CAPÍTULO 64

CARLOS

No interior do seu quarto, sentiu uma estranheza pouco familiar. Parecia que aquela divisão já não lhe pertencia. Pertencia ao filho dos Caetano. Ao filho verdadeiro. Carlos voltara, mas como o filho adotivo. Era uma sensação invulgar.

O único som que Carlos captava provinha da televisão da sala de estar, no piso inferior. Nada mudara no seu quarto. Estava tudo como ele deixara, incluindo a sua guitarra. Passou os dedos pelo objeto musical, lembrando-se de que, da última vez que o usara, estava a compor uma música para a namorada. Agora, nem ela existia, nem a vida dele voltaria a ser a mesma.

Fechou os olhos para conter a emoção, mas a picada no coração era impossível de evitar. Abriu a porta do quarto com ligeireza e manteve-se à escuta. Deu três passos longos e encontrou-se no topo das escadas que ligavam o andar de cima ao inferior.

O seu coração bateu com força ao avistar os pais sentados no sofá, em frente à televisão. Estavam a ver um canal de notícias, sempre à espera de uma atualização sobre o caso em que o filho estava envolvido.

Engoliu em seco e olhou em redor. Parecia ter o caminho livre. Mas sabia que não seria por muito tempo. Assim que os agentes percebessem que haviam sido ludibriados, voltariam e ficaria encurralado. Por isso, antes de descer as escadas, estabeleceu o limite máximo de cinco minutos de conversa.

Sentindo uma presença nas escadas, os pais olharam distraidamente nessa direção. Carlos não sorriu, quando eles se aperceberam e se consciencializaram do que viam. O filho regressara. Estava ali, a poucos metros deles. A sua mãe abriu o rosto num sorriso surpreendido, que rapidamente se tornou numa expressão emocionada pela dor que sentira naqueles dias. O pai ficou sem palavras.

– Filho?

– Carlitos?

Quando Carlos chegou ao fundo das escadas, o casal Caetano foi ao seu encontro. Carlos nunca imaginara que o reencontro fosse assim. Julgava que iria estar emocionado e imensamente feliz por voltar a vê-los e abraçá-los, mas o que sentia era exatamente o oposto. Não conseguia perdoar-lhes enquanto não lhe explicassem tudo.

– O que estás aqui a fazer, filhote? – perguntou a mãe, analisando o filho da cabeça aos pés, como sempre fazia quando passava vários dias sem o ver.

– Como entraste? – As perguntas do pai eram sempre mais práticas e objetivas.

Carlos afastou-os um pouco, tarefa dificultada pela força com que a mãe o agarrava.

– Eu sei de tudo.

Os pais entreolharam-se, confusos.

– De tudo, o quê?

– Sei que não são os meus pais biológicos. Aliás, se estou aqui, é graças aos meus pais verdadeiros, que arranjaram uma forma de afastar a Polícia por um bocado.

Maria ficou em choque e teve de se sentar no sofá, com o rosto escondido atrás das mãos. José tirou os óculos, aproximou-se da mulher e deu-lhe um beijo no topo da cabeça.

– Só queria dizer-vos que sei que me mentiram a minha vida toda. Quando tudo isto terminar, vamos precisar de conversar mesmo a sério.

Os gemidos de Maria cortavam o coração de Carlos. Mas ele tinha de ser forte. Precisava que eles percebessem que o que haviam feito fora um grande erro.

– Como soubeste? – perguntou José, o seu rosto em pânico.

– Os meus pais verdadeiros, ao que parece, estão envolvidos neste caso. Aquele rapaz, que foi assassinado e que se parecia comigo, é meu irmão gémeo. Mas isso, vocês sabiam. Escolheram adotar-me em vez dele, não é verdade? – Cerrou os punhos, tentando ficar indiferente aos lamentos de Maria. – Como puderam separar-me dele? Vivi toda a minha vida sem saber que tinha um irmão e, agora, nunca poderei conhecê-lo, porque ele morreu. E as mesmas pessoas que o mataram querem matar-me também!

Os pais adotivos estavam visivelmente aterrorizados. O grande pesadelo deles ganhava vida.

– Não te contámos nada, porque não queríamos que andasses a vida toda a pensar que tinhas sido abandonado. Queríamos que te sentisses desejado e que a tua vinda a este mundo era importante. Tinhas um ano e pouco, quando foste adotado. Era como se tivesses nascido aqui, connosco. – José era quem conseguia reunir forças para conversar. Maria não era capaz de ultrapassar as lágrimas e os soluços que surgiram após o choque inicial. – Se te disséssemos que eras adotado, provavelmente passarias a vida a procurar os teus pais biológicos, e nós nem sequer sabemos quem são. Receávamos que ficasses paranoico com a situação e que não fosses feliz. Tens de compreender, Carlos, não foi por mal. Amamos-te desde que te vimos no centro de acolhimento e nem sabes o desespero por que passá…

– Chega! – Carlos sentia que iria rebentar em lágrimas a qualquer momento. Tinha de o evitar. Tinha de estar alerta e controlar a situação, para não ser apanhado. – Não podemos ter esta conversa agora. Vim aqui para dizer que já sei de tudo e para confirmar que era mesmo verdade. E para vocês saberem que estou bem. Pelo menos, fisicamente.

– Filhote, não sabes o quanto lamentamos o que aconteceu à Vanessa… – A voz de Maria surgiu trémula e, pela primeira vez, Carlos avistou os olhos marejados da mãe. Apesar da revolta, aquele olhar especial, o olhar de mãe, tinha o condão de lhe derreter o coração. Era um olhar que vira demasiadas vezes nos últimos meses, devido à doença dela. Habituara-se a sentir o coração quebrado perante aquele olhar triste e desesperado. Esta vez não era exceção. Sentiu uma urgência em abraçá-la e lhe perdoar tudo.

– Nós também lamentamos muito, mas faz parte da vida.

Um calafrio percorreu a espinha de Carlos ao ouvir aquela voz, retraindo a onda de emoções que ele sentia.

Olharam para a origem do som. Vinha da porta da cozinha. Um homem encorpado, vestido de preto e com um sorriso sarcástico, encaminhou-se calmamente para a sala. Carlos detetou movimento à esquerda. Um outro homem, igualmente de roupa preta, mas mais magro, descia as escadas que ele descera pouco antes.

– Finalmente, foste apanhado.

Carlos não tinha por onde fugir. Virou-se para pegar num candeeiro, para usar como arma, mas o seu braço foi agarrado por outra pessoa que surgira da zona da casa de banho. Quando o jovem viu quem era, arrepiou-se. Aquele rosto feminino e delicado era inconfundível. E também o nome dela. Luna.

A reação seguinte de Carlos, recordando-se do que ela lhe fizera, foi socá-la com o outro braço. Esmurrou-a como há muito desejava. Ela afrouxou o aperto e Carlos conseguiu ficar com o candeeiro na mão. Um dos homens de negro avançou sobre ele e Carlos não hesitou em desfazer a lâmpada na cabeça desse homem, mandando-o ao chão a urrar de dor. O outro, mais hesitante, aproximou-se dele ao mesmo tempo que Luna, com a mão na face onde ele a esmurrara.

– Olá, Carlos. Deverias ter-me dado ouvidos naquela noite, no armazém. És mesmo burro. Dei-te uma oportunidade para fazeres parte da nossa equipa a bem, sem que nada de mal te acontecesse. Recusaste. Foste-te embora, achando que eu não estava a falar a sério, mas eu sabia que era uma questão de tempo até te apanharmos novamente. – Estendeu a língua para fora, provocadora. – Que tal está a correr a vidinha? Tens noção de que desperdiçaste uma rara oportunidade que o nosso líder te deu? – Agitou o indicador. – Não terás outra, Carlitos. Temos pena.

Carlos avançou sobre o homem com o pé do candeeiro em riste e tentou atingi-lo de cima para baixo. Mas o homem da OR desviou-se e esmurrou-o no abdómen, deixando Carlos sem ar. Tossiu, agachado, e Luna aproveitou para lhe tirar o candeeiro da mão. Carlos virou-se para combater, mas levou novo murro no rosto que o deixou a sangrar do nariz e fê-lo cair ao chão, com a cabeça a retinir. Luna, enraivecida, deu-lhe vários pontapés no corpo, enquanto ele se tentava proteger encolhendo-se todo.

Depois, os dois homens da Operação Resgate ergueram-no e obrigaram-no a caminhar ao lado da mulher que o interrogara quando fora raptado. Revistaram-no de cima a baixo. Se não tivesse guardado a pistola na mochila, que ficara ao pé da árvore junto ao seu quarto, tudo poderia ter sido diferente. O homem a quem batera com o candeeiro sangrava ligeiramente e apertava-o com força extrema no pulso. Carlos começava a não sentir a mão enquanto abandonavam a sua casa para o exterior.

Antes de saírem da moradia, Luna aproximou o seu rosto do de Carlos, que ofegava, e beijou-lhe a face, antes de lhe murmurar ao ouvido.

– Está descansado que todo este sofrimento vai terminar em breve.