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Não há muitas maneiras de uma mulher nas circunstâncias de Hamoutal, com uma criança de colo, atravessar os mais de duzentos quilómetros de Alexandria a Fostate. No século XI, havia os chamados canais sazonais: sempre que o Nilo continha muita água a jusante, formava-se um certo número de vias navegáveis temporárias. Uma dessas vias, o canal de Alexandria, tornava possível viajar de Alexandria a Fostate em menos de uma semana.
Porém, quando Hamoutal chega a Alexandria, não pode seguir viagem pelo canal, uma vez que ele só é navegável de agosto a outubro. Ela ouviu histórias sobre os perigos que corriam os navios vindos do mar aberto quando tentavam entrar no canal através da tumultuosa foz do afluente ocidental do Nilo, a foz do Rashid ou Roseta. A sedimentação, arrastada pela grande massa de água, forma bancos de areia em contínua movimentação, logo abaixo da linha de água. A água do mar, impulsionada pelos ventos do norte, forma ondas gigantescas que vão de encontro à corrente da água que desagua, de modo que muitos barcos ligeiros encalham, afundam-se ou são sugados pelas correntes de lama e se partem aos bocados.
No século X, o cronista árabe Ibne Haucal descreveu como era arriscado e perigoso viajar no delta setentrional. Também existem documentos oriundos da gueniza do Cairo que dão uma ideia dos riscos, os testemunhos não mentem: navegar no Nilo era uma aventura infernal. Mesmo no final do século XVII, os viajantes que se deslocavam para o Cairo preferiam ir por terra até aos oásis situados mais a sul, junto do Nilo. Em 1697, o cónego francês Antoine Morison ouve os turcos afirmarem que quem não teme a foz do Nilo, a Bogaz, não teme Deus. Dia e noite, marinheiros com cornetas, colocados nas turbulentas margens, avisam os navegadores arrojados das imprevisíveis correntes, e muitas embarcações chegam a aguardar duas semanas pelo amainar do vento norte, antes de se atreverem a navegar da foz para montante.
O Nilo é como uma flor-de-lótus, diziam os antigos; o caule é o vale meridional do Nilo; o delta, a norte, é a flor vistosa; e a planície de Faium é como um botão fechado que brota do grande caule. Heródoto considerava o Egito nada menos do que uma dádiva do Nilo; mas este lótus gigantesco, portador da vida do Egito, era também um organismo mortal, violento. Todos os navios em direção ao Cairo navegam contra a corrente, uma vez que as grandes massas de água vêm das partes altas da Etiópia e do Sudão do Sul para desaguar no Mediterrâneo. Uma vez passada essa foz agitada, quando o etésio – o vento norte constante, que às vezes se chega até a sentir no Cairo – sopra incessantemente, é fácil enfrentar a corrente impelido pelo vento de popa. Mas em dias calmos, quando o vento cai, as falucas – barcos à vela tradicionais e frequentemente instáveis – precisam de ser rebocadas. Os puxadores esforçam-se pelas margens dificilmente transitáveis; extenuados, metidos até à cintura dentro da água e da lama, mal conseguem fazer avançar a embarcação devido à forte corrente contrária. Quando a faluca encalha num banco de areia ou numa das inúmeras ilhotas cobertas de erva, nas moitas de papiro ou nas algas, têm de recorrer a varas para a desprender. Quando o khamsin sopra sobre o vale do Nilo, trazendo montes de areia vindos do Sara quente, a sul, nem vale a pena pensar em navegar rio acima. Uma só rajada de vento é capaz de virar alguns dos barcos mais pequenos, como os tradicionais germes ou jarmas, que ficam de quilha para o ar, e os passageiros afogam-se nas ondas ou debaixo deles. As condições complexas do Nilo levam a uma agitação nervosa constante nos portos. Discutem-se incessantemente os ventos, a estação do ano, as rotas alternativas de navegação, a situação na foz de Roseta, os tempos de espera previstos, o número de saqs – unidade de medida usada naquela época pelos árabes, hoje de comprimento incerto – que esperam viajar naquele dia. Mas Alexandria também dispõe de caravanas que se deslocam com rapidez, de modo que se pode optar por viajar por terra. Hamoutal prefere o certo ao incerto e decide viajar para sul por terra, até chegar à zona do rio com corrente mais calma. Após alguns dias de reflexão e de andar de um lado para o outro entre comerciantes e marinheiros, que tentam ininterruptamente enganá-la, opta, por questões de segurança, pelas caravanas de comércio judeu, hoje conhecidas pela rota da gueniza. Ao apresentar a carta de recomendação, ela recebe uma proteção especial e melhores condições de viagem. O mundo em que agora está imersa parece-lhe um sonho febril. A poeira levanta-se com o vento quente, ouvem-se gritos por todo o lado, o fedor é insuportável, a agitação não tem fim; ao longo das ruas poeirentas, ela vê os vendedores exporem a comida ao lado dos excrementos de camelo, peixes secos cobertos de moscas, tripas de vaca lado a lado com pratos com tâmaras. Pela primeira vez, monta um camelo ajoelhado com a criança nos braços, mas tomba logo para o outro lado e o filho rebola pela areia e chora. As pessoas em volta riem-se, um homem ajuda-a a endireitar-se e aponta para o fim da rua, ela não o compreende. Pega nela pelo braço e leva-a para junto da mulher e das filhas, que sorriem para Hamoutal e desatam a falar alto todas ao mesmo tempo. É conduzida para um espaço escuro ao fundo de uma casa antiga, indicam-lhe um quarto pequeno com tapetes e uma cama para descansar, trazem-lhe uma tigela com água e azeitonas. Na manhã seguinte é acordada, um homem está em frente da casa, dirige-se a ela em hebraico: pode juntar-se à caravana em direção a Fostate.
Dias de viagem pelo delta, calor e monotonia, o passo oscilante dos animais, o terrível ruído primitivo que fazem, o fedor dos excrementos, areia em cada poro da pele. Após alguns dias, alcançam os pequenos oásis no noroeste do delta do Nilo. Pelo caminho, ronda-os a ameaça de predadores e cobras; com uma dieta totalmente diferente daquela a que está habituada, passado pouco tempo fica enjoada e tem cólicas, diarreia, febre, sofre de desidratação, os olhos estão cheios de crostas. Vomita as tripas dias a fio, deitam-na num grande cesto de verga em cima de um camelo. Uma mulher gorda sempre sorridente aleita-lhe o filho, que está quieto e olha atordoado o céu eternamente imutável.
Passam Kafr El-Dauwar, depois Sidi Ghazi. Vento do deserto, calor, encandeamento; a criança também revela agora sinais de desidratação; Hamoutal é uma mulher só sem conhecimentos de árabe, exprimindo-se deficientemente em hebraico, que ainda aprendeu com David, tentando fazer-se entender sobretudo através de gestos. De vez em quando, faz aparecer uma moeda como por magia, cautelosa, para não dar a entender que ainda tem mais dinheiro com ela. Às vezes, encontra proteção, outras cortesia seguida de burla, chega a ser ameaçada, uma vez quase é estuprada. No entanto, graças à carta de recomendação de Obadiah, consegue ser geralmente tratada com respeito; continua a ser uma viajante privilegiada, apesar de toda a sua desgraça. Durante a noite, dorme abraçada ao filho, no meio das outras mulheres; a fogueira mantém os chacais à distância.
Por altura da atual Kafr El-Zayat, na província de Garbia, quando se encontram mais ou menos a metade do caminho, a caravana alcança o Nilo. Fazem uma paragem. Há peixe em abundância, as margens do rio são férteis, há fruta nos mercados, azeite, queijo de cabra, verduras, carne de borrego bem condimentada e delicioso pão árabe; os viajantes têm oportunidade de se restabelecer, dormem num dos muitos postos ao longo do rio. Durante um dia, ela pode descansar, lavar e cuidar do filho. Entretanto, já estão quase no pino do verão. O calor parece uma alucinação constante, o fedor das fezes dos camelos impregna tudo. Está cansada, exausta da viagem e completamente desorientada, não quer acompanhar a caravana. O calor torna-a mole, ardem-lhe os olhos e a pele com a areia e o suor. Por algum tempo, deixaram para trás a solidão da paisagem do deserto e, no mercado junto à margem, reina a animação, gritam em árabe, hebraico, grego e turco, tudo ao mesmo tempo. Aqui cruzam-se levantinos e bizantinos, turcos seljúcidas, etíopes e magrebinos.
Naquele dia, fica deitada à sombra de um toldo, atordoada, está esgotada devido à diarreia, o vento quente bate-lhe no rosto e os olhos estão repletos de areia. Chora de novo, é um choro atroz, os comerciantes que prometeram acompanhá-la até Fostate estão desconcertados à sua volta, incentivam-na a pegar no filho, a levantar-se e a montar o camelo que, um pouco mais à frente, está ajoelhado à sua espera. Ela diz que não com a cabeça, o seu choro é agreste, quase animal. Aperta o chador azul-escuro em redor da cabeça, soluça, deita-se em posição fetal. A criança também chora. Os homens deliberam por instantes, deixam-na recompor-se um pouco; passada meia hora, voltam a perguntar-lhe se ela não quer continuar com eles. Novamente, abana a cabeça dizendo que não, chora alto, vários homens rodeiam agora o toldo onde está deitada. Um deles aproxima-se, é Embriachi, o comerciante de Palermo que a observara antes, no barco. O rabino que a acompanharia já partiu. Embriachi ajoelha-se junto dela, explica-lhe que no dia seguinte vai passar uma balsa a caminho de Fostate, que o barco se chama Al-Iskander, que ele conhece o comandante e que ela pode ir de barco. Que mostre a carta, pois assim vai poder dormir durante a viagem e ganhar forças. No dia seguinte, ele estará à sua espera. Levanta o olhar, aturdida, compreende vagamente o que o homem diz, a cabeça cai-lhe para trás, parece ter adormecido. A caravana prepara-se para partir, carregam embrulhos e sacos, amarram a bagagem aos camelos de carga ajoelhados. O cortejo põe-se em movimento com grande alarido: o blaterar dos camelos, o berrar dos homens, o som agudo das mulheres é estridente e irreal. A barulheira afasta-se lentamente, já só restam vento e calor. A mulher esgotada ouve vagamente o murmúrio das copas das árvores na margem do Nilo e as vozes de miúdos a chapinhar na água pouco profunda, perto da moita de papiro. Adormece e sonha com uma tranquila aldeia montanhosa onde um dia apanhava tomilho, os filhos a brincarem na brisa fresca da primavera. Mas a imagem tem sangue, está coberta por uma névoa de escuridão abissal, algo em que ela se afunda e que a quer sufocar. Quase sem fôlego, olha em redor. Duas mulheres estão de cócoras a seu lado, uma delas tem o seu filho nos braços. Levanta-se de um salto, a mulher empurra-a para baixo a rir, depois levanta-se e vai com a criança até uma cabana pequena mais à frente. Hamoutal, cambaleando, vai atrás dela, a mulher não quer devolver-lhe a criança, abana a cabeça rindo. Hamoutal puxa-a pelo braço, acriança chora, puxam ambas pela criança, há gritos e empurrões. Hamoutal vê a dor e o pânico nos olhos do filho. Acaba por ceder e seguir as mulheres. Entram na cabana escura, um zumbir ensurdecedor de moscas e moscardos, um fedor a carne apodrecida. Quer o seu filho, mas a mulher recusa abanando a cabeça. Então vê como a segunda mulher pousa uma tigela com água turva na areia, no meio da cabana. Salpicam a criança, voltam a rir. Não param um segundo caladas, despem-lhe as roupas esfarrapadas, embalsam o corpinho da criança, veem que ainda não foi circuncidado, mais risinhos e embrulham-no num pano de algodão fino. Devolvem-lhe o filho. A cabeça de Hamoutal dobra-se para trás, cai como um peso morto, ela fica inconsciente na areia, a espumar pela boca. As mulheres deitam a criança sobre algumas folhas de palmeira e abanam a mulher desmaiada para a refrescar.
É noite quando acorda, tem as pálpebras coladas devido às crostas, os lábios gretados, a garganta inflamada, custa-lhe respirar. Tem febre alta, está emaciada pelo tifo, o coração bate aos saltos, sente-se alagada em suor. Está completamente escuro; por uma pequena abertura, vê o céu cintilar de uma forma quase irreal; nas margens lodosas dos charcos junto ao rio, os sapos fazem um barulho infernal. Sente-se como se não estivesse em lugar nenhum, parece-lhe estar alheada de tudo, flutuar num espaço intermédio, não ter corpo nem peso; está deitada num calor suave, anestesiante, um poço de chamas que queima e lhe entorpece o pensamento, um estado entre dormir e morrer, onde tristeza e euforia amena deixaram de se distinguir. Na realidade, ela está a sucumbir de tifo, mas não tem noção disso. Na manhã pálida, ao som rouco do gazear de uma garça, volta a acordar; as mulheres já estão numa azáfama, despem-na e esfregam-na com uma mistura de cheiro amargo a absinto, hena e óleo de peixe, fazem-na beber algo que mal consegue engolir. É embrulhada em panos, vomita a bebida, volta a adormecer. Assim passa mais de uma semana sem que tenha noção de tempo ou lugar. Oscila entre vida e sonho, desliza suavemente num túnel escuro e às vezes deixa de respirar, ao que as mulheres a abanam, tocam-lhe na face, borrifam-na com água. Ela flutua sobre o poço sem fundo da morte, sedutora, consoladora, sorvedora, irresistível; há muito que deixou tudo para trás, uma calma irreal brota dela; vê David num beco, passa por ela de mão dada com Yaakov, mas, subitamente, ele transformou-se num tronco ambulante sem cabeça; acorda, volta a vomitar, torna a adormecer.
Vai demorar um mês até que se volte a pôr de pé e a dar cautelosamente uns passos; ficou tão magra que parece um esqueleto vivo. Olhos inflamados, uma ferida cheia de larvas de moscas no braço esquerdo. As mulheres voltam a lavá-la enquanto conversam, tão agitadas e incompreensíveis como sempre. Ela deixa-as fazer tudo, nem sequer pergunta pelo filho, que gatinha lá fora ao sol, com os joelhinhos esfolados, atrás das outras crianças junto à margem. A sua recuperação é demorada porque retém pouca comida no estômago. Lentamente, começa a fazer perguntas a si mesma. Porque cuidam dela estas mulheres? Porque não há aqui nem um único homem? Só passados alguns dias percebe: as duas mulheres prostituem-se nos barcos que passam no Nilo, foram rejeitadas, são párias, vivem na sua cabana não muito longe do rio e sobrevivem primitivamente com o que conseguem apanhar. Deixam-nas em paz; estão acostumadas aos usos e códigos, não nasceram ontem. Quando Hamoutal está um pouco melhor, levam-na até à margem do rio, onde tomam banho. Uma hora mais tarde chega a próxima faluca, as mulheres oferecem Hamoutal a um dos barqueiros. Ela resiste, o barqueiro prega-lhe uma bofetada por resistir, fica logo inconsciente e cai como uma pedra. As mulheres voltam a carregá-la para a cabana onde, aos insultos, a abandonam meio morta. Quando acorda ao cair da noite, entra em pânico, o Sol está baixo, o calor é húmido e abafado, os insetos que enxameiam em torno dela são de enlouquecer. O filho não está, ouve as gargalhadas das mulheres junto à margem do rio. Onde está a carta de recomendação? O resto da bagagem? Na cabana não encontra qualquer vestígio do que trazia. Onde estão as poucas moedas de prata que tão bem escondera? Onde se encontra na realidade, onde, neste mundo desvairado, se encontra ela, para onde deve ir? Levanta-se de um pulo, tem o lábio rachado e uma crosta de sangue no queixo; ao passar a língua pelos lábios, estes começam de novo a sangrar. Engole o sangue, o coração por pouco não lhe salta do peito. Cambaleia para o exterior, cabras andam à volta das suas pernas. Onde estão as crianças? Ao longe, ouve-lhes as vozes. Arrasta-se até lá, repara que o filho está a dormir no meio de lixo e andrajos. Ovelhas sujas deambulam perto da moita de papiro. Pega na criança subnutrida e imunda, que não parece dar por nada. Um pouco à frente, está um abutre com uma cobra no bico. Abana-a de um lado para o outro, batendo-lhe com a cabeça na areia até ela deixar de se mexer e pender do bico, mole como um farrapo. Então ataca-a à bicada e, engasgando-se, devora a sua refeição repugnante. Onde andará o meu rapaz, Yaakov, neste momento? A pergunta grita dentro dela. Beija na testa a criança imóvel, deita-a com cuidado em cima de alguns panos na cabana, procura febrilmente as suas coisas, vira do avesso tudo o que vê, só encontra a pequena bolsa com o pergaminho enrolado, a carta de recomendação e os tefelin de David; as moedas de prata desapareceram. Enfia a bolsa debaixo de um farrapo de pano, que ata ao redor da cintura. Tem vertigens, por pouco não cai para a frente, bate com o ombro contra a parede de argila, volta a pegar na criança, embrulha-a nos panos sujos que encontra e, cambaleante, vai até à margem do rio. Sem dizer palavra, mostra a criança emaciada com a cabeça envolta de moscas a uns homens que estão a beber à beira-rio; murmura qualquer coisa num hebraico precário, um dos homens grita na direção de uma barcaça atracada. Aparece outro homem. Pergunta-lhe em aramaico o que deseja. Ela cai de joelhos, soluça, tira a carta, mostra-a ao homem. Este desenrola o pergaminho, examina o manuscrito, olha desconfiado e inquisitivo para a mulher, diz que sim com a cabeça em direção à galé. Ela levanta-se, carrega com cuidado o filho anestesiado, entra a bordo aos tropeços, indicam-lhe um lugar no banco onde ela se deita, ofegante. Ao escurecer, uma das mulheres passa por ali; repara nela, começa a falar sem parar, em voz alta e zangada, prega-lhe uma cotovelada. Eis que Embriachi surge subitamente do nada e, com um gesto rude, empurra a mulher aos gritos borda fora, depois faz um sinal a Hamoutal para se levantar. Como veio Embriachi aqui parar? Segue-o, obediente, e este indica-lhe a sua pequena cabina, ela deita-se na cama de madeira tapada com trapos. Cai novamente num sono inconsciente; ao acordar, umas horas mais tarde, sente-o mexer-se em cima dela. Levantou-lhe as saias, já está dentro dela, ela nem se assusta. Um calor apático espalha-se pelo corpo, tristeza e calor, algo que não consegue controlar. Ele cheira a haxixe e peixe, ela não se mexe mas sente-se húmida e com desejo, e deixa-o fazer o que quer. Após alguns minutos, ele vem-se com um grunhido, sente-lhe a mão áspera sobre os seios, a sua cara com a barba por fazer raspa-lhe o pescoço. Sai de cima dela e adormece logo. Quando, ao raiar da manhã, o barco começa lentamente a movimentar-se, agarra-se com força ao homem, em silêncio, os olhos fechados, surpreende-se a si própria por lhe acariciar o ombro. Os barqueiros espetam bem fundas as varas na lama junto à margem, a velha vela baixa desenrola-se. A faluca veleja com vento de feição, rio acima, na água amarela acastanhada, procura as correntes mais fracas, os remadores esforçam-se ao ritmo do tambor. Ela está a caminho de Fostate, o Velho Cairo, cem quilómetros mais adiante. O sol já queima. No camarote sufocante paira o cheiro a lama e peixe, cordame e madeira. Vapores borbulham da água, o mundo está de novo em movimento. O comerciante ressona. O menino, embrulhado em trapos e farrapos, já não respira.