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Durante três dias o mistral sopra forte e incessantemente sob um céu sem nuvens e impiedoso. A força do vento é tal que cães, ovelhas e cabras aguardam resignados, de olhos cerrados perante a luz incandescente e com o traseiro virado contra o vendaval, deitados ao abrigo de muros baixos, rochas e troncos. As azinheiras abanam; em redor dos cumes ásperos o vento assobia solitário e agudo, empurrando paredes e portadas. As lagartixas permanecem nos seus recantos, o gado escanzelado berra plangente. Ao longo das planícies provençais, as bandeiras e os estandartes ondulam ao vento. As pessoas arrastam-se umas às outras, concentram-se em hordas, armam-se o melhor que podem com o que têm à mão. Estão preparadas para a ação, uma vaga põe-se em marcha, sofre do desnorte provocado pelo vento. Atormentadas pelas dores de cabeça, ajoelham-se no chão duro. Gritam frases e cantam, alguns aldeões recolhem-se às suas casas. O queijo desfaz-se nas mãos tortas, o vinho sabe a azedo e as azeitonas têm um gosto intenso. Lá em cima, no penhasco, onde os corvos rodopiam grasnando alto, dois trabalhadores judeus são esmagados debaixo de uma das últimas grandes pedras que precisam de ser colocadas no acabamento da torre. Estatelam-se dos andaimes de madeira, partem o pescoço. Terá sido mesmo um acidente? Os seus corpos deformados rolam pelo monte de detritos até à zona cerrada dos arbustos, deixando um rasto de sangue. Carregam-se os corpos mutilados pela vereda íngreme até à aldeia e dá-se-lhes um enterro simples no cemitério judeu, situado ao lado do caminho do desfiladeiro. As pessoas rezam. Dizem mal. Praguejam de dentes cerrados.
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Estamos em outubro de 1096. Após anos a talhar, malhar, puxar, ordenar, empilhar e construir, a orgulhosa torre cor de areia no Monte Júpiter está quase concluída. De manhã, é a primeira a receber a luz do sol; e, ao entardecer, quem chega ao vale vindo de Saltus ou se encontra nas terras altas de Albion, ainda consegue ver ao crepúsculo aquela agulha pontiaguda iluminada pelos últimos raios de sol, como se fosse o dedo médio de Deus erguido sobre o ninho medieval. Da fortaleza em cima tem-se uma vista para a torre do outro lado do vale, a torre de Saint-Jean-de-Durefort. De noite, consegue transmitir-se um pedido de socorro por meio de sinais de fogo e espelhos de bronze, através dos cumes das montanhas de Marselha até aqui ou mais longe, em menos de uma hora. A região está protegida das invasões dos mouros.
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Porém, não são os mouros que vêm, mas um exército que emerge da própria população; não é um inimigo de fora, mas um que se esconde nos corações e que agora irrompe sem freio, alimentado ao longo dos anos por litígios, pequenos ajustes de contas, atos de vingança de vizinhos, provocações, acusações mútuas, caça às bruxas, histórias fantasiosas de infanticídios rituais praticados por judeus, canibalismo, alegados raptos de inocentes por rabinos, demonismo e rituais satânicos. Um rapaz de dez anos foi morto à paulada e encontrado à entrada do desfiladeiro. Os judeus são acusados; há um pequeno distúrbio, o rabino e o padre unem esforços para acalmar os aldeões. O ódio é como um músculo que se contrai no coração da comunidade, receia-se que a sua energia fora de controlo rebente e destrua tudo pelo caminho. Surge um guarda armado à entrada da sinagoga. Os cristãos acham um escândalo.
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Raimundo de Saint-Gilles, conde de Toulouse, era um homem respeitado. Segundo filho do conde Pons de Toulouse, nasceu em 1042. Na altura em que o papa Urbano II faz o seu discurso fatal em Clermont, Raimundo governa sobre a vasta província do sudeste francês. Todos os cronistas da época referem a sua excelência: fazia-se rodear de cavaleiros de elite, gozava de maior prestígio do que qualquer outro comandante militar. Numa incursão anterior a Jerusalém, perdera um olho em combate, o que tornara a sua autoridade e carisma ainda mais incontestáveis. Até cavaleiros de Limousin e do Languedoc se juntaram a ele, apesar de as tropas normandas os referirem depreciativamente como «aqueles provençais». No séquito de Raimundo não estava apenas o seu orientador espiritual, o bispo de Le Puy, Ademar de Monteil, mas também homens como Gaston, visconde de Béarn e senhor de Saragoça; Seigneur Pierre, visconde de Castillon; Guillaume V de Montpellier, um protegido de Raimundo que já estivera por duas vezes em Jerusalém; Pierre, seigneur de Avinhão; Girard de Roussillon; e muitos outros homens de grande prestígio e respeito, uma elite que constituía a frente das tropas que agora começa a pôr-se em marcha. A seguir vinha a soldadesca armada, depois os civis armados, seguidos pelos camponeses com carroças cheias de víveres, tralha e utensílios, e por fim crianças aos gritos, que acompanhavam as tropas durante um bom pedaço; também havia mulheres que queriam seguir os maridos, vendedores ambulantes e vivandeiros com as suas poções sedutoras e, sim, até alguns velhos rijos e desesperados iam a reboque da comitiva, a caminho da Terra Santa para libertar o solo sagrado do Salvador do domínio do Satanás sarraceno. Passaram dias até os últimos se porem finalmente em marcha, uma serpente humana abrindo caminho a partir do coração de Vaucluse, em direção a Itália.
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Após três dias de mistral, o vento cessa subitamente ao amanhecer do quarto dia. Tudo está imóvel. O Sol nasce, está um lindo dia. Nas planícies, nos vales, nas montanhas e nos desfiladeiros reina uma paz profunda. Uma leve bruma dissipa-se lentamente da paisagem bucólica. Este dia é uma dádiva de Deus, diz Raimundo a Ademar, partamos. Ajoelham-se e rezam sob o sol matinal. Os cavalos relincham e puxam pelas rédeas, por todo o lado há cavaleiros a ajoelhar-se, a benzer-se e a inclinar a cabeça. Elevam-se cânticos. Muitos desses homens rudes estão profundamente comovidos, as lágrimas correm-lhes pelas faces e põem as mãos em devoção. Os estandartes estão imóveis, como que enfeitiçados; borboletas tardias esvoaçam entre os carvalhos ressequidos. O mundo suspende a respiração.