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Ao deixar Bruxelas pela tarde, apanho a autoestrada do sul em direção a Tournai e Lille e saio em Rouen. Chego ao anoitecer. Estamos em finais de março, um vento seco sopra nas praças desertas. Passo pela Rue du Massacre, tiro uma fotografia à placa toponímica. Pouco depois vou dar à Rue aux Juifs – uma rua direita e comprida com dois edifícios governamentais, um em frente ao outro. O do lado direito é o Palais de Justice. Em 1976, ao fazerem escavações para uma garagem de estacionamento subterrânea, um bulldozer embateu num grande bloco de pedra onde era vagamente visível uma inscrição. O capataz mandou parar imediatamente as obras e escavar com cuidado. Pouco a pouco, foi ficando exposto um grande edifício. Estudos arqueológicos revelaram que se tratava de parte de um edifício judeu do século XI. Uma sinagoga? Uma escola? Uma casa nobre? Descobriu-se que Rouen teve uma próspera comunidade judaica. O erudito americano Norman Golb interessou-se pelo caso e dedicou-lhe um livro bem documentado. O edifício revelou ser afinal uma escola – uma yeshivá.

É neste lugar que quero começar a minha pesquisa. Uma pesquisa que, tal como aconteceu a Vigdis Adelaïs e ao seu amado judeu, me levará para longe de casa.

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Na tarde seguinte, tenho um encontro marcado com Annie Lafarde, uma mulher cheia de entusiasmo que, a pedido, organiza visitas guiadas pelo que resta da yeshivá. Quer contar tudo ao mesmo tempo e mantém sequestrada, durante uma hora, a dezena de pessoas que compareceu numa saleta mesmo em frente à fachada da Catedral de Notre-Dame de Rouen, uma vista que me desconcentra. Esta catedral fascinou Claude Monet de tal modo que a pintou quase trinta vezes; e sempre em tons diferentes, consoante a luz fugaz que queria captar. Uma paixão comovente, pois o reflexo da luz em edifícios de pedra antigos não estabiliza nem por um momento – tal como o nosso olhar sobre o passado.

O grupo segue para o exterior com a guia, que continua a falar efusivamente.

Atravessamos o pátio do Palais de Justice em direção ao canto direito, onde uma porta de vidro reforçada dá acesso ao santuário. Só agora me apercebo de que há mil anos a cidade ficava sensivelmente dois metros mais abaixo da quota de hoje. Descemos por umas escadas e de repente sinto a cabeça a andar à roda. Ali, no subsolo, na humidade e rodeada deste ar viciado, por entre paredes de betão e vigas metálicas, à luz vaga de néon, lá está ela: a ruína estranhamente bem conservada da yeshivá de Rouen. Toco nas paredes rugosas cobertas com pérolas de humidade e penso: David Todros, mil anos depois, toco a pedra que tu tão bem conheceste. Encontro relativamente depressa a inscrição onde esta casa é descrita como maison sublime – sublime, grandiosa porque cada yeshivá faz alusão ao Templo de Jerusalém, para sempre destruído pelos romanos no ano 70, durante a Primeira Guerra Judaico-Romana, descrita por Flavius Josephus. Ao contrário dos cristãos, que reconstruíam continuamente as suas grandes igrejas, os judeus nunca mais ergueram uma construção central sagrada após a destruição do Templo. Em vez disso, esta catástrofe é comemorada nas inúmeras sinagogas pelo mundo fora, tão espalhadas como a diáspora – de modo que todas as casas de oração são um kadish arquitetónico, uma oração em memória do Templo para sempre desaparecido.

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Algures diante da fachada dessa maison sublime, Vigdis e David encontraram-se pela primeira vez. Imagino David Todros a chegar, mas agora tenho em mente pormenores concretos do edifício diante dos meus olhos. Na parede da divisão central observo os buracos redondos onde se fixavam as vigas das prateleiras que acondicionavam os rolos da Tora. A yeshivá tinha duas portas: uma na parte de cima, do lado da rua, e uma em baixo, ao pé das escadas da entrada. Devem ter sido portas pesadas, considerando quantas coisas valiosas havia aqui para proteger. Há vestígios do grande incêndio, ateado durante o pogrom de 1096 – quando David já vivia com Vigdis na minha longínqua aldeia do Sul, assumindo ela outra identidade, e mesmo assim o destino encontrou-os. Enquanto isso, aqui no Norte ardiam a sinagoga e esta yeshivá, dando fim a uma era de coexistência pacífica na Normandia. Observo os ornamentos babilónicos e os pilares à entrada do edifício: o leão espezinhado, símbolo do mal vencido, e, do outro lado, o dragão, símbolo da vida e da luta, ambos nitidamente visíveis na pedra gasta. Há uma passagem estreita para o primeiro andar, onde provavelmente também se estudava. Tudo é mais íntimo do que imaginei. Faz-me pensar nas casas altas e estreitas da minha aldeia provençal. Olhando para elas, alguém me disse um dia que, por serem atribuídas parcelas tão estreitas aos judeus, eles inventaram a construção em altura. Norman Golb chegou a sugerir que aqui talvez tivesse existido um terceiro andar, o que seria bastante excecional para a época. Rindo, Annie Lafarde descarta a sugestão.

Não sei, nem me importa. Estou surpreso com a forte impressão que este lugar provoca em mim; além da minha aldeia no sul e de uma sinagoga no longínquo Egito, este é o único lugar em que tenho a certeza de que Vigdis Adelaïs esteve. Aqui andou com o coração a bater fortemente enquanto passava em frente ao portão, sabendo que lhe era terminantemente proibido entrar. Aqui hesitou e esperou.

Conhecendo a sua vida e o seu fim trágico, gostaria de poder avisá-la do que a espera. Adiante, rapariga, escolhe outro homem, escapa deste destino, foge do que tanto te atrai. Mas não: ela apaixona-se tão profundamente que deixa todo o seu mundo para trás. Vejo-a novamente a descer a colina provençal perto de Monieux, com o pé torcido e as roupas enlameadas, e tomo consciência de que as nove pessoas aqui presentes, nesta cripta cheia de fotografias e suas legendas, não conhecem o meu segredo. Sinto-me longe do dia de hoje, embrenhado na História, por mais que tente participar nas conversas que, devo admitir, se tornam mais fascinantes e absorventes à medida que a tarde avança.

Quando voltamos à superfície custa-me suportar a multidão. Passeio ao longo do Sena, é o começo da hora de ponta, o ar que respiro é apenas de gases de escape. As gaivotas pairam em círculos sobre a água do porto.