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Num dia claro de outono do ano de 1070, na cidade portuária normanda de Rouen, nasce uma menina. Naquele dia ecoam nas ruas os brados de soldados autoflagelando-se, as ladainhas e preces monótonas, o estalar de chicotes nas costas nuas, o murmurar de salmos, os gritos das mulheres, o arrastar e chocalhar de correntes nas pedras do caminho, o rufar sombrio do grande tambor, as lamúrias asfixiantes da sarronca dos penitentes cambaleando. Esta deprimente e patética procissão é formada pelos guerreiros outrora tão implacáveis do exército de Guilherme, duque da Normandia, descendentes mal-afamados dos viquingues, que foram obrigados pelos bispos a penitenciarem-se pelas bárbaras atrocidades cometidas quatro anos antes, na batalha de Hastings. O pai da menina também é descendente de um dos viquingues que um século e meio antes tomaram esta região, abrindo caminho com ataques, pilhagens e fogo posto, acabando por se fixar nas florestas densas junto às margens do serpenteante rio Sena.
Apesar de se terem apropriado de terrenos e casas, depois desses primeiros anos de terror, vivem agora em relativa paz religiosa. Os invasores trazem consigo um estilo de vida mais higiénico e, em poucas gerações, acabam por adaptar-se à cultura hospedeira. Também deixam uma forte impressão nos habitantes locais: a primeira geração de homens rapa as sobrancelhas, pinta os olhos com kohl e prende o cabelo num pequeno rabo-de-cavalo, o que parece contradizer a sua abordagem bruta e o espírito guerreiro. O seu domínio gera medo e, na maioria dos casos, uma submissão resignada. Muitos viquingues raptam e violam mulheres nativas. Mas também nascem laços emocionais e há interesses materiais de famílias inteiras que se entrelaçam. Procura-se um meio de restaurar a santa paz que prevaleceu ao longo de séculos. Quando os conquistadores se mostram dispostos a converter-se à fé cristã, sendo impossível fazer-lhes frente, ganham o direito à herança dos seus bens. Passam a chamar-se normandos. Alguns bisnetos dos primeiros viquingues até chegam a ser cidadãos importantes, integrados na vida da cidade em rápida ascensão. Um deles é Gudbrandr, o pai da recém-nascida. A mãe provém de boas famílias de Arras, uma parente afastada dos condes da Flandres que na época governavam a cidade.
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A criança que nasce naquele dia de outono numa casa brasonada vai chamar-se Vigdis, um nome antigo norueguês que significa «deusa da guerra». Uma vez que este nome pagão não figura no calendário hagiológico cristão, o padre que irá batizá-la pergunta se não o podem mudar. O pai responde que não, um viquingue convertido não deixa de ser orgulhoso. Como forma de compromisso é dado à menina, durante a cerimónia de batismo na igreja local, um segundo nome próprio, o da avó materna flamenga: Adelaïs. E o seu avô materno era de origem franca. O anjo da guarda de Vigdis Adelaïs terá então sangue misto. Na Normandia, abutres francos e noruegueses voam pelo céu ameaçador, cruzando-se sem se tocarem, cada um com uma asa ensanguentada – foi assim que descreveu um monge daquela época um pesadelo que teve.
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Vigdis Adelaïs, de cabelos loiros e olhos azuis ligeiramente estrábicos, cresce no ambiente protegido desta próspera cidade onde o comércio floresce: aqui atracam grandes navios mercantes carregados de tecidos, especiarias, madeira e cobre, lado a lado com barcos de pesca fedorentos. Junto das margens do Sena, onde ela brinca com outras crianças, a água agita-se com a deslocação dos barcos viquingues, os graciosos snekkar. Mesmo navios mais pesados, vindos da Inglaterra, ainda apresentam por vezes na proa uma cabeça de dragão, tão característica dos barcos viquingues.
Na primeira metade do século XI, a agricultura progride e traz mudanças bem-vindas aos lavradores. O clima é agora mais favorável e as colheitas mais abundantes; o gado torna-se mais gordo e saudável; a fome crónica é coisa do passado, há alimento mais variado à disposição. Após décadas de tensão por causa da mudança do milénio e das invasões, as pilhagens chegam progressivamente ao fim e a sociedade parece encontrar novamente o seu equilíbrio. No intervalo de um século, as mulheres crescem em média uns centímetros. O raquitismo manifesta-se consideravelmente menos e a esperança média de vida sobe de trinta para trinta e seis anos. Parece que Vigdis pode contar com uma vida um pouco mais longa do que os antepassados. Nada faz prever as catástrofes que irão marcar o fim do século.
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Desde os seis anos, Vigdis Adelaïs recebe aulas particulares em casa. Os seus pais são prósperos e cultos. Nada lhe falta, é rodeada de cuidados. Um sacerdote vem ensiná-la a ler e a escrever. Não que as motivações de seu pai sejam inteiramente religiosas: o ensino para as meninas era, antes de mais, um sinal de prestígio da nobreza desse tempo. Quanto mais elegante, eloquente e refinada ela puder ser, mais atraente e cobiçada se tornará para pretendentes notáveis da sociedade. Por isso a sua liberdade é restringida: após o seu décimo aniversário, já só pode brincar dentro de casa, nas poucas horas vagas da tarde que precedem o início das vésperas. Tem de aprender a ficar calada quando ninguém lhe perguntou nada e não ser a primeira a falar. Deve baixar os olhos quando anda na rua e não olhar fixamente para ninguém. Tem de se habituar a caminhar com passinhos elegantes e graciosos. O seu corpo a desabrochar é espartilhado e coberto por roupas finas de tecidos preciosos.
Certa noite, ouve os seus pais a discutirem à mesa após a refeição. Entra sorrateiramente na sala e, despercebida, senta-se num banco virado para a parede.
O pai acabou de tecer severas críticas sobre a maneira como o papa Gregório VII se atirou numa vergonhosa luta pelo poder contra Henrique IV, o Sacro Imperador Romano-Germânico. Ele critica os líderes da Igreja e condena nos termos mais fervorosos a corrupção de alguns bispos, que nomeiam sistematicamente os respetivos familiares para lugares de poder.
A mãe levanta a voz e defende a Igreja e os sacerdotes com uma veemência e ferocidade que apavora Vigdis. Acusa o marido de ter ideias heréticas.
O pai bufa, furioso, espeta a faca no tampo da mesa e diz que o crescente ódio da populaça aos judeus é instigado pelos clérigos, o que não vê com bons olhos porque causa um clima de insegurança e tumultos na cidade.
A mãe benze-se fazendo o sinal da cruz e cicia que, afinal de contas, foram os judeus que pregaram o Messias à cruz; e que o seu marido, como descendente de viquingues, deve saber muito bem o que é violência, com tantos tios e primos brigões, ou não será assim?
O pai resmunga que os judeus, tal como os viquingues, querem viver em paz, mas que são geralmente os padres e zelotes os instigadores dissimulados das zaragatas.
A mãe, ofendida, murmura que, em todo o caso, os judeus são culpados da destruição da Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, por terem deixado os muçulmanos entrar na cidade.
O pai rosna, colérico, que está farto de toda essa incitação a que a turba marche em peregrinação sobre Jerusalém e às ações retaliatórias no Oriente.
A mãe atira-lhe que Jerusalém vai ter de ser libertada desses demónios sarracenos e que a destruição da Igreja do Santo Sepulcro pelo demónio Al-Hakim, há setenta anos, foi uma vergonha para o mundo cristão.
Após ouvir a mulher, o pai suspira, irritado, e responde que S. Vulfrão preconizou a Normandia como a nação onde diversos povos viverão unidos.
Sai de casa e pergunta rispidamente ao estribeiro pelo cavalo.
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Ao virar-se, a mãe vê a filha a olhar, de olhos arregalados. Vem cá, diz, e pega na menina ao colo enquanto lhe afaga o cabelo. Vigdis não percebe grande coisa, mas anos mais tarde essas conversas voltarão à sua memória com uma nitidez que a deixará admirada. Agora ainda brinca na companhia do irmão Arvid no pátio interior, com patas de coelho, berlindes de pedra e falanges de porco, e dança na sombra das traseiras da casa antes de ser chamada para dentro, para as aulas de canto e para as orações.