está aqui – anunciou Luís.
Carlos meteu o envelope no chapéu e, a seguir, colocou este último novamente na cabeça, agora bastante lisa. Fazia-lhe comichão no couro cabeludo, mas preferia guardá-lo ali do que na mochila. Poderia necessitar de se livrar dela e a mensagem que a organização lhe enviara era demasiado importante para se incomodar com trivialidades.
Ao olhar para o espelho que cobria toda a porta do roupeiro, reparou que as suas orelhas pareciam enormes sem o cabelo.
Carlos deu um beijo à namorada e despediu-se dela silenciosamente, exprimindo todo o seu amor e as saudades antecipadas num derradeiro olhar. Um olhar que pareceu demorar uma eternidade, enquanto memorizava novamente todos os detalhes do rosto belo de Vanessa, e a via tentar esboçar um sorriso para lhe transmitir confiança e desejar boa sorte para limpar o seu nome.
Carlos colocou a mochila às costas e correu para a janela escancarada por onde entrara. Sem olhar para trás, atirou-se para o relvado das traseiras da moradia utilizando a mesma via pela qual subira previamente. Acocorou-se e ficou em estado de alerta máximo. As fachadas das habitações em redor eram iluminadas ciclicamente por um azul policial, que lutava por sobressair perante o brilho do sol.
Eram vários os vizinhos que se mantinham à janela, preocupados por saberem que vários veículos da PSP se encontravam naquela rua. No entanto, ninguém espreitava para a zona onde ele estava. As traseiras, por enquanto, estavam desprotegidas.
Carlos avaliou o terreno à sua volta. A sua mente treinada pelo parkour procurou a forma mais eficiente de sair dali sem ser visto. Conhecia bem aquela zona. Para a prática de parkour ser o mais eficiente possível, a maior vantagem era conhecer bem o terreno.
No início do namoro de ambos, não haviam sido poucas as vezes que ele precisara de realizar uma fuga como aquela. A diferença era que antigamente escapava do pai de Vanessa. Agora, a situação era totalmente diferente. Bem mais séria e real.
Carlos sabia que a melhor forma de escapar seria utilizando os pátios das vivendas vizinhas. Ir para a rua seria a sua sentença.
Avançou cautelosamente para o pequeno muro que separava a vivenda de Vanessa da do seu vizinho. Executou o movimento de forma limpa, eficaz, tentando fundir-se com o cimento que a revestia.
Nas primeiras habitações, teve de proceder de forma bastante lenta e cautelosa. Quanto mais próximo estivesse da casa de Vanessa, mais apertado era o cerco.
Nenhum vizinho curioso pareceu avistá-lo, até ultrapassar o terceiro muro. Este era um pouco mais alto que os anteriores e era visível para os moradores do outro lado da Rua José Malhoa. Qual lince, um vizinho atento e preocupado captou movimento pelo canto do olho e gritou para alertar as forças policiais.
– Polícia! Está ali o fugitivo! Apanhem-no!
Cabrão de merda!
Agora que fora descoberto, não valia a pena prosseguir sorrateiramente. Precisava de ir para a estrada. Seria mais fácil para ele escapar, embora também fosse mais fácil para a Polícia o apanhar.
Saltou mais um muro que separava duas casas e, a seguir, havia outro terreno baldio. Assim que colocou um pé na estrada, um veículo surgiu à sua esquerda.
Do outro lado da avenida, existiam mais duas filas de moradias.
Por trás desse aglomerado de habitações, situava-se uma pequena mata. Seria perfeita para despistar a Polícia.
Poderia ser a sua salvação.
Quando começou a correr ao longo da avenida, procurando naquele forte de vivendas uma brecha por onde pudesse passar para o outro lado, ouviu o veículo policial arrancar e o som do altifalante a encher toda a rua.
– Carlos Caetano, entregue-se imediatamente ou seremos obrigados a usar a força.
Mais à frente, descobriu um espaço delimitado por sebes que separava duas línguas de terreno habitacional. Descobrira a brecha que precisava. Era perfeito, e o veículo não passaria ali.
Atravessou a estrada. Ao fazê-lo, o carro acelerou e ouviu vários agentes a correrem pesadamente no seu encalço.
Saltou por cima dos arbustos e continuou a corrida. Ao chegar ao outro lado, deparou-se com uma rua preenchida por novas casas. A pequena mata ficava na extremidade dessa rua. Percorreu-a, sentindo todos os músculos a trabalharem arduamente para o salvar. O motor do veículo policial rugia ao fundo. Iriam tentar intercetá-lo no final da estrada.
Ao ultrapassar a última habitação, observou o espaço à sua frente e cerrou os dentes de frustração. Afinal, a mata que ele contava utilizar para desaparecer era agora um descampado com montes de areia, caraterísticos dos trabalhos de construção. Como não soubera desta alteração?
Isso agora não era importante. Precisava de se focar em manter-se livre. Olhou além desse descampado, em busca de algo que o salvasse. Ao fundo, lá no cimo, existia um bosque de tamanho considerável que lhe permitiria desaparecer da vista da Polícia de forma definitiva. No entanto, tinha de perceber como poderia conseguir chegar lá sem ser capturado. Avistou, à sua frente e antes da rua começar a subir em direção ao bosque, um terreno amplo com plantas cuja altura era suficiente para o ocultar enquanto o atravessava.
Avançou com avidez, sem pensar duas vezes. Quando começou a sentir o corpo fustigado pelas folhas grossas e altas daquela plantação, o veículo que o perseguia parou bruscamente no limite do terreno. Um cão ladrava num quintal de uma moradia nas redondezas, como se também ele quisesse ajudar a Polícia.
Precipitou-se para a frente. O terreno subia um pouco, dificultando-lhe a tarefa. Mas não podia parar. Tinha de ignorar o cansaço e o ardor nas pernas por ter corrido já mais de quinhentos metros, assoberbado pelo peso da mochila e o receio de ser apanhado.
Ouviu as portas do veículo baterem com estrondo e os agentes a embrenharem-se na plantação atrás de si. À sua procura. Carlos continuou a correr. Segundos depois, um veículo policial passou a alta velocidade. Iam intercetá-lo na outra extremidade do terreno, na Rua Infante D. Henrique, a rua que separava aquele terreno do bosque denso e enorme que poderia salvá-lo.
Carlos teve de mudar de planos. Se continuasse em frente, iria de encontro à Polícia. Por isso, decidiu virar à direita.
Algumas passadas depois, entrou numa pequena ruela. Ficou aliviado por a encontrar sossegada e silenciosa. Prosseguiu com extrema cautela, atento à comoção que vinha até si de longe. Mais à frente, entrou numa rua com forte inclinação. Para a esquerda, esta subia e desembocava diante de uma escola primária. A Polícia estava perto dessa escola, pelo que decidiu ir em frente e virar para cima na rua seguinte. Subiu cautelosamente, a verificar constantemente a situação em seu redor. Desta vez, não surgiu nenhum vizinho que o denunciasse.
Ao chegar à esquina, no topo da rua, estacou e espreitou.
A uns bons duzentos metros para a esquerda, numa interseção, o veículo policial aguardava a sua aparição. Os agentes encontravam-se em estado de alerta, de arma em riste, no local que Carlos previra. O que eles não sabiam era que ele enveredara pela direita, em vez de prosseguir para cima, na direção do bosque.
Engoliu em seco.
Ignorando a Polícia, olhou para a frente. Estava a ser construída uma pequena urbanização naquela zona de Quinta de Cima. Poderia servir para se esconder. O problema seria atravessar sem ser visto a largura da Rua Infante D. Henrique.
Inspirou fundo e fechou os olhos por momentos. Voltou a analisar a situação. Quanto mais esperasse, pior. Por isso, atravessou a estrada quando achou que não havia perigo. Fundiu-se com a esquina da rua seguinte e suspendeu a respiração, atento a qualquer som que o avisasse de que fora avistado.
Silêncio.
Mais descansado, continuou em frente e desceu a rua que banhava a nova urbanização. Entrou num prédio ainda em construção. Como ainda não havia escada, subiu ao segundo andar utilizando apoios que poucos conseguiriam utilizar se não tivessem treino para tal. Ficou sentado numa viga horizontal. De ambos os lados da viga, existia apenas ar. Precisaria de ter cuidado para não cair.
Por agora, isto há de servir.
Assegurou-se de que a largura era suficiente para descansar. O seu corpo estava dorido e reclamava por descanso.
Mas não poderia ficar ali por muito tempo. Ainda que tivesse despistado a Polícia, seria apenas uma questão de tempo até voltarem a estar no seu encalço.
Naquela construção, estava demasiado exposto. Tinha mesmo de se embrenhar no bosque. Aí, talvez tivesse mais hipóteses de se esconder. Era um arvoredo de dimensões generosas, pelo que seria uma bela ponte para fugir definitivamente.
Aguardou meia hora para o seu corpo se restabelecer. Bebeu muita água, comeu algumas peças de fruta e teve de fazer necessidades. Ficou com a mochila mais leve e muito mais revigorado. Estava novamente pronto para a luta.
Com imensa cautela, Carlos saiu do edifício e começou a andar no sentido do seu bosque prometido. Atravessou várias construções vizinhas que o ajudaram a chegar sem qualquer percalço ao abraço protetor dos pinheiros e eucaliptos.
Carlos foi recebido por uma escuridão surpreendente, combatida a todo o custo pelo sol quente, que lhe guiava o caminho por entre os troncos grossos e robustos das árvores e pelas plantas rasteiras que lhe acariciavam as pernas.
Após alguns minutos a penetrar cada vez mais na mata densa, Carlos estacou, em estado de alerta. Parecera-lhe ouvir algo.
O som de um galho a quebrar-se. Não estava sozinho.