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As gaivotas sobrevoam o Sena, o sol matinal brilha sobre os telhados de Rouen. Entretanto estamos já na primavera de 1088. David tem cerca de vinte anos; Vigdis Adelaïs, dezassete.

O mundo ocidental está cada vez mais turbulento. Profetas da desgraça, mendigos e hereges percorrem o país, anunciam mensagens que incitam e confundem o povo crédulo. Censuram o clero e proclamam que a verdadeira fé já não deve ser procurada em Roma. Por vezes, alguém é linchado, um camponês espancado, uma quinta incendiada, contas ajustadas com facas afiadas ou machados. Os cavaleiros da nobreza têm rédea solta no campo e oprimem com punho de ferro o povo que durante séculos pôde viver em relativa liberdade. Os senhores feudais festejam com aquilo que conseguem subtrair aos camponeses. Os normandos estão atentos e pressentem e evitam distúrbios e tumultos; ao manterem a ordem, ganham prestígio, tanto entre o povo como junto da nobreza.

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Contar folhas, contar horas, contar dias, contar luas. Vigdis Adelaïs, uma flamenga escandinava de beleza a desabrochar, regressa do mercado com a governanta. Os seus cabelos – untados com manteiga e esticados, antes de serem entrançados num coque com pequenas pérolas entretecidas – brilham intensamente. Tem o rosto delgado, característica marcante que herdou dos antepassados do lado materno, nariz fino e direito, queixo ligeiramente recuado, maçãs do rosto lisas, testa alta; a aparência de uma mulher com uma vida interior rica, uma mulher que nos nossos dias exerceria uma profissão intelectual ou então seria uma diva do cinema de culto. As sobrancelhas loiras foram quase totalmente depiladas, seguindo a moda da época, da qual temos conhecimento através dos quadros dos primitivos pintores flamengos ou da famosa Madonna, de Jean Fouquet; e quem quiser imaginá-la no seu estado natural pense nas Evas adolescentes pintadas por Lucas Cranach. Na rua, mantém os olhos azul-claros quase sempre baixos. A cada passo, vislumbram-se alternadamente os elegantes sapatinhos pontiagudos de couro vermelho-acastanhado contrastando discretamente com a cor esmeralda do vestido e o azul-escuro do casaquinho. A acompanhante – uma viúva contratada pelo pai de Vigdis como governanta, para cuidar da rapariga agora que se está a tornar adulta – é uma mulher mais velha e está vestida de preto. À frente, um criado leva um pequeno burro carregado com os víveres que compraram. O tempo está fresco para esta altura do ano.

Em frente ao portão da escola talmúdica, uns rapazes conversam em voz baixa. Calam-se quando a jovem passa com a sua acompanhante. Vigdis levanta o olhar por um instante, e esse olhar cruza-se com um par de olhos cintilantes; repara então num rapaz com aspeto de ser do Sul, que a observa sem pudor. Usa um pequeno chapéu amarelo em bico, como naquele tempo era frequentemente obrigatório entre os judeus. Na boca dele forma-se um sorriso. Antes de se dar conta, ela retribui o sorriso e cora até ao pescoço. Um rapaz judeu, pensa, um rapaz judeu a sorrir para mim. Por um instante, veio-lhe à memória a imagem da cabeça monstruosamente disforme e ensanguentada do jovem larápio. Sente-se tola, envergonhada e aflita, o resto do dia estará irritada e será ríspida com todos.

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Os pais terão feito planos para o casamento dela. Também os irmãos a terão mantido debaixo de olho, pois, se ela lograsse casar-se com um bom partido, o dote seria considerável e beneficiaria a prosperidade e o prestígio de toda a família. Vigdis falava de uma forma educada, culta e reservada. Aprendeu latim, tinha aulas de canto, tocava uma viola de cinco cordas (moderna para a época), gostava de fazer rir os atarefados jovens cavaleiros que rondavam os estábulos e era louca por belos cavalos – apesar de estar formalmente proibida de montar, aprendeu na mesma com os rapazes dos estábulos e só deixou de montar quando um deles não conseguia manter as mãos quietas. Aprende ainda a fiar e a tecer, ajeita-se a dirigir a cozinha; gosta de tagarelar com os camponeses nas traseiras da casa, apesar de a mãe reprovar. Às vezes questiona o pai sobre os deuses escandinavos, a doutrina pagã dos seus ancestrais.

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A governanta acompanha-a às aulas de canto numa igreja próxima, a poucas ruas de distância. Mas em vez de voltar para casa pelo Decumano, posteriormente apelidado de Rue du Gros Horloge, pede à governanta para dar uma voltinha e fazem um pequeno desvio, voltando pela Rue aux Juifs.

Num entardecer, acontece o que tanto esperava: o rapaz está novamente à conversa com os amigos junto à escola talmúdica. Sente-se ofegante de excitação. Aproxima-se, faltam apenas uns passos de distância até ao grupinho. Tem de erguer o olhar, tem de ser, tem de ser. Fá-lo e fixa-o diretamente nos olhos. Devido à mistura de hesitação e franqueza do seu olhar, ele sente um choque ainda maior do que ela. Ela parece perfurar-lhe os olhos, sente que o magoa com o olhar. A estranha volúpia dessa consciência torna-a por um momento poderosa e cruel, enquanto o coração bate louco sob o traje lindamente bordado. Os rapazes não só se calam, como se viram com alguma surpresa para o jovem David Todros, que para no meio do seu discurso, engole em seco e pestaneja.

Mas Vigdis Adelaïs já desapareceu ao virar da esquina.

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Durante semanas, ela volta muitas outras vezes pelo Decumano no seu passeio diário. Não sabe já o que fazer. Finalmente, numa noite confessa à governanta que está doente de desejo de voltar a ver o rapaz. A mulher, que recorda com saudade o seu casamento de outrora, tem suficiente noção da vida para não trair a confiança da rapariga. Avisa-a de que desejar um rapaz judeu é proibido, impensável até. Como Vigdis começa a chorar e a arrancar os cabelos de dor e frustração, completamente transtornada, a governanta deita-a na cama. Nessa noite, ela própria fica acordada a refletir, dilacerada, sem saber o que fazer para ajudar a jovem.