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O velho rabino delega cada vez mais tarefas no jovem David Todros. Mensagens de David enviadas ao pai, para Narbona, informam-no de que lhe está a ser confiada a responsabilidade pela comunidade judaica de Moniou e que decidiram ficar por lá. Aqui, escreve o filho, reconstruíram a sua vida, os filhos são jovens e saudáveis, têm uma casa sólida perto da sinagoga e, ao contrário do que esperavam, a vida rural nesta pequena comunidade traz-lhes felicidade. Hamoutal encontrou a paz, longe das turbulências e complicações do seu tempo. Sentem-se protegidos dos cavaleiros normandos, diz; muitos desses cavaleiros atravessam Narbona, mas raramente passam por este vale. Hamoutal nem quer pensar na possibilidade de, ao regressar a Narbona, ainda poder vir a ser reconhecida e levada por eles para longe do marido e dos filhos. Prudentemente, não menciona os cavaleiros que há pouco estiveram na aldeia.
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Uns anos antes, um brilhante clérigo da região de Champagne, Oto de Chantillon, foi eleito papa após uma série de estratagemas. Instalou-se no Palácio de Latrão, em Roma, e adotou o nome de Urbano II. Revelou ter bastante mais talento diplomático do que o seu antecessor, o imprudente e teimoso Gregório VII. Instaurou a Cúria Romana, um órgão que quebrou a tradição da infalibilidade papal, pelo que o poder e o prestígio de Roma saíram consideravelmente fortalecidos e consolidados. Urbano preocupou-se com o destino dos muitos peregrinos que prosseguiam em direção a leste, tendo como destino Jerusalém, que encontravam cada vez mais hostilidade e resistência pelo caminho. Sabia muito bem que a sua primeira tarefa consistia em restaurar o abalado prestígio da Igreja no Ocidente – e para tal lançou um olhar cobiçoso para o Oriente. Desde o Grande Cisma com Constantinopla, quarenta anos antes, a Igreja de Roma tivera de lutar para fazer valer a sua influência perante a Igreja Ortodoxa. Urbano estava decidido a realizar um ato grandioso, uma prova de poder e audácia. Por todo o lado, levantavam-se vozes a apelar à libertação de Jerusalém das mãos dos malditos sarracenos. Porque não transformar isto num instrumento para restaurar a glória e o prestígio da Igreja de Roma, depauperada como se encontrava da luta contra o imperador germânico? Como haveria ele de juntar todas essas forças divergentes? A agitação social aumentava, não apenas entre o povo, também a ordem dos cavaleiros necessitava de um escape para canalizar o contínuo agravamento das tensões, um propósito elevado. Ser-lhe-iam úteis os normandos, que tinham a Sicília em seu poder, numa eventual campanha para reconquistar o solo onde outrora se situara o Santo Sepulcro? Como iriam os cavaleiros cristãos atravessar o Mediterrâneo? O papa passou noites em claro, porém, pouco a pouco, ganhava forma na sua mente devota um projeto grandioso de campanha. Sairia em pregação, a fim de ganhar correligionários para o seu plano. Pensava em primeiro lugar na sua pátria, a França, onde a agitação era maior mas talvez também fosse maior a vontade de organizar uma campanha militar no Oriente. Durante a noite, deitava-se no chão das igrejas desertas, rezando e implorando discernimento, sentindo o frio a entrar-lhe coluna acima.
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De vez em quando, os peregrinos e aventureiros a caminho da Cidade Santa também passavam pelo vale tranquilo que David descreveu ao pai. Davam nas vistas por causa do tom exaltado, do fanatismo religioso, do proselitismo e do ódio aos sarracenos e judeus. David preferia manter essa gentalha fora do bairro judeu, mas o padre da Igreja de Simão Pedro, do outro lado de Moniou, gostava de deixá-los entrar e permanecer algum tempo na aldeia, pois traziam dinheiro e, por conseguinte, engrandeciam o prestígio do pároco nas redondezas. Assim, pouco depois das palavras descontraídas de David na carta ao pai, relações tensas ensombraram Moniou. Os judeus evitavam ir para além da Grande Porte, a porta central; os cristãos demonstravam agora menos contenção, no entanto era cada vez mais raro passarem o Portail Meunier, na parte sul, onde ficava o bairro judeu. Desse modo, estabeleceu-se uma linha divisória invisível na pequena comunidade, um reflexo do que estava a acontecer em muitas partes da Europa. Tudo apontava estarem a encaminhar-se para uma confrontação que ninguém parecia ter desejado. Geralmente, bastavam meia dúzia de ofensas e provocações – é verdade que às vezes as coisas se descontrolavam um pouco e os judeus eram quase sempre considerados culpados, paciência. Mas nas autoridades políticas não havia ninguém atento à violência que impercetivelmente deflagrava por todo o lado. Exceto aquele homem, o único que via o potencial dessa energia dispersa e a iria congregar: o novo Papa de Roma, o francês mundano e arguto que logo no segundo ano do seu pontificado fez a viagem planeada por França. Estudara em Reims, depois tornara-se monge num convento da ordem de Cluny, na Borgonha, onde subiu na hierarquia até chamar a atenção de Roma. Era ele o elo de ligação ideal entre a França, presentemente dilacerada, e a Santa Sé; também estabelecia um contrapeso tático em relação ao poder do Sacro Imperador Romano.
Em 1095, quando Urbano chegou à cidade de Clermont após uma longa viagem, estava preparado para a grandiosa convocação que havia muito tinha em mente, e com a qual esperava voltar a unificar o mundo cristão.
Para tal era preciso quebrar a relativa paz entre muçulmanos, cristãos e judeus no Oriente; as linhas de demarcação tinham de ser rigorosas e nítidas. O sepulcro de Cristo tinha de ser arrancado ao mundo islâmico para fazer parte integrante da Cristandade. Só havia uma solução: a reconquista de Jerusalém. Na sua mente, Urbano, um estratega brilhante, forjara um conceito novo e estranho aos seus contemporâneos: a «guerra santa».
Dirigiu-se a Clermont para rezar na cripta da Basílica de Notre-Dame-du-Port e no dia seguinte, em 27 de novembro de 1095, algures nos campos próximos da cidade, dá início à guerra santa com a famosa convocatória para a primeira cruzada.
O seu discurso apaixonado teve um efeito que nem ele próprio sonhara. Durante a sua exortação, alguns cavaleiros ecoavam o apelo repetido por Urbano: Deus o quer! Os prelados e os cavaleiros nas primeiras filas ajoelharam-se e gritavam em occitano: Deus lo volt! Pregadores bradavam, atiravam os braços ao ar, alguns homens choravam; cavalos empinavam-se no meio do tumulto e da confusão; cavaleiros houve que rasgaram as vestes em tiras com que fizeram uma grande cruz que ataram às costas – assim nasceu o uniforme característico dos cruzados. Como Urbano prometeu aos seguidores a obtenção do pleno perdão pelos inúmeros pecados, caso conseguissem derrotar os inimigos de Cristo, a multidão delirou em êxtase. Berravam, rezavam, gritavam palavras de ordem, cantavam. Libertou-se uma energia tão contagiante para as muitas almas errantes ali presentes que o próprio Urbano ficou estupefacto. Em princípio, a promessa de indulgência implicava que quem já tivesse perpetrado um homicídio pudesse ser absolvido da punição eterna no inferno cometendo outros assassínios durante a cruzada – desde que fossem ataques contra os inimigos da verdadeira fé. Não conhecemos o teor exato das palavras de Urbano, mas os resumos do discurso feitos por várias testemunhas mencionam que não tinham de esperar até estarem em Jerusalém para derrotar os inimigos do Senhor. Era uma clara alusão aos judeus; o antissemitismo de muitos pregadores, como Pedro, o Eremita, no norte, era assim sancionado e legitimado.
Sob o sistema feudal, o fosso entre pobres e ricos tornara-se cada vez maior; as frustrações e o rancor do povo em relação aos ricos, ao clero e à nobreza não paravam de crescer, mas os cavaleiros eram invencíveis, por conseguinte, o povo e os seus sacerdotes optaram por um alvo mais fácil em quem descarregar o seu mal-estar: os judeus, que haviam enriquecido com empréstimos, usuras e créditos, logo eles, os assassinos de Cristo. Numa tentativa reles e risível de imitar os cavaleiros com os seus elmos, os membros do povo, munidos de tachos e panelas velhos enfiados na cabeça, agrupavam-se em bandos, armados de manguais11, forquilhas e facas afiadas; iam calçados com tamancos ou tiras de couro atadas com nós desajeitados; seguiam as tropas organizadas, que gloriosamente se distinguiam pelas couraças cintilantes, o arnês colorido dos cavalos, as plumas e os elmos. Embebedavam-se, de noite fornicavam com as mulheres da companhia e de dia rezavam por uma indulgência plena: quanto mais inimigos do Salvador viessem a matar, mais purificada ficava a alma.
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Entre os devotos entusiasmados havia um homem habituado a pelejar, experiente e capaz, que conhecia Jerusalém: o mal-afamado aventureiro e comandante zarolho Raimundo IV, de Toulouse. Foi-lhe atribuída a função mais importante, o comando das tropas provençais, e exerceu-a juntamente com o bispo de Le Puy, que o escoltou como legado apostólico. Sem perder tempo, os dois líderes trataram da mobilização e do trabalho missionário dos guerreiros, a fim de os preparar para a grande expedição. Haviam de mostrar ao mundo como o cristianismo voltara a ser grandioso e resistente, aos sarracenos esperava-os uma «guerra santa». Ainda havia de demorar uns anos até os próprios muçulmanos, por raiva e indignação perante ataques bárbaros à afamada cidade de Antioquia, começarem a empregar um equivalente desta expressão: a palavra jihad. Originalmente significava zelo religioso, dedicação, mas a partir de então essa palavra passou a ser assombrada pelo eco das palavras proferidas por Urbano em Clermont.
Os exércitos são mobilizados e aguardam a primavera; nessa altura, os primeiros põem-se a caminho. O grande exército de Raimundo de Toulouse, composto por vinte e cinco mil homens, só partiria a seguir ao verão de 1096.
11 Utensílios para malhar cereais compostos de dois paus ligados por uma correia. [N. da R.]