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Como Hamoutal está grávida, é acarinhada e rodeada de cuidados e atenções. O outono foi quente e ameno, o inverno inunda Narbona com a sua brilhante claridade, a sua beleza delicada, a frescura da brisa marítima, a aurora arroxeada, o súbito calor ao início da tarde, o igualmente súbito frio ao cair da noite, o céu estrelado, os cometas nas suas órbitas incandescentes e inexplicáveis – sinais que parecem divinos e que nenhum ser humano compreende. De longe chegam-lhes as muitas notícias de distúrbios e confrontos entre cristãos e judeus. Mal lhes dão atenção: a felicidade absorve-os por completo. Hamoutal volta a vestir-se sumptuosamente. Entretanto tornou-se amiga íntima de Ágata de Alexandria, a quem no sossego do serão conta detalhadamente a sua vida anterior. O inverno é uma festa de luz branca e manhãs claras. O futuro anuncia-se promissor, em breve será primavera, janeiro já conta com alguns dias quentes. Então volta a chover abundantemente e Narbona torna-se tão cinzenta e húmida como Rouen. Ela está sentada junto de uma janela, trauteando enquanto observa as nuvens baixas, pousa as mãos sobre o ventre que cresce.

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Eis quando numa tarde, ainda antes do regresso das andorinhas, durante o período da sesta, Ágata, em pânico, entra de rompante no quarto: esteve no mercado e viu três cavaleiros perguntando por uma mulher loura vinda do norte; ordenaram a toda e qualquer pessoa que tivesse ouvido alguma coisa que prestasse imediatamente declarações; prometiam três moedas de prata a quem pudesse ajudá-los a encontrar e prender a mulher. A multidão cercava os cavalos, um homem exclamou: Eu sei, eu sei, é aquela judia loura em casa dos Todros!

Hamoutal sente a criança dar pontapés na barriga; pouco depois, David entra no quarto, também avisado pela dama de companhia: têm de partir, agora, já, não interessa como nem para onde. O velho Todros acalma-os a todos: os homens acabaram de passar pela sinagoga, convenceu-os de que a mulher já tinha fugido sozinha em direção a Espanha. Ao ouvi-lo, os cavaleiros partiram a toda a pressa. É certo que com o tempo voltarão atrás, mas por agora ganharam algum tempo, talvez mesmo uns dias.

Seja como for, o velho Todros escreve ainda nessa mesma noite uma carta no verso de um pergaminho anteriormente usado, cuja pele é cuidadosamente raspada e limpa por ele, dirigida a um amigo, o rabino Joshua Obadiah, da remota povoação de Moniou em Vaucluse, um lugar do qual ninguém ouviu falar, recordando-o da forte amizade que existiu entre os dois. Malas feitas, preparativos tomados, tudo no maior secretismo – até atrelar os cavalos é demasiado arriscado, terão de adquiri-los algures mais tarde, pelo caminho.

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Na madrugada de 15 de março de 1091, por volta das três e meia, quando a cidade dorme e a Via Domitia se encontra deserta, David e Hamoutal iniciam a segunda fuga. A menos de cem metros da casa onde esperavam ser felizes, Ágata, chorando e sussurrando, acompanha-os agora apressadamente até à saída da cidade. Antes disso e ainda dentro de casa, atrás das portas fechadas, o casal Todros abraçou os dois fugitivos apavorados e deu-lhes uma quantia considerável de moedas de prata e víveres para uma semana. Garantem-lhes que se trata apenas de uma estadia temporária na remora aldeia, que o rabino será informado por um mensageiro, que não têm nada a recear. O rabino Todros usa uma palavra especial para a fuga, chama-lhe aliah, uma fuga para um lugar seguro, situado mais acima, algo como ascensão – a palavra é também usada para referir o regresso a Jerusalém. É estranho, Hamoutal não o alcança, mais tarde recordar-se-á frequentemente desta palavra sem nunca chegar a compreender o que o velho rabino quis dizer.

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Têm de apressar-se, Hamoutal está no sétimo mês de gestação, precisam de umas três semanas para percorrer os mais de duzentos e cinquenta quilómetros, seguindo a linha mais reta possível. Poderiam ir pela Via Domitia até Apt, mas para isso teriam de estar sempre atentos aos cavaleiros. É demasiado árduo e também perigoso: a estrada romana constituiria, na realidade, uma cilada, e a subida do alto Saint-Saturnin revelar-se-ia demasiado esgotante. O velho rabino está preocupado. Conclui que só existe um caminho por onde podem fugir sem dar nas vistas: o mar. São transportados o mais discretamente possível numa carroça até Gruissan, Hamoutal usa um lenço negro firmemente apertado sobre os cabelos louros. Naquela tarde embarcam num navio que os leva num dia e meio até à foz do Ródano, dali há uma balsa que sobe o Ródano até Avinhão. Três dias de ansiedade e comoção: há pouco vento, o barco bordeja lentamente no meio do rio, contra a corrente sem marés, não comem quase nada enquanto Hamoutal observa em silêncio as pequenas ondas. Naqueles dias, Avinhão pouco mais era do que um baluarte fortificado, governado em conjunto pelos senhores de Avinhão e Forcalquier. É uma região onde correm relativamente poucos riscos, não passa pela cabeça de nenhum cavaleiro cristão ir procurá-los naquela direção. Mas a ameaça da fuga anterior volta a atormentá-los. Durante as escassas horas de sono no barco, Hamoutal tem pesadelos.

Desembarcam num campo alagado, fora da vista das torres de vigia da fortaleza. Dali atravessam a planície ventosa em direção a Carpentoracte, uma pequena localidade murada onde vive uma comunidade judaica. São acolhidos durante uns dias por uma família que foi avisada pelo mesmo mensageiro. Dão-lhes um pequeno animal de carga, uma mula que é carregada com mantimentos, umas mantas e roupas, e um guia que conduz o animal pela rédea. A próxima etapa da sua rota leva-os na direção de Malemort, que será mais tarde parte do Comtat Venaissin. Às vezes veem oliveiras centenárias por entre prados de gramíneas resistentes e ondulantes, árvores de fruto silvestres com troncos negros como breu, construções primitivas feitas de camadas de xisto sob as quais dormem os pastores, e a leste o contorno dos montes pré-alpinos de Vallis Clausa ou Vaucluse. Por trás desponta o cume árido de Mons Ventusos, o monte desolado pelos ventos. De Malemort, caminham por uma zona desabitada perto daquilo que é hoje Méthamis, atravessam depois a floresta de montanha e o planalto deserto de Saint-Hubert. Hamoutal sente dores agudas nas entranhas, tornou-se pesada e lenta, é colocada em cima da mula que o criado conduz. Quase não trocam uma palavra dias a fio.

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Entretanto os três cavaleiros regressaram a Narbona, onde cercam a casa do Roi aux Juifs. Dão pontapés na porta pesada, gritam que ele é obrigado a deixá-los entrar ou pegarão fogo à casa. A porta abre-se e ficam inesperadamente cara a cara com o velho rabino soberano, que os olha e pergunta o que desejam. Exigem entrar em casa. Ele recusa bruscamente. Voltam a ameaçar, porém hesitam. Ele jura-lhes que a mulher que procuram não se encontra em Narbona e que nem ele sabe para onde essa mulher terá fugido; suspeita que terá escolhido o movimentado caminho para Santiago de Compostela a fim de, como cristã, fazer penitência pelos seus pecados. Porque não acreditam no que ouvem, sacam das espadas; mas quando ele curva a cabeça, rindo com ironia, apercebem-se de que os três não ganham nada em desencadear aqui uma revolta religiosa ao assassinar o rabino-mor. Permanecem mais um dia pela cidade, incomodam alguns habitantes com as suas inquirições, dão uma vista de olhos junto da Via Domitia, encolhem os ombros e voltam a partir em direção a norte, para Rouen, a fim de informar os pais dela de que não encontraram vestígio dos dois. Quem sabe, provavelmente já se encontram em Santiago, ou mais longe ainda, na Espanha árabe, entre os abomináveis sarracenos – região para onde não se atrevem a ir sem mais reforços. Debaixo das nuvens atlânticas, o pai tem um ataque de fúria nórdica digna de um berserker9, enquanto a mãe, em prantos, roga antigas pragas flamengas.

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Conduzo de Narbona a Avinhão via Montpellier e dali sigo-lhes novamente o rastro. Via N100, atravesso o Ródano num lugar próximo de Les Angles. Ali o rio bifurca-se temporariamente num braço ocidental e noutro oriental; nas proximidades, situam-se atualmente os desolados parques de estacionamento da estação do TGV. Autocarros cheios de turistas são despejados junto do Palais des Papes, à porta da cidade. No largo rio flutuam alguns barcos de recreio.

O caminho de Avinhão a Carpentras é hoje uma movimentada estrada com quatro vias que passa por Le Pontet – outrora literalmente uma pequena ponte, agora um aglomerado berrante de grandes lojas que dão a sensação de termos ido parar a um subúrbio americano. A estrada passa por uma região pantanosa que fornece os enxames de mosquitos que de verão exasperam os visitantes do festival de Avinhão. A leste de Carpentras, depois do aqueduto romano, a paisagem torna-se mais rural. Num turbilhão de luz e recordações, estou a voltar lentamente a casa. Os nomes são hoje diferentes de outrora. Depois de Mazan, tomo a estrada para sul, passo por Blauvac e sigo até Méthamis. Ali paro um quarto de hora e observo, do alto do adro da igreja, uma paisagem com vinha e ciprestes. Continuo até junto da grande quinta de Saint-Hubert, uns oito quilómetros mais adiante; caminho ao longo das ruínas do muro da peste, erguido no bosque que fica mesmo atrás, escuro e antigo na paisagem deserta. Terra remexida, vestígios de javalis, a pele reluzente de uma cobra, o chamamento ao longe de uma ave de rapina. Saio do carro e faço o resto do caminho a pé, atravessando o Bois du Défens até La Plane. O fim do desfiladeiro fica agora à minha esquerda. Na manhã incandescente, o vento mistral flagela os topos despidos dos carvalhos, torcendo-os e abanando-os; o caminho é amarelado e penoso.

A partir deste lugar, eles avistam pela primeira vez a planície de Monieux ao longe; mas antes ainda se perdem no caminho, descem demasiado cedo para a garganta tosca do Nesque, desorientam-se, insultam o guia, atravessam a correnteza do rio. Num declive íngreme onde Hamoutal não pode montar a mula, ela torce o pé numa grande lasca de pedra, grita de dor no silêncio da tarde, cai sobre os joelhos, fecha os olhos e pousa a mão na barriga. Já não deve ser longe, diz David, olhando à sua volta para o desfiladeiro deserto e selvagem. Mais valia terem seguido o leito do rio, mas isso eles não sabem. Sobem mais uma vez; rastejam penosamente, escalando a margem oriental e a encosta; é um trilho esgotante, o erro custa-lhes quase um dia. Adormecem sob um céu noturno frio, branco como neve, a Via Láctea tremeluz acima deles, a Lua em Quarto Minguante e avermelhada está suspensa sobre o horizonte negro. Ruídos de animais, medo e sono leve, músculos doridos, desconforto sobre o chão nu, estremecimento ao alvorecer. Acordam com frio, procuram erguer-se e fazem-se ao caminho em silêncio. A manhã clareia palidamente por cima da linha da serra, do lado oriental. Bebem um gole de água, o guia coloca os alforges no dorso da mula. Marcham maquinalmente para sudeste, passam o planalto de La Plane e, com os primeiros raios de sol, veem no vale que se abre à sua frente a aldeia como um ninho de pedra colado à encosta. Nos carvalhos encarquilhados e secos esvoaçam passarinhos. Os três descem para o planalto fértil e vazio, para a aldeia de onde eu os vi na minha imaginação a aproximarem-se. Chegam esgotados mas seguros à Grande Porte. David bate três vezes com o cajado. Abrem. Um galo canta, um cão ladra dando as boas-vindas. Ainda estamos em 1091. O mundo ocidental resvala lentamente para uma catástrofe, uma brecha na história, e ninguém a vê chegar. Os contemporâneos não fazem ideia.


9 Ferozes guerreiros nórdicos que eram conhecidos por despertarem numa fúria incontrolável antes de qualquer batalha. [N. da R.]