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Algo se quebrou no seu ânimo. Despojados e exaustos, arrastam-se até alcançar uma grande quinta, onde as suas feridas são tratadas com um bálsamo de ervas e o camponês lhes concede dois bancos duros para descansarem. Às perguntas do camponês reagem apenas com algumas palavras, incapazes de dizer coisa com coisa. Quando ele percebe quem foi que David apunhalou, faz três vezes o sinal da cruz e murmura algo impercetível onde só se percebe a palavra Samule. David pergunta o que quer dizer, mas o camponês abana negativamente a cabeça com força, põe o indicador nodoso em frente da boca e, de olhos arregalados, fita os dois, como que avisando-os.

Com o olhar fixo no horizonte, permanecem sentados num banco até ao cair da noite. No campo à frente da quinta, veem de súbito a mula a pastar calmamente, com os alforges ainda no dorso, bem amarrados e intocados.

Vigdis tem pesadelos. No dia seguinte, acorda com febre e todo o corpo lhe treme. Não tem conhecimentos médicos para saber o que são infeções, mas sente nitidamente algo a queimar-lhe as entranhas. Passam-se dias até melhorar ligeiramente; David fica de vigia junto dela e entretanto também as suas feridas saram, só a facada no pulso ainda deita pus. Trata-a. Lavam-se com extratos de ervas que a camponesa apanha e segundo as suas indicações. Bebem caldos de galinha; Vigdis vomita tudo.

Após uma semana, David encontra-a a chorar, acometida por pavores e entregando-se às orações da juventude, as mãos juntas a tremer, o rosário à volta dos pulsos finos, ajoelhada ao lado da cama dura; o delicado vestido de baixo, em renda, manchado por causa da cama miserável, das perdas de sangue e do suor proveniente dos ataques de febre. Quer voltar para casa, não suporta mais, é demasiado, não quer renegar o seu Deus, tudo o que desejou é impossível, é soberba e foi brutalmente castigada pela traição que cometeu para com o Deus dos seus pais; por tudo isso merece morrer, tem de entrar num convento a fim de se redimir dos pecados, ou o demónio encontrá-la-á. David não diz nada, ajoelha-se ao seu lado, murmura uma oração, fecha os olhos, e assim permanece junto dela. Eis que diz: Não podes voltar atrás. Se voltares a Rouen, serás condenada por heresia. Ela levanta-se sem palavras, deita-se na cama dura, estende-se e permanece sem se mexer como uma efígie numa sepultura gótica, os braços ao lado do corpo vulnerável. Mal respira. Cerra os olhos.

*

Já percorreram mais de metade do caminho. Os campos são áridos, os aromas setentrionais dão lentamente lugar a outros mais secos, meridionais. Há pequenas quintas cobertas com lajes primitivas de xisto ou uma camada grossa de palha, às vezes até têm cercas – ramos de salgueiro entrançados, atrás dos quais pastam cabras e ovelhas ou alguns porcos. Ora só há campo, um caminho cheio de altos e baixos, a sombra de um velho carvalho para descansar, uma ruína onde um cão rosna ferozmente; ora surgem as encostas escuras e arborizadas de Auvergne. Quase de uma hora para a outra, o tempo fica húmido e frio. Procuram os caminhos que sigam rotas planas pelos vales, mesmo assim, às vezes sobem e descem declives íngremes onde a mula hesitante tem de encontrar o caminho. Fogem de um enorme javali bufando e focinhando a terra, que ao ser surpreendido levanta os olhos e investe agressivamente contra eles. Acabam por se refugiar dentro da pequena Igreja de Saint-Eloi.

O caminho torna-se inclinado e serpenteante. O desfiladeiro seguinte, escavado pelo rio Sioule, é aterrador e está envolto numa leve neblina. Um dia mais tarde, a terra debaixo dos seus pés é negra das cinzas vulcânicas. De vez em quando encontram um menir, não sabem o que significa. Continuam o seu percurso. As pequenas igrejas são frequentemente um refúgio para a mulher indecisa e emudecida. Então, um dia avistam ao longe as duas igrejas românicas de Clermont, caem nos braços um do outro e animam-se novamente.