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Agora as tílias e os ulmeiros ganham tonalidades de amarelo e vermelho, as manhãs tornam-se frias e claras. A jovem mãe vê os homens trazerem lebres, javalis e veados mortos para a aldeia. O chamuscar da pele de javali deita um fumo amargo e pungente que lhe provoca náuseas. O fumo da madeira de carvalho sobe acima dos telhados mais baixos. Vêm aí dias de chuva. O planalto fértil vai-se transformando numa melancólica bacia cinzenta por onde o vento de oeste rasga caminho.
Ela tem dificuldade em habituar-se à vida simples e dura da aldeia, a que antes não estava acostumada. As montanhas e rochas escuras parecem-lhe por vezes irreais, como se tudo fosse um sonho.
Numa noite chuvosa, Hamoutal repara na presença silenciosa de inúmeros caracóis e rãs. As rãs emitem sons sibilantes, parecidos com os do mocho, mas mais frágeis e menos definidos. Os letárgicos animais saltam contra as fachadas das casas quando ela passa. Desamparados, quase humanos, erguem-se com as patas da frente levantadas como se quisessem rezar ao céu a pedir ajuda. Assim que os passos dela se extinguem, as rãs voltam a cair num estado de apatia.
Os caracóis são diferentes. Após cada chuvada noturna saem, sem a mínima noção de perigo, e trepam as pequenas pedras semicirculares para o meio das ruelas antigas, onde se juntam para acasalar. Acabam frequentemente por morrer debaixo dos pés de um caminhante tardio. As suas conchas finas estalam e a baba esguicha. O que outrora tinha forma e substância volta pela morte à matéria, despojado da sua estrutura delicada. Alguns aldeões apanham os caracóis das pedras, interrompendo assim o seu jogo amoroso, e atiram-nos para uma panela de cobre, cozendo-os vivos para os comer a seguir.
Esse tipo de coisas deixa Hamoutal perturbada.
Ela cresceu com histórias em que Deus governava a natureza. Quanto ao deus judaico, cujo nome ela não deve pronunciar, não será muito diferente, mas não sabe ainda bem de que maneira difere. Basta-lhe ver uma vespa colada num pote de mel, a zumbir numa agonia ruidosa, ou observar um pequeno escorpião negro a ser esmagado por um pé, para ter de desviar o rosto, atormentando-se a si própria ao questionar-se qual é o deus responsável por isso. Ao dar peito ao pequeno Yaakov, o seu filho de meses, é às vezes acometida por uma sensação de opressão e pavor indefinido. Nada resta, então, da sua infância protegida naquela bela casa no Norte? Para que serve esta vida rude à sua volta? Acaba por ser absorvida pelo angustiante ciclo de vida e morte. Os teólogos não reparam nessas coisas, como se tudo o que os rodeia fizesse sentido. Às vezes sente que, ao renunciar à fé dos seus pais, foi como se tivesse caído no vazio. Por mais que seja instruída por David acerca da Tora e da antiga história do povo judeu, as suas certezas foram abaladas e não há ninguém com quem possa falar: os cristãos estigmatizá-la-iam imediatamente, chamar-lhe-iam bruxa e querê-la-iam na fogueira; os judeus apontariam as suas dúvidas como indignas de uma prosélita, e assim nunca poderia ser acolhida na comunidade judaica. Portanto, faz aquilo que as mulheres civilizadas da época sempre e em todo o lado fizeram: calar-se, baixar a cabeça, rezar em silêncio. Às vezes não sabe a quem, talvez àquela voz dentro de si, um anjo perdido que por vezes parece pousar-lhe no ombro, fazendo-a tremer fortemente, até que ela se recompõe com encantamentos sussurados.
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Por mais que se esforce para se integrar na pequena comunidade, tendo sempre uma palavra amiga para com quem cruza o seu caminho, quase não recebe reações, a maioria dos aldeões passa por ela com indiferença. Isso é coisa a que a distinta mulher normanda nunca foi habituada, e muito menos a judia privilegiada que foi em Narbona.
À medida que ganha consciência de que nunca pertencerá inteiramente a esta comunidade, deixa de tentar ser amável. A partir desse momento, passa a ser mais ou menos tacitamente aceite, porque assumiu o seu papel de forasteira. Após algum tempo, os cristãos notáveis acenam-lhe educadamente com a cabeça. As interrogações que se refletem nos seus olhos não manifestam nada de verdadeiramente simpático, mas, enfim, aqui está segura e o marido tornou-se amigo do rabino Obadiah. Ninguém lhe pergunta o que veio ela cá fazer, mas o silêncio à sua volta, quando se encontra entre outros aldeões na pequena praça, é suficientemente elucidativo. Uma judia loura, com olhos de um azul gélido – há aqui alguma coisa que não bate certo, consegue ver-se o que eles pensam, no entanto ninguém pestaneja sequer. Um dia umas crianças atiraram-lhe pedras enquanto cantavam: Mouri, Jusiou, mouri – Morre, Judeu, morre.
Ela reflete sobre tudo isso enquanto regressa a casa ao cair da noite a coxear; o pé dorido e inchado que teima em não sarar vai pousando sobre as pedras irregulares e ásperas da Grande Rue – na realidade, não é mais do que um beco largo e faz hoje parte de uma rota para caminhantes. Tenta não esmagar nenhum caracol, sobretudo aqueles espetacularmente entrelaçados no seu lânguido e onírico jogo amoroso, uma massa indistinta e mole movida por um desejo transparente, enorme e obscenamente protuberante.