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A seguir a Évreux, a planície à sua frente estende-se até ao horizonte. Passam por pequenas aldeias e avançam rapidamente, o terreno é plano e fácil. Chegam ao sítio em que fica atualmente Nonancourt, onde o caminho começa a subir. Sobem um pouco, para o planalto situado mais acima. Ao olhar para trás, conseguem ver o caminho percorrido: uma extensão ampla sob as nuvens, sobrevoada por bandos de estorninhos. Moita, vegetação rasteira, alguns lagos com água escura e estagnada, de vez em quando um javali que os assusta, arranhões das silvas que por vezes têm de atravessar, cansaço, desânimo. Um ataque de choro ao crepúsculo; fome e sede; desconfiança por parte dos poucos habitantes de umas casas baixinhas à porta das quais batem.
Em alguns sítios cultiva-se espelta, mas os terrenos semeados são pequenos, descuidadas e irregulares. Junto de uma muralha, por baixo de carvalhos antigos e altos, porcos esqueléticos e negros chafurdam fossando a terra com força. No Bois de Saint-Vincent, mesmo abaixo de Blévy, caminham por uma aprazível, serena e encantadora floresta. Galinhas bravas, picanços, toutinegras, um papa-figos, o toc-toc oco de um pica-pau. O farfalhar de folhagem, samambaias da altura das árvores, selos-de-salomão, são uma esperança fugaz. Colhem bagas. David, que em menino aprendeu a caçar pássaros com uma rede, apanha uns pombos, com uma facada corta-lhes o pescoço. Depena-os e limpa-os, passa-os por água e um pouco de sal e deixa-os a sangrar toda a noite, como mandam as leis de kashrut8. Na manhã seguinte grelha-os numa fogueira. Moscas zumbem à volta do cadáver de uma jovem raposa; Vigdis anseia por rezar a um santo qualquer; confusão e terrores noturnos; brisa amena ao romper do dia. Partem de imediato e chegam perto da atual Méréglise já depois do meio-dia. Subitamente, algures à beira de um bosque jovem, ele toma-a nos braços, dominado pela preocupação e pela dúvida. Ela tenta afastá-lo, ele abraça-a com força. É como se uma chama percorresse o corpo de ambos. Empurra-a para a erva e, ofegante, desenvincilha-a das roupas. Ela está suada e o odor da sua pele fá-lo ficar atordoado de desejo. Ela não sabe o que está a acontecer-lhe. Sente-se arder e ficar húmida, um desejo insuportável, e ele já está em cima dela; e, antes de se dar conta, dentro dela, duro como uma lança, mas tudo o que ela sente a entranhar-se é apenas ternura. Ela vê os pombos agitarem as asas, salpicos de luz caem-lhe sobre o rosto, o cheiro a erva seca é esmagador. David beija-a no pescoço, as suas carícias são selvagens e desajeitadas, murmura palavras que ela não entende, chocam e ondulam um contra o outro, a euforia alterna com medo e tremuras, excitando os seus corpos. Ela sente algo quente correr-lhe entre as pernas. Um tordo assobia numa bétula nova, sacudida por uma brisa. Tudo se desvanece, só existe este movimento amplo e infinito dentro dela. Subitamente tudo para, ele contrai-se e chora, ela afaga-o, os dois ficam durante muito tempo sem fôlego, nadam em suor, recomeçam, obstinados e sem palavras, agora dura quase meia hora, ela sente algo tão forte que a deixa tonta. Enterra os dedos na erva, depois nos ombros dele, os aromas da respiração amorosa dos dois misturam-se. Com abelhas zumbindo-lhe nos ouvidos, formigas na erva debaixo dela, sente os ácidos a penetrarem na pele. Isso só aumenta a excitação, movimentam-se como doidos, ela chora e soluça, beija e lambe, começa de novo depois de mal ter acabado. Horas depois estão por fim quietos, ele continua deitado pesadamente sobre ela e Vigdis por baixo, sonhando. Observando um besouro que zumbe sobre as suas cabeças, ela desata a rir, uma alegria absurda, irracional, apodera-se dela. Diz: Agora sou a tua mulher.
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Ela tem razão. Segundo os costumes judaicos desse tempo, por causa desse arroubo num campo pequeno e insignificante à beira do bosque tornaram-se marido e mulher para a eternidade das suas breves vidas. Só se levantam quando escurece, ainda cambaleando. Quero mais, diz ela a rir, como se estivesse bêbada. Ele apoia-a, por um momento ela encontra-se nua em todo o seu fulgor contra o pano de fundo do bosque. Ao longe, cães selvagens correm em perseguição de qualquer coisa. Ele embrulha-a no seu casaco, protege-a do vento e do mundo, enterra o nariz nos seus caracóis louros revoltos, no seu pescoço. Ela dá risadinhas, cala-se, olha para ele, volta a sentar-se na erva, ele ajuda-a a vestir-se. Adormecem ali mesmo e só acordam na manhã seguinte, com a primeira luz e o canto assombroso dos rouxinóis. Voltam a beijar-se, as línguas entrelaçando-se a brincar, mordem os lábios um do outro. Ondulam de novo com força um contra o outro, longamente, ela arranha-lhe o pescoço, ele enterra-se no calor dos quadris dela, perdem-se por completo um no outro, uma fusão que dura até o sol voltar a aquecer e eles suarem de novo, o aroma paradisíaco do seu desejo mútuo. Depois ficam deitados sem se mexerem, ofegantes nos braços um do outro, a ouvir os sons do arvoredo atrás deles. O lugar onde se encontram chamar-se-á mais tarde Illiers; e, mais tarde ainda, juntar-lhe-ão o nome de Combray – e será então o lugar onde o jovem Marcel Proust desfrutará dos seus verões lendários, junto dos espinheiros já crescidos, no meio de campos amarelos, sob um vasto céu em que o tempo parece não ter controlo.
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Nos dias que se seguem, eles progridem regularmente, mas mais devagar; de tantas em tantas horas, param para mergulhar na erva alta, excitados e cansados, lânguidos e frenéticos, para passarem horas a beijar-se e a fazer amor. O amor esgota-os e ao mesmo tempo dá-lhes uma energia desconhecida; eles não conseguem controlar essa intoxicação, esquecem a fome, dormem sob as estrelas e não mais procuram um abrigo. Apesar de a paisagem ser fácil de perscrutar, nesses dias correm mais riscos: basta uns vagabundos sem escrúpulos repararem neles e estão condenados por causa do seu vestuário mais esmerado e da bolsa pendurada à cintura de David. Deitam-se desabrigados, a brisa da noite soprando-lhes na pele suada, de vez em quando ouvem uivar um cão-lobo. Um dia, deparam com um urso pardo junto da orla do bosque; riem-se e encolhem os ombros, perderam um pouco a noção da realidade – ora voam, ora se arrastam com dificuldade. Orientando-se pelo Sol, seguem a rota em direção ao sul, mas passado algum tempo percebem que acabaram por se desviar um pouco para leste. Uma semana depois avistam ao longe Orleães, continuam a avançar, mas distanciados uns quilómetros da cidade, a ocidente. Chegam às margens arenosas do Loire, lavam a roupa, tomam banho, fazem amor na água até um homem numa barcaça se aproximar. Fixa-os, dá para ver como mede as suas hipóteses, David ergue-se da água e continua a olhá-lo até o homem passar. Com o saiote de baixo de Vigdis, que dobra de modo a formar uma rede, passa uma hora a pescar e até consegue apanhar três peixes. Um, comem-no logo cru, os outros dois guardam-nos para o anoitecer, quando fazem fogo e os grelham. Os seus dedos, engordurados do peixe, deslizam sobre os corpos. Nessa noite decidem ir até Orleães e apresentar-se a um importante mercador judeu conhecido do pai de David e em cuja casa ele também pernoitou a caminho de Rouen.
8 Termo que se refere às leis dietéticas do judaísmo. [N. da R.]