LEONARDO
O toque do telemóvel rasgou o manto de silêncio que cobria por completo o quarto de Leonardo Rosa, naquela manhã de sábado. Retirado à força dos seus sonhos, o inspetor abriu languidamente os olhos, as pestanas a pesarem uma tonelada. Um fio de baba escorrera-lhe do canto da boca e desaguara na almofada, formando uma mancha negra. Olhou para o despertador: passavam catorze minutos das seis da manhã. Na noite anterior, tinham decidido descansar com calma e atacar em força as identificações durante o fim de semana. Com sorte, o relatório da autópsia já estaria pronto e teriam material com que trabalhar. Além disso, depois de lutar contra o homem da Quinta da Fonte, Leonardo estava mesmo a precisar de recuperar energias.
Pegou no telemóvel e atendeu.
– Está?
– Inspetor Rosa? Daqui fala o Dr. Cristóvão Martins.
Leonardo procurou na sua mente um rosto que correspondesse ao nome, mas o seu raciocínio estava ainda toldado pelo recente despertar do sono profundo. A voz não lhe soava familiar.
– Ah…
– O médico-legista da PJ – esclareceu o interlocutor, apercebendo-se da reticência do inspetor. – Deve recordar-se de mim.
Leonardo deu uma palmada na testa, ao fazer a correspondência mental entre o nome e o rosto e de onde o conhecia. O médico estivera presente na reunião do dia anterior.
– Sim, claro. Estou um pouco desorientado. Acordei agora com o este telefonema.
– Peço desculpa por acordá-lo, mas há uma informação que gostaria de partilhar consigo em primeira mão.
– Não precisa de pedir desculpa. Chute.
– Muito bem. Chegámos à conclusão de que a vítima número um, a mais velha e que corresponde à cabeça do puzzle, tem dezanove anos, e a mais nova tem precisamente nove. A outra vítima, a número três, tem catorze anos, o que corresponde ao que havíamos dito na reunião.
– Nove, catorze e dezanove – resumiu Leonardo. – Muito obrigado, vai ser bastante útil.
– Além disso, fizemos uma descoberta um pouco perturbante. Ao analisarmos as entranhas da vítima que, como se recorda, estavam a descoberto devido a um corte transversal na zona abdominal, encontrámos sémen que corresponde ao encontrado na vagina desta vítima.
Leonardo fechou os olhos e inspirou fundo. A vítima número dois era a de nove anos. A depravação do Esquartejador não tinha limites. No entanto, essa informação não o surpreendeu. Conhecia muito bem a mente dos assassinos em série e já ouvira muitas histórias. O que não diminuía o sentimento de tremenda repulsa que lhe revirou o estômago ao imaginar a pobre criança a ser conspurcada.
Para evitar que essa pobre vítima tivesse sofrido em vão, precisava de se concentrar no que interessava. Tinha de regressar ao trabalho. Sentiu-se revigorado com aquele telefonema. Vestiu umas calças mais informais e uma camisa clara, e partiu no seu Mercedes para a sede da PJ. Ligou a Marta, para ela ir lá ter urgentemente, a fim de iniciarem o processo de identificação das vítimas.
Com o trânsito escasso àquela hora, chegou em pouco tempo ao seu local de trabalho. Ansiosamente, ligou o computador, entrou no sistema com a sua senha e abriu a fotografia da vítima do Esquartejador, colocada duas horas antes na intranet, após ter sido realizado um retrato a partir da face do puzzle e a terem colocado online para reconhecimento facial.
– Já temos correspondência? – Marta entrou no gabinete de rompante, a bebericar um café. Pousou a mala numa das cadeiras vazias, a atenção focada no rosto no monitor. Girou a cabeça lentamente, exercitando os músculos entorpecidos do pescoço. O seu cabelo ruivo estava cheio de jeitos por ter saído de casa à pressa.
– Vamos ter. – Leonardo introduziu o nome no motor de busca. Momentos depois, um rosto intacto e jovem sorria para ele. O nome estava por baixo da fotografia. – Jeremias Teodoro. A vítima número um chama-se Jeremias. E o médico-legista ligou-me a dizer que tem dezanove anos, a vítima dois tem nove anos e a vítima número três tem catorze. – Preferiu omitir a parte da violação, para não perturbar a colega.
Marta aproximou-se, de olhar fixo no ecrã. Encostou-se à cadeira e o inspetor não pôde deixar de sentir a perna contra o seu braço, as calças justas a delinearem as formas da parceira.
– A vítima a quem pertence a cabeça chama-se Jeremias e as idades variam entre os nove e os dezanove anos – recapitulou Marta, com um olhar pensativo fixado no monitor do computador.
– Exatamente – confirmou Leonardo, desviando a atenção do contacto físico entre ambos. Olhou para o indicador das horas. – Temos de procurar nos anúncios de crianças desaparecidas quais se ajustam aos nossos filtros e contactar os pais dessas mesmas crianças para realizarem com urgência testes de ADN. Apesar de não haver denúncias recentes, há a hipótese de as vítimas terem desaparecido há mais tempo. A ver se temos sorte agora. – Apercebendo-se do silêncio de Marta, Leonardo encarou-a. Parecia emocionada. – Que se passa, M&M?
O lábio inferior tremelicou e as narinas contraíram-se. O inspetor não estava à espera de uma reação assim da sua colega. Ela nunca se mostrara afetada com o que quer que fosse. Isto era inédito para si.
– São tão novos. Têm entre nove e dezanove anos. É injusto partirem tão cedo deste mundo. Ninguém merece.
Leonardo teve um pressentimento suspeito e decidiu investigar com tato. Marta não se emocionava com tamanha facilidade. Nunca o fizera.
– Concordo contigo. O ideal seria vivermos todos cem anos, e nunca os pais verem os filhos desaparecerem. Nunca. Infelizmente, a minha Diana não conseguia engravidar, pelo que não poderei imaginar sequer a dor que é ver um filho partir. – Engoliu em seco, sem compreender porque falara dela tão repentina e levianamente. Talvez para que a colega se sentisse mais confiante e confortável para expor o que a atormentava. Agora tinha sido a ele a ter uma atitude inédita ao falar da falecida esposa. – Nunca te disse, mas ela era… a Diana… bom, ela era infértil. E nunca aceitou a ideia da adoção. Argumentava que se adotasse um menino, nunca o sentiria como seu e que veria nele o seu falhanço enquanto ser humano. Enquanto mulher. – Foi, então, a vez de Leonardo se emocionar. – Inicialmente, tentei convencê-la do contrário e mostrar-lhe que poderíamos constituir família através da adoção, mas a vontade dela nunca se alterou. Às tantas, eu próprio fui influenciado por ela e comecei a achar má a ideia de adotar. Não estava preparado para passar por mais um processo moroso como o que já tinha passado com os tratamentos de fertilização e toda a frustração que daí veio de cada vez que falhavam. Não tinha capacidade para sofrer tanto novamente. As tentativas de fertilização desgastaram-nos imenso e não tinha forças para continuar. É por isso nunca tivemos um filho. Ainda assim, tenho a certeza que perder um filho deve ser a pior dor do mundo. Pior ainda quando não se sabe o que lhe aconteceu.
Nunca falara abertamente sobre a infertilidade de Diana, mesmo quando ela era viva. Marta e todos os colegas da Polícia Judiciária estavam a par da situação, mas era um assunto tabu.
– Lamento imenso, Leo. Seria bom teres uma recordação viva da Diana através de um filho – disse, acariciando o rosto do parceiro e alisando-lhe o cabelo curto e aloirado. Parecia estar a decidir se também ela se abria com o que quer que estivesse em ebulição no seu interior.
Leonardo calou-se. Sentiu que chegara onde aquele véu suspeito lhe permitiria chegar. Deixou que ela falasse ao seu ritmo. Não podia insistir. Um passo em falso e ela fechar-se-ia novamente.
– Nem acredito que vou contar-te isto, mas, perante um caso destes, preciso mesmo de desabafar com alguém. – Abanou a cabeça, claramente num dilema interior.
Os seus olhos brilhavam de emoção. Marta afastou-se e fitou o vazio, enquanto proferia a frase que Leonardo jamais pensara ouvir da boca da colega.
– Eu sei o que eles estão a sentir, porque também já fui mãe.