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Não podem adiar a viagem por muito tempo, o outono está a chegar. Em breve as ligações marítimas costeiras serão suspensas, para só serem retomadas na primavera. Uns dias depois, partem numa pequena carroça. Hamoutal volta a fazer aquilo que tinha prometido não fazer: no último momento, arranca o pequeno Avram da sua caminha, pega nele e deita-o numa alcofa na pequena carroça, escondendo-o entre os sacos e as bolsas. Os dois homens só descobrem o logro após algumas horas de viagem, porque a criança começou a chorar. O caminho é perigoso, percebe agora porque da outra vez, quando ela fugiu com David, o sogro não a mandou ir pelo Caminho de Santiago em direção ao sul, mas por mar em direção a nordeste. Por todo o lado, encontram grupos de jovens entusiasmados que querem ir para a guerra, camponeses vagueando depois de lhes terem incendiado a cabana, crianças errantes. Ao longo do caminho, muçulmanos em fuga avisam-nos dos fanáticos religiosos que entretanto também procuram tirar a vida aos judeus. De vez em quando, aparecem quadrilhas de assaltantes que se aproveitam da confusão para burlar viajantes ingénuos. As pequenas comunidades judaicas por onde passam estão assustadas e receosas. Ninguém sabe o que trará o dia seguinte. De vez em quando, são mandados parar e interrogados por soldados desconfiados e sentinelas.
Além disso, viajar é muito mais difícil com uma criança pequena. Quando Yom Tov descobriu o logro, ameaçou voltar para trás, mas o velho Obadiah acalmou-o: não se tira o filho a uma mãe, em Narbona haviam de compreender isso. Além de que não podiam perder tempo. Portanto, eles prosseguem com Hamoutal e Avram na carroça trepidante, por caminhos poeirentos e acidentados e sob bátegas de chuva.
Após três semanas duríssimas, uns cem quilómetros antes de Burgos, na pequena cidade de Nájera, decidem descansar uns dias, antes de prosseguir em direção à costa noroeste. Os homens procuram uma hospedaria, arranjam alojamento para duas noites e levam Hamoutal e o filho para um dos quartos. Aí, ela cuida de Avram, afaga-o, embala-o e trata-o por um nome normando, o nome de um dos seus irmãos. Arvid, diz, Arvid. A criança ri e ela faz-lhe cócegas até rebolar de prazer, Arvid, como lhe sabe bem dizê-lo, Arvid, sou a tua mãe, Vigdis. Ao serão, enquanto jantam juntos, o primo de Todros e Joshua Obadiah ouvem-na tratar a criança por Arvid. Não compreendem, riem-se com ela, confusos e um pouco acanhados. Eu sou Vigdis, diz, a mãe de Arvid, o normando, e desata às gargalhadas. Na mesa ao lado, um homem dá uma cotovelada ao companheiro e aponta para ela.
Ouviste isso?, murmura o cavaleiro. E observa a mulher com mais atenção. Não vais acreditar, diz, que eu morra já se esta não é a filha fugitiva do velho Gudbrandr, de Rouen. Não ouviste? Acabou de dizer que era Vigdis.
O outro olha, algo espantado. Será que aquela mulher, procurada há anos, estava simplesmente ali ao lado, sentada à mesa? Observa-a com ar cético.
O primeiro prossegue: Não tenho dúvidas. Ela é parecida com o irmão, que encontrámos ainda há um mês a caminho da Sicília. Os mesmos olhos claros, aquele nariz estreito e a testa alta. Arvid. Está a dizer o seu nome, não estás a ouvir?
Levanta-se e vai ter com o comandante da guarnição que está acampada na cidade, comunicando-lhe o que ouviu. O comandante lembra-se da recompensa considerável para quem descobrisse o paradeiro da filha do burguês rico; para tal, era preciso enviar um mensageiro mal tivesse sido avistada e entregá-la depois ao pai, em Rouen. Para poder receber o prémio, era necessário levá-la ao pai sã e salva.
Enquanto Hamoutal adormece com o filho a rir e a cantarolar, trauteando «Arvid de Vigdis, tu és Arvid de Vigdis», uma dupla sentinela é colocada em frente da porta da estalagem. Um mensageiro é enviado a Rouen via Bordéus. Um outro parte ao raiar da aurora em direção ao porto de San Sebastián, onde chega passados dois dias e ordena ao primeiro barco com destino a Rouen que aguarde pelo embarque da hóspede especial e inesperada: a filha de Gudbrandr, Vigdis Adelaïs de seu nome, bem como dos dois emissários que a acompanharão.
*
Nessa manhã, Hamoutal sente-se repousada mas muito tensa. Está contente por finalmente ir para Rouen, por rever os pais, explicar tudo, afinal de contas traz com ela Arvid, a criança viquingue, esqueceu-se de quem é o pai do menino, mas só pensar nisso já lhe provoca um ataque de riso. Arvid, filho de Ninguém!, exclama, desatando a rir.
As sentinelas recebem sinal para entrar. Na sala de refeições, dois deles pegam na mulher pelos braços, um outro tira-lhe a criança. Yom Tov e Joshua Obadiah tentam intervir. São bruscamente afastados, o velho rabino cai para trás e magoa as costas.
Cães judeus, sibila um dos cavaleiros enquanto desembainha a espada, Levanta mais um dedo e já eras. Hamoutal berra: Eu sou Vigdis Hamoutal, sou Vigdis Hamoutal Adelaïs Gudbrandr, deixa-me em paz, dá-me o meu filho, é Avrid Todros, é meu filho, é do meu pai, foi ele quem o fez. Cospe, berra, esbraceja e quer soltar-se. Dá-se um tumulto na sala; levantam-se vários homens ao verem a mulher, que bate e pontapeia e cospe furiosamente à sua volta.
Foi o meu pai que o gerou!, grita e ri, possessa.
Enquanto se debate e contorce como um gato metido num saco, é arrastada para fora.
Meu filho, grita, Arvid de Gudbrandr, foi ele que me fodeu, dormiu comigo, haha, fodida pelo demónio.
Os homens agarram-na com mais força.
Canalhas, todos fodidos pelo demónio!
Ela abana a cabeça, os olhos rolam, espuma pela boca. Eis que vem o padre. Horrorizado, ouve o que a mulher acabou de gritar. Faz três vezes o sinal da cruz, murmura com os olhos arregalados: Vade retro Satana.
A mulher grita: Hahaha, fodidos por Satanás.
Bate violentamente com a cabeça, os caracóis pardacentos soltam-se e balançam em redor da cara.
O padre aproxima-se dos homens, pede para amordaçarem a mulher. O que eles fazem, à bruta.
Meu filho! Arvid, filho de Shmuel, grita Hamoutal, tem cuidado com o crocodilo demoníaco! Ele vai morder-te, ai ai ai, filho, não, não vás ao fundo!
Ela agita, puxa e morde como um cão raivoso. Um dos cavaleiros dá-lhe um safanão que a faz cair, fica com o nariz a sangrar.
Toma, bruxa, diz, vamos expulsar de ti o demónio.
O padre persigna-se, Yom Tov grita que têm de a soltar, que se trata de uma mulher judia e não cabe aos cristãos julgá-la.
Isso é que ela não é, rosna o comandante, ameaçador, é uma maldita mulher cristã, chama-se Vigdis Adelaïs, conheço pessoalmente Gudbrandr, o seu pai. Não tendes nada a ver com isto, desaparecei ou pagareis com a vida, seus cães imundos. Ide para o diabo que vos carregue!
Entretanto, atordoada, Hamoutal tenta levantar-se, repara então que lhe amarraram os pés. Cai ao comprido, um dos cavaleiros volta a bater-lhe, puta do demónio, grita. Com a biqueira de ferro do sapato, desata a pontapeá-la nos rins, ela perde a consciência. Sangue jorra-lhe do nariz. A cena juntou uma multidão excitada de espectadores. Enquanto os soldados deliberam sobre a forma mais rápida de meter a mulher numa carroça para a transportar para a costa, o padre grita que ela está possuída pelo demónio e que não podem levá-la porque o demónio há de afundar o barco.
Uma onda de horror perpassa a crescente multidão.
Prá fogueira!, ouve-se.
De imediato, a palavra de ordem ecoa.
Prá fogueira com a bruxa!
Hamoutal recupera vagamente a consciência; o comandante aproxima-se dela.
És tu Vigdis Adelaïs, filha de Gudbrandr, o normando? Podes confirmá-lo?
Ela cospe-lhe.
Sou Hamoutal, filha do demónio, sibila, tira as tuas sujas patas cristãs de cima de mim.
Possessa, exclama agora o padre, possessa por Belzebu! In nomine Patris et Filii et Spiritus Sancti! Tem de ser queimada sem demora, antes que o demónio lhe pregue mais partidas a ela e a nós.
Prá fogueira, clama a multidão, queimem-na, queimem-na!
O comandante vê a sua recompensa a esfumar-se se a mulher de alta linhagem for linchada aqui. Hesita, tenta convencer o sacerdote, mas é tarde demais. A turba leva com ela a mulher, rasgam-lhe as roupas do corpo. Seminua e coberta de sangue, é arrastada pela areia até aos penhascos vermelhos e altos onde os homens já começaram a recolher lenha. Hamoutal, agora completamente amarrada e semi-inconsciente, está apoiada contra o rochedo. O Sol levanta-se rapidamente no céu. O sangue do seu rosto, misturado com poeira, é agora preto e pegajoso e corre-lhe sobre o peito nu.
Sinal de Satanás, grita um dos homens, há pez a escorrer-lhe do nariz! O diabo está dentro dela e expulsa pez do seu corpo demoníaco! Não lhe toquem!
Hamoutal revira os olhos, solta um grunhido por causa das dores nos rins.
O nervosismo aumenta na multidão; alguém atira uma pedra, que a atinge em cheio na testa. A cabeça bate com força contra o rochedo trás. Ela cai para o lado.
Alguns homens acorrem com braçadas de madeira. A pira cresce depressa. Um tronco mais grosso é afiado como uma estaca, erguido, cravado no chão e depois preso. As pilhas de lenha atingem agora quase um metro de altura. O padre aproxima-se dela e pergunta uma última vez: És Vigdis Adelaïs de Rouen, filha de Gudbrandr, o normando?
Eu sou Hamoutal Todros, grita, Hamoutal Todros de Fostate! Sou judia, sou judia, o diabo que vos carregue!
A multidão recua e retém a respiração.
Judia e do diabo, judia e possessa pelo demónio, soa de boca em boca e todos arregalam os olhos. Alguns fazem o sinal da cruz e começam a rezar; não tarda que a multidão reze uma prece em conjunto. Caem de joelhos e rogam o auxílio de Deus, enquanto a mulher delira ao sol escaldante.
Entoam um cântico devoto. De um momento para o outro, o ambiente torna-se solene.
Um homem aproxima-se com um archote aceso. Um segundo amarra um lenço à volta do pescoço de Hamoutal, onde enfia galhos finos para ela arder mais depressa. Mexem e remexem nela. Semi-inconsciente, suspensa entre os dois homens, é arrastada para a pira. Ferida e ensanguentada, com aquele colar de galhos à frente da cara, parece-se com uma bruxa, um demónio, um monstro do inferno.
De repente, ela ergue a cabeça e, contorcendo-se, tenta resistir.
Onde está Arvid de Hamoutal?, grita, onde está Arvid, a criança judia de Fostate?
A turba aterrorizada não para de se benzer. Hamoutal solta gritos ásperos; a multidão retrocede. O demónio está a torturá-la, diz o sacerdote, não espereis mais, antes que ele se solte.
Esta ideia deixa a multidão em pânico.
Hamoutal é empurrada para cima da pira, os braços postos em volta do tronco e amarrados. O homem com a tocha aproxima-se ainda mais.
Neste momento, Yom Tov irrompe da multidão.
Para, grita, parem com isto, estão a cometer um erro! Sou conhecido como Yom Tov, sou de Narbona e responsável pela segurança desta mulher, foi o venerável rabino Todros que me incumbiu dessa missão.
É afastado à força.
Então, o velho Joshua Obadiah chega-se à frente, tremendo. Eleva as mãos num gesto suplicante.
Minha boa gente, começa, escutai-me um momento, antes de queimarem esta mulher. Tenho de contar-vos uma história.
Levanta-se um burburinho, mas o comandante da guarnição pede calma.
O velho rabino fala-lhes da prosélita Vigdis e seu amado, que foi morto num pogrom.
Foi muito bem feito!, exclama alguém na multidão. Queimai todos os cães judeus!
Mas a figura frágil do velho Obadiah a tremer faz com que as pessoas ainda lhe deem a palavra por mais algum tempo. Ele aproveita essa pequena oportunidade. Enquanto as achas já começaram a arder, diz: Ofereço a quantia de trinta e cinco denários para resgatar esta mulher, e para poder acompanhá-la a Rouen. É uma quantia modesta, admito, trinta e cinco denários para a vossa comunidade. Mas não temos mais. Esta mulher está doente da cabeça por causa da dor e da desgraça que sofreu, não sabe o que diz, não está possessa, acreditai em mim, entregai-ma, vou levá-la para casa. Olha em redor.
O medo da mulher possessa pelo demónio é algo que deixa a assistência profundamente apavorada, até o comandante – mas também não é parvo de todo.
Qual é a tua ideia, velho judeu matreiro?, diz, também já estás de olho no meu prémio?
Volta a sacar da espada.
Assinarei uma declaração, diz Obadiah, que podeis entregar ao pai da mulher em Rouen. Como sou judeu, o demónio não tem poder sobre mim. Confiai-me a mulher, acompanhá-la-ei no navio e levá-la-ei a casa do pai. Conheço Rouen dos meus tempos de juventude, frequentei lá a antiga escola judaica – quem conhecesse bem Rouen sabia onde ficava –, até sei o caminho para a rua onde o pai dela vive. Podeis confiar em mim.
O comandante percebe que esta é a única hipótese de poder receber a recompensa.
Ordena aos soldados que apaguem imediatamente o fogo e desamarrem a mulher do tronco. Hamoutal, pendurada inerte como uma boneca de trapos, não faz ideia do que lhe está a acontecer. Yom Tov e Obadiah afastam-na cuidadosamente da pira. Ela tosse, engole e pisca os olhos. A cabeça tomba para trás. Obadiah pede água para a mulher resgatada e borrifa-lhe o rosto. Apoiada nos dois homens, é então levada para a hospedaria, onde, após insistência do comandante, recupera o filho. Parece ainda não se ter apercebido do que aconteceu, está como que em transe. Fala sozinha consigo mesma, balbucia coisas sem nexo à criança, arqueja e tosse. A mão afaga mecanicamente a cabecinha do filho.
A Yom Tov diz: David, meu amor, beija-me.
Faz um biquinho com os lábios, espetáculo insuportável, aquela boca inchada com o sangue coagulado. Obadiah põe uma capa a tapar-lhe os ombros sujos e nus. Os dois levam-na para o quarto no andar de cima e mandam trazer água para que ela se possa lavar.
Na manhã seguinte, Obadiah irá levá-la até à costa, que fica a uns dias de viagem, no que será acompanhado por Yom Tov. Terão como escolta alguns soldados e o comandante, que na sua ausência será substituído aqui em Nájera, cedendo o comando.