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A comunidade judaica de Fostate de outrora tinha uma hierarquia muito mais rígida do que a progressista e iluminada comunidade de Narbona. Os costumes e as relações sociais eram mais conservadores, a posição da mulher menos emancipada. Hamoutal tem de adaptar-se ao novo padrão de vida; vive na maior parte do tempo nos aposentos para as mulheres e, por vezes, não chega a ver o seu futuro marido durante dias. A relação também é bastante menos romântica do que a que teve com o jovem apaixonado que a levou sequestrada para a Provença. É frequente só ver Shmuel à refeição da noite, que decorre quase toda em silêncio. Ele trata-a com todo o respeito, mas desde o seu compromisso oficial tornou-se mais reservado. Tudo está tão próximo e é ao mesmo tempo inatingível. O sino da igreja copta repica a meio da oração judaica da noite; ao longe, ouve-se o Allahu Akbar do muezim.

Nos dias seguintes, aconselha-se com o alfaiate de Fostate para a compra do xaile de oração prescrito que ele executará para o seu futuro marido. Durante a última semana antes da cerimónia, como previsto, não têm nenhum contacto um com o outro. Os seus cabelos são pintados de escuro com hena. Na véspera da boda, Hamoutal desce para o banho ritual. Debaixo de água, vê algo horrível e disforme, uma coisa pequena sangrando, presa nas mandíbulas de um monstro. Emerge, sai do banho, aceita as toalhas que as mulheres lhe entregam rindo da sua pele dourada de galinha.

A ketubá, ou contrato matrimonial, tem de percorrer um longo caminho. É planeado e redigido pelo rabino, depois submetido ao rayis, o líder judeu. Posteriormente, segue para a administração islâmica, o almocadém, e após a sua aprovação é apresentado ao líder supremo dos judeus egípcios, o naguid, e só depois reenviado para a Sinagoga de Ben-Ezra. Depois do cumprimento de todas as formalidades, casam-se; ela torna-se novamente a esposa de um judeu eminente. Assinam a ketubá. No final, esta é solenemente entregue a Hamoutal para que a guarde. Shmuel cobre o rosto com o véu. A hatuná decorre de modo muito mais exótico e os convidados são muito mais diversificados do que no seu primeiro casamento; à proclamação assistem alguns muçulmanos ilustres e cristãos coptas. Tocam música exótica depois de terem entrado na hupá. Shmuel pisa o copo, desta vez sem pano. Estilhaços de vidro brilham e estalam debaixo dos seus pés. Os tocadores de tambor muçulmanos presentes na festa provocam nela um estado de estranha excitação. Os convidados oferecem prendas aos noivos; Hamoutal é cumprimentada e acolhida com reservada cortesia. Para as normas da época, não era considerada uma mulher nova, mas todos estão de acordo em que ela se ajusta bem à solenidade do seu novo marido.

O contrato de casamento elegantemente decorado, um papiro feito de junco comprimido oriundo das margens do Nilo, terá sido atirado meio século mais tarde para a escura gueniza, juntamente com inúmeros outros documentos, e provavelmente terá sido roído pelos ratos ao longo dos tempos. Ou talvez tenha vindo à luz do dia pelas mãos dos investigadores de Cambridge ou de algum outro lugar do mundo, mas sem que os nomes fossem já legíveis.

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Aos poucos, ela vai conhecendo a elite da comunidade, apesar de nunca sair sem estar acompanhada. Mas na companhia de outras mulheres também pode movimentar-se com mais liberdade. Recebe instrução da sogra, que faz de mu’allima ou professora. Lado a lado com esta mulher corpulenta e vivaz, abre caminho por entre o rebuliço infernal dos bazares árabes, aprende a lidar com os costumes e expressões dos feirantes, habitua-se a regatear os preços e a qualidade; fica assim com uma ideia da lida doméstica da mulher judia egípcia de um certo estrato social. Dispõe de uma dezena de criados domésticos: pessoas silenciosas que, durante semanas, se mostram acanhadas perante esta ave rara. Lentamente, vai ganhando confiança e pondo mãos à obra. Com a cozinheira, aprende a assar nas brasas quentes postas da gigante perca do Nilo, a fazer conservas de tâmaras e figos, a salgar azeitonas e limões. Olha os pássaros, o céu de um tom cristalino que causa dor ao embater nos seus olhos, desfruta do cheiro das fogueiras nos becos, do aroma da flor de laranjeira quando a chuva se abate sobre a cidade e o grande Nilo se transforma num lago sussurrante, do balanço dos oleandros no pátio interior. Vai com as outras mulheres ao lagar de azeite, uma construção alta e sombria onde as mós rodam, rangendo, movidas por um burro que cegaram para o efeito. O azeite corre através de um bico para bilhas velhas, o aroma é agridoce, a pele reluzente dos rapazes seminus reflete um tom verde dourado. Aprende a fazer ful. Esmaga favas cozidas no azeite, adiciona cominhos, lima e sementes de sésamo. Mexe e torna a mexer, e às escondidas ainda chora quando se lembra dos filhos que perdeu. O tempo desvanece nas horas da sesta ociosa, numa ilusória dobra quente no tempo, onde as memórias vivem, um langor quente que a torna mole e sonhadora, até que volta a despertar com o apelo cantado do muezim perto da velha muralha da cidade. Muitos judeus egípcios são fluentes em árabe; após uns meses, ela já consegue entender a maioria das piadas no bazar. O seu hebraico deficiente com vestígios de espanhol sefardita adquire agora matizes árabes. Só quando se assusta ou sonha é que algo nórdico emerge, a língua de uma outra vida, áspera e cinzenta e fria, que de vez em quando a deixa com uma saudade insuportável. Por altura da chegada do inverno egípcio, encontra-se de novo grávida.

Um dia está com Shmuel no porto de Fostate, perto da antiga fortaleza da Babilónia. Enquanto observam a azáfama à volta da ponte suspensa, ela, num impulso, fala-lhe do porto de Rouen. Explica-lhe o que é um snekke, confessa que o pai descende de um dos viquingues que dois séculos antes invadiram o Norte da Europa. Consternado, o homem apercebe-se de que a sua nova mulher tem ligações aos odiosos e cruéis normandos que, como possessos, arruínam as cidades do Oriente. Antes, ela só lhe contara ser de origem flamenga. O facto de ter sido a nora do rabino-mor de Narbona era a garantia de que o casamento com ela seria honrado. Agora sente-se confuso, até levemente traído. De dia para dia, a ideia consome-o. A partir desse momento olha-a com desconfiança.

Umas semanas mais tarde, ela é informada por refugiados judeus dos horrores do pogrom em Rouen e conta ao marido. Pouco a pouco, o homem percebe quão difícil é lidar com uma prosélita – algo de que deveria ter tido conhecimento quando esta mulher desconhecida tanto o atraiu. Apesar disso, a relação sobrevive, em parte porque é apoiada pela família e por ser tão reservada, ao contrário do inesquecível amor fou da sua juventude.

Ela é resiliente; o corpo adaptou-se ao clima, às comidas, à cultura. Faz tudo para voltar a ganhar a confiança do marido. Teve oportunidade de se lhe juntar e falar com o naguid, de assistir a conversas com outros eruditos; acompanhada por Shmuel, chegaram a receber em sua casa teólogos islâmicos e altos dignitários. Aprende tudo sobre as emaranhadas e complexas relações sociais e políticas de Fostate. Assim, também fica a saber muito mais sobre a grande perturbação que grassa no Oriente, provocada por pessoas oriundas do mesmo povo donde provém. Judeus discutem com muçulmanos; peregrinos cristãos de passagem para Jerusalém são avisados do perigo que lá reina; os cruzados dão mostras de se mobilizarem de novo, rapidamente, e de estarem decididos a invadir Jerusalém. Exércitos atravessam a Europa, cruzam o Mediterrâneo, chegam em grandes navios à costa do Líbano. Atacam as populações costeiras. Por todo o lado, comunidades muçulmanas lutam contra os agressores cristãos, mas muitas vezes não conseguem impedir as carnificinas desorganizadas, as violações das mulheres, a destruição da sua comunidade. Ocasionalmente, obtêm uma vitória breve sobre os cavaleiros de fortes armaduras: montados nos seus cavalos pequenos e ágeis, aprendem a acertar na viseira dos elmos, atingindo os olhos dos cavaleiros, e atiram às pernas e aos olhos dos pesadões cavalos dos nórdicos. A inquietação atinge as regiões orientais do deserto egípcio. As tensões aumentam por todo o lado. Ela ouve falar da instabilidade em Espanha, parece que muitos refugiados vão em direção a norte, para Narbona, porque a reconquista também não poupa os judeus – para muitos cristãos, eles são apenas os cúmplices dos odiados sarracenos. O buliçoso mundo de Fostate, onde tudo e todos chegam com histórias, dá-lhe a sensação de que as linhas da sua vida convergem e se unem. Ao mesmo tempo, tem a noção de que nunca mais, em lugar algum, estará verdadeiramente segura, como se vivesse numa jangada à deriva encaminhando-se para uma catarata.

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Ela dá à luz o seu quarto filho em pleno verão, o parto decorre sem problemas. É um rapaz, a quem ela quer novamente dar o nome de Yaakov. O marido não concorda, a criança chamar-se-á Avram. O ritual da circuncisão tem lugar na sinagoga. Mais tarde, ouve contar que a criança não chorou, nem deu um ai, que estava com ar bem-disposto. Naquela noite, uma víbora rasteja para dentro da casa por uma porta aberta, aninha-se na alcofa de verga onde o recém-nascido dorme. A parteira entra, repara na cobra, dá um grito. A cobra desliza para debaixo das faixas em que a criança está embrulhada. Em pânico, a parteira arranca o recém-nascido da alcofa e, como um relâmpago, a cobra morde-a no pulso e não larga, contorcendo-se com olhos brilhantes e a boca toda aberta, pendurada no braço da mulher aos gritos. O veneno mortal penetra profundamente na artéria radial. Outras mulheres entram, uma tira a criança dos braços da parteira, outra bate na cobra com um pau até que lhe largue o pulso; aos saltos, com insistência, algumas mulheres pisoteiam a cabeça da víbora que se contorce. A parteira vomita, cai e pouco depois perde a consciência. Passado pouco tempo, o corpo fica rijo, a língua negra, a garganta incha, os olhos revirados param de mover-se. As mulheres em redor veem a parteira asfixiar num último estertor, com uma espuma ensanguentada a sair pela boca. Quando, no quarto ao lado, Hamoutal acorda sobressaltada com o barulho e entra de rompante no quarto da criança, a parteira já está a ser retirada ao som de lamúrias. Tira o filho das mãos de uma das mulheres e pensa: Meu Deus, sejas que Deus fores, porque continuas a perseguir-me?

Cai de joelhos, embala o bebé e aperta-o contra si, desesperada. Por um instante, a criança faz beicinho, procura-lhe o peito. Hamoutal sente o calor, respira de alívio, deixa-se levar até à cama. A criança mama, o cheiro do leite e a sensação intensa da boquinha a sugar acalmam-na, a língua pequena massaja-lhe o mamilo. A mãe afaga-lhe a cabeça com a moleirinha ainda por fechar.

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Passa-se meio ano em relativa paz. A prosperidade e a civilidade fazem-lhe bem. Manda fazer roupas bonitas, decora luxuosamente os quartos dela e do filho. Raras vezes vê o marido; um dia, em finais de agosto, ele parte para Alexandria por causa de um assunto de família sobre o qual ela pouco sabe.

Passadas algumas semanas, está de volta. Aproxima-se dela com um olhar estranho; toma-a nos braços e diz: Senta-te, Hamoutal. Tenho uma coisa para te contar.

Ela sente o coração a bater loucamente na garganta, toma-a uma vertigem, não sabe bem o que esperar, mas tem a sensação de que vai perder a cabeça.

Hamoutal, diz ele, Yaakov e Justa estão vivos. Estão com os teus pais em Rouen.

Ela fita-o com o olhar transtornado, abre a boca, não sai uma palavra, agarra-lhe no braço, incrédula, diz que não com a cabeça.