CAPÍTULO 30

LEONARDO

Almoçaram com muito pouca tranquilidade. E estavam ainda mais inquietos quando abandonaram a sede da Polícia Judiciária e se deslocaram até ao Lumiar.

O ex-coordenador de investigação criminal, Manuel de Andrade, era um homem extremamente simpático e afável. Era um bon vivant, que nunca se recusava a beber uns copos. Grande apreciador de vinho, tinha a sua própria adega na arrecadação do prédio onde vivia; colecionava garrafas das mais variadas colheitas de todo o mundo. Quando se reformara, no ano anterior, afirmara que iria dedicar-se à enologia. Ninguém duvidara de que fosse realmente fazê-lo.

A relação dele com Leonardo fora muito boa inicialmente. Na verdade, fora Manuel de Andrade quem vira em Leonardo um diamante em bruto e o lapidara desde a sua formação na Escola da Polícia Judiciária, agora denominada Instituto de Polícia Judiciária e Ciências Criminais, que frequentara depois de se licenciar em Direito. Sempre considerara Leonardo o seu maior legado para a segurança do país, pelo que, assim que este completara 7 anos como inspetor, começara o assédio para que ele concorresse ao lugar de inspetor-chefe e pudesse liderar várias equipas de inspetores; usaria a sua experiência e conhecimentos para ajudar a resolver vários casos em simultâneo. Mas Leonardo recusara sempre. Nunca pensara duas vezes. Bolas, nem uma vez pensara sequer. Apreciava demasiado a sua liberdade de ação e independência, exponenciadas pelo próprio Manuel de Andrade quando lhe adicionara uma cláusula ao contrato que lhe dava prioridade para investigar casos que, à partida, se revelassem mais complexos. Além disso, a burocracia inerente ao cargo afastava-o como o diabo da cruz. A relação entre Leonardo e Manuel azedara nos cincos anos finais devido a essa constante insistência, razão pela qual Leonardo nunca se esforçara por procurá-lo após a sua reforma. Nem comparecera ao jantar de despedida.

Quando Marta virou o seu Chevrolet verde para a Rua Helena Vaz da Silva e o estacionou perto de uma agência bancária, Leonardo inspirou fundo e preparou-se para o que aí vinha.

– Pode ser que ele não volte a chatear-te com a promoção – aventou Marta, adivinhando o que o colega estaria a pensar. – Realmente é uma grande maçada importunarem-nos constantemente para sermos promovidos e ganharmos mais dinheiro. Que chatice…

Leonardo sorriu, contrafeito, perante a ironia da colega.

– Vê lá se queres que eu concorra ao lugar e, depois, trabalhas sozinha.

– Era um sossego.

Olharam-se um breve momento, divertidos. Saíram do carro, fecharam as portas e Leonardo apreciou a fachada larga dos prédios à sua frente. Aproximaram-se da entrada e tocaram no 3.° esquerdo. Um clique anunciou que podiam entrar. Quando chegaram ao apartamento, a porta estava entreaberta, sem sinal de Manuel.

– Podemos entrar, senhor coordenador? – perguntou Marta, um pouco constrangida.

– Podem entrar, desde que me tratem por Manuel. Creio que o vosso coordenador é um pouco mais novo que eu – respondeu o ex-coordenador, com bastante humor, surgindo no hall, com uma garrafa de vinho na mão. Como não poderia deixar de ser. – Entrem, entrem. Venham para a sala. Ponham-se à vontade que eu já vou ter convosco.

Leonardo deduziu, pela leveza com que ele os recebeu, que já contava com a visita.

Maldito Mota, deve tê-lo avisado.

Os inspetores entraram calmamente, apreciando as cores claras do apartamento, que contrastavam com o chão escuro e brilhante. Por todo o lado, existiam muitos elementos decorativos, desde quadros com fotografias de família a pinturas abstratas, e vasos com plantas vistosas. Entraram na sala e sentiram o cheiro a vinho, mesmo estando aquela garrafa fechada.

– Sentem-se, sentem-se. Não façam cerimónia – pediu Manuel, entrando com três copos de cristal na mão.

Manuel era um homem elegante, apesar de se notar que a idade lhe tornara o corpo mais flácido e frágil. Tinha uma expressão de grande bonomia. Abriu a garrafa com um estalido e começou a encher os copos.

– Não era necessário abrir uma garrafa por nossa causa, senhor coord... Manuel… – corrigiu Marta, perante o olhar reprovador do antigo superior hierárquico.

– É a primeira vez que vos recebo aqui em casa e é também em honra a tudo o que fizemos juntos nos últimos quinze anos – referiu ele, olhando para o inspetor. – Além disso, para cá virem, suponho que seja por algum caso escaldante, não? – quis saber, com um brilho especial no olhar. Devia sentir saudades do antigo emprego.

– Bom, nisso tem razão, Manuel – concordou Leonardo, pegando no copo de vinho. – Desde que o vinho não seja muito caro…

– Nada disso. Esta é apenas uma garrafa de duzentos e cinquenta euros. Nada de mirabolante.

Ficaram boquiabertos e sem palavras.

– Está a falar a sério?

Manuel pegou na garrafa e mostrou-lhes o rótulo. Era um vinho do Porto Fonseca Vintage.

– É a colheita de 1977, muito apreciada pelos enólogos – referiu, apontando para as letras brancas sobre o fundo preto que dizia finest 1977.

Leonardo preferia cerveja, mas não podia fazer a desfeita a um homem que abrira propositadamente para eles uma garrafa de quase trezentos euros. Olhou para Marta e ela assentiu sub-repticiamente. Aceitaram os copos e bebericaram o néctar da vinha do Douro. Era ligeiramente diferente dos que custavam sete ou oito euros nos hipermercados, talvez um pouco mais encorpado e frutado, mas certamente que não justificava o seu preço. No entanto, Marta ficou encantada com o vinho e pediu mais um copo, que Manuel lhe ofereceu com muito orgulho.

Não querendo aborrecer o anfitrião desvalorizando o seu gesto extravagante, Leonardo pousou o copo na mesa de apoio à frente do sofá e falou de forma muito séria, não deixando margem para dúvidas quanto à importância do que dizia.

– Manuel, estamos aqui porque precisamos da sua ajuda.

O ex-superior hierárquico dos inspetores bebeu o resto do conteúdo do copo e sentou-se num cadeirão. Os inspetores mantiveram-se de pé e resumiram tudo o que acontecera desde que haviam sido chamados para o caso do puzzle humano na praia Fonte da Telha. Habituado a cenários macabros, Manuel nem pestanejou nas partes mais excruciantes e nojentas. Parecia estar a ouvir o relato de uma partida de ténis aborrecida. No final, cofiou o queixo e ficou pensativo. Então, levantou-se e desapareceu no corredor de casa. Dois minutos depois, voltou com um caderno de apontamentos na mão.

– Lembro-me perfeitamente desse caso. Um casal brutalmente assassinado em casa. Os corpos esquartejados. Não é uma imagem que se esvaneça, mesmo passados onze anos. Na altura era inspetor-chefe, mas segui o caso de perto pela sua peculiaridade. Não é de todo descabida a vossa teoria de que o autor dos crimes possa ser o mesmo. Até porque o contexto do meu caso pode explicar o porquê deste grande período inativo.

Encheu mais um copo de vinho para si e para Marta, e falou enquanto apreciava o sabor forte da bebida.

– No decurso da investigação, descobrimos que as vítimas tinham um filho de dezoito anos, mas que foram forçados a entregá-lo a um centro de acolhimento quando o menino tinha seis anos de idade. Drogas, abuso de álcool e maus-tratos à criança a nível sexual, físico e psicológico. O pacote todo. Podem imaginar o cenário. Ao investigar esse rapaz, fomos dar ao serviço de Psiquiatria do Hospital de Santa Maria, onde esteve internado. Até desaparecer.

– Fugiu?

– Sim. Na véspera do assassinato dos pais.

Leonardo e Marta trocaram um olhar cheio de significado, acabando por se sentarem no sofá como o ex-coordenador pedira inicialmente.

– Fui falar com a médica responsável por ele e anotei o que ela me disse. – Colocou uns óculos de leitura e leu o que escrevera. – A médica referiu que o rapaz era um jovem com tudo para singrar na vida. Possuía uma inteligência acima da média e uma capacidade lógica invulgar, e apresentava uma determinação brilhante. Chegava a ser assustador o facto de ele parecer perfeitamente normal. Era capaz da mais delicada simpatia e do mais apurado cavalheirismo. Em suma, era socialmente correto. – Ergueu lentamente o olhar do caderno e encarou-os com uma severidade que arrepiou Marta e secou a garganta de Leonardo. – Mas, por dentro, ele era o diabo. Ela disse que se tratava do maior psicopata que lhe passara pelas mãos em toda a carreira.