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Eles deixam Bourges com pena. A sua anfitriã exortou-os a manterem todos os cuidados. Respondem que sim com a cabeça, asseguram que serão prudentes. Seguem por uma vereda arenosa e serpenteante, respirando o ar do verão; percorreram já quase metade do caminho para Narbona.
Mas desta vez, a sul de Bourges, algures nas imediações de um pequeno bosque com vegetação rasteira impenetrável, as coisas tornam-se feias. É um vulto inacreditável que subitamente salta, saído das silvas e das urtigas, e lhes barra o caminho. Um rapaz do campo, gigante, maltrapilho, com um brilho louco nos olhos, um selvagem impressionante em andrajos malcheirosos, com um capuz enfiado na cabeça protuberante, surge abanando os punhos fortes, gaguejando, gargarejando e cuspindo. Samule, rosna, eheh, Samule, arreganhando um sorriso, puxa de uma faca com lâmina irregularmente serreada, Samule, ei, ei, Samule. Por amor de Deus, o que quer ele dizer? Ri-se como um possesso. Eles veem dois olhos faiscar por baixo do capuz. O demónio, pensa Vigdis, é o diabo que veio do inferno para me levar. Ela vê os grandes pés, nojentos e descalços, nos sulcos do caminho. Estacam como que paralisados. Vigdis agarra o braço de David, que o retrai imediatamente, a mão procura o punhal. Samule, ei, ei, grita o homem, o som parece um queixume animalesco. Atira-se a David, que se agacha e salta para a barriga do assaltante, que aproveita para cravar rapidamente a faca no ombro de David. Vigdis grita, dois homens irrompem do mato, agarram-na, puxam-lhe de imediato pela roupa e afastam-lhe as pernas. O bafo deles cheira a peixe podre, ainda consegue pensar. Leva uma bofetada, tudo gira, já está no chão, nariz a sangrar, sente como as suas roupas são puxadas e rasgadas, invade-a uma dor cortante, não sabe bem onde, ouve o gigante rugir, ele cai para trás com as mãos agarradas à barriga, sangue a correr de debaixo dos andrajos. Depois o violador que se contorcia sobre ela cai como um bloco de pedra, o crânio meio esmagado. O terceiro foge. Ela olha para cima, vê o olhar de pânico de David enquanto espeta fundo por duas vezes o punhal nas costas do agressor que jaz moribundo por cima dela, ao seu lado ouve o gigante a gargarejar, Samule, lamenta, ei, ei, Samule, um fio grosso de sangue jorra-lhe da boca, torna a levantar-se, quer atirar-se a David, falha, cambaleia. David corta-lhe a garganta de um só golpe, o gigante cai por cima de Vigdis e do homem que continua a agonizar por cima dela. Ela sente a respiração interrompida pelo peso insuportável. David puxa pelo gigante asfixiado no seu próprio sangue, uma onda de líquido escuro jorra da garganta cortada. Já não tem forças para tirar para o lado aquele corpo colossal. Vigdis corre o risco de ficar esmagada, perde a consciência. David puxa e arrasta e finalmente, com o último estertor, o gigante rola de cima dela. Falta o violador que agoniza, de olhos revirados. Vigdis recupera a consciência, quer gritar, não é capaz, com um movimento das ancas consegue finalmente libertar-se do moribundo. Ele rola para a erva seca ao lado dela, exalando um fedor a excrementos. David sangra de três ferimentos, tem o rosto pálido como a cal e sujo, treme-lhe o corpo todo, e tomba. Ela não consegue levantar-se para o ajudar. Assim ficam deitados, a metro e meio um do outro. Ela chora, ele respira ofegante. Um tordo canta numa árvore por cima deles, pequenas folhas são sopradas pelo vento e algures, não muito longe, toca o sino de uma igreja, depois ela não se lembra de mais nada.
*
Está escuro como breu à sua volta, é a hora mais profunda da noite. A Ursa Maior deslizou para fora da abóbada celeste. Algures pia um mocho solitário. Algumas estrelas cintilam vagamente entre folhas sopradas com suavidade pelo vento. Não muito longe dela, algo se move. Está com frio, treme-lhe o corpo todo. Há alguém de pé junto dela, cambaleando, um vulto escuro e oscilante. É agora que vou morrer, pensa. Ouve um respirar ofegante. Só então reconhece David. Ele cai novamente ao lado dela, dão as mãos e ficam assim até amanhecer.
O frio desperta-os. Os corpos mutilados ao redor fazem-nos levantar-se atordoados. O homem sente as feridas provocadas pelas facadas a arderem; a mulher sente o ardor e as assaduras da violação dentro do seu corpo jovem. Tremem de frio devido ao orvalho; aos tropeções, afastam-se uns metros do horror. A mula desapareceu, tal como os alforges. Mas a bolsa com as moedas de prata permaneceu pendurada no cinto de David. Voltam a deitar-se em silêncio e assim ficam até o sol começar a aquecer. Calor do orvalho, diz ele passado muito tempo. Em hebraico é um nome feminino: Hamoutal. Será o teu novo nome, quando fores batizada como judia: Hamoutal, calor do orvalho. Ele tenta abraçá-la, ela afasta-se dos seus braços com um gemido agreste. Emudecida, olha as nuvens passageiras. Na cabeça ressoa uma oração antiga que não ousa pronunciar em voz alta. Não demora para que à volta do cadáver descomunal zumbam moscardos de um azul reluzente.