Faltava-me fazer mais uma viagem, uma viagem que Hamoutal nunca fizera e com a qual ela, eterna fugitiva, nem podia sequer sonhar: ir no encalço da carta de recomendação, a carta que o rabino Obadiah escreveu para ela em Monieux. Tinha de ir a Cambridge consultar a coleção de manuscritos que Solomon Schlechter trouxera do Cairo, para ver com os meus próprios olhos o objeto que ela carregara encostado ao corpo – e se possível tocar-lhe por um instante.

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No dia em que chego à convidativa cidade universitária, o calor é intenso. Os jardins interiores das circunspectas e antigas instituições universitárias exalam um extasiante aroma de flores. Nos peitoris das janelas, os estudantes estão debruçados sobre Maynard Keynes, S. Tomás de Aquino, Milton ou Wittgenstein. Nas margens das lagoas, beldades pré-rafaelitas realçam com marcadores fluorescentes a sebenta de Antropologia. Nos punts, pequenos barcos que se empurram com uma vara pela água pouco profunda do rio Cam, os guias divertem-se a imitar Veneza. Esta é a vida das velhas elites, charmosas e um pouco alheadas do mundo; o centro das velhas classes civilizadas que, obstinadamente, tentam fazer de conta que metade do mundo não está a arder. Raparigas da idade que Hamoutal tinha quando fugiu de Rouen, com elegantes earphones brancos nos cabelos louros. Escutam ambient loops de Hildegarda de Bingen, que lhes foram oferecidos por torrents anónimos.

Atravesso as avenidas que cheiram a relva cortada, chego junto à velha torre da Biblioteca da Universidade, avanço pela escadaria, levanto o meu cartão de leitor no balcão, passo o torniquete eletrónico, subo a larga escada para o primeiro andar, atravesso as veneráveis salas de leitura, galgo os degraus estreitos para os pisos mais altos da torre, no terceiro andar cruzo a comprida Ala Norte, passando por infindáveis estantes de livros, mesmo no fim avisto uma porta modesta, empurro-a e passo por outro pequeno hall para finalmente chegar à Sala de Manuscritos, protegida e guardada por pessoas cuja cortesia nos faz pensar nos seres que nos esperam à entrada do portão do paraíso. O meu cartão é lido pelo sensor, deixo para trás tudo o que, segundo o folheto que me entregaram, é proibido levar comigo, como esferográficas, canetas de tinta permanente, dossiers, bolsas, chapéus, lenços ou luvas, afia-lápis, canivetes ou corta-papéis.

Já expurgado das manias da atualidade, depois de passar uma vez mais o cartão num sensor, entro na sala de leitura após a pequena divisória de vidro se abrir à minha frente com um leve clique. No fim do balcão de atendimento, aguarda-me um carrinho com duas grandes caixas pretas da Cairo Genizah Collection; têm os números 12 e 16 e aproximadamente um metro de comprimento por meio metro de largura, e dez centímetros de altura. Assino a lápis uma declaração, sento-me na mesa que me foi atribuída, abro o pequeno computador portátil, tiro a lupa do velho estojo. Primeiro abro a caixa 12, observo o documento T-S 12.532. É um fragmento colorido que mais faz lembrar um mapa antigo, ou os contornos primitivos de um continente parcialmente imaginado. É espantoso como estes fragmentos imemoriais conseguiram chegar aos nossos tempos frenéticos, e o impacto que provocaram quando foram descobertos.

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Em 1964, dois anos antes de Norman Golb relatar as suas descobertas sobre Monieux, o hermeneuta Eliyahu Ashtor analisou este documento. Ele descreve a quase execução, nos arredores de Nájera, de uma prosélita que tinha perdido o marido num pogrom. Somente três décadas mais tarde, em 1999, Edna Engel, de Tel Aviv, sugere uma possível ligação entre este manuscrito e um outro, o T-S 16.100, sobre a prosélita de Monieux. Ela apresenta provas sólidas de que os dois manuscritos terão sido escritos pelo mesmo autor: a mesma caligrafia, as mesmas idiossincrasias linguísticas que apontam para o hebraico sefardita, o mesmo suporte material. No seu artigo, inicialmente publicado na revista hebraica Sefunot, Edna Engel apresenta o conteúdo do documento de forma sumária. Uma vez que o próprio autor revelava o seu nome no documento sobre a prosélita de Monieux, então o autor do documento que descreve a quase execução em Nájera teria de ser novamente Joshua Obadiah de MNYW. Neste caso, podemos concluir que se tratava da mesma mulher de MNYW. Inesperadamente, a vida da prosélita ganhou um novo capítulo. Mas, uma vez que a mulher foi conduzida à fogueira em Nájera, no Norte de Espanha, Edna Engel é da opinião de que o lugar para onde ela fugiu depois de ter sido resgatada não foi Monieux, mas Muño, uma aldeia medieval agora desaparecida, perto de Burgos, também em Espanha. Do ponto de vista linguístico, o hebraico permite esta possibilidade, uma vez que as vogais não são representadas na escrita. A sua tese foi retomada por Joseph Yahalom, que a cita no seu artigo a propósito de antigos documentos espanhóis e afirma inequivocamente que se trata de Muño.

Mas afinal o que dizia exatamente o documento T-S 12.532? Queria ter uma tradução literal. Assim, requisitei à Universidade de Cambridge uma cópia eletrónica deste manuscrito, tal como já fizera com o documento T-S 16.100. Em seguida, enviei essa cópia ao filho de Norman Golb, o doutor Raphael Golb, que a mostrou ao pai. O erudito de Chicago ficou surpreendido: os filólogos que contradisseram com tanta convicção a sua teoria de 1969 nunca tinham entrado em contacto com ele. Golb, já com idade muito avançada, ficou de novo intrigado com a história que o ocupara no início da sua brilhante carreira. Mandou fazer uma tradução, palavra a palavra, do manuscrito extremamente danificado. Fiquei surpreendido quando a vi: o documento T-S 12.532 fornece poucas informações quanto às circunstâncias ou aos lugares. Porém, o que fica claro é que a mulher foi posta na fogueira em Nájera, de onde foi resgatada no último instante. No documento aparece o nome, bastante invulgar, do seu generoso salvador: Yom Tov Narboni. Alguns pormenores despertam a imaginação: após ter sido resgatada, a mulher fora efetivamente libertada por volta da meia-noite. No final do documento, alguns nomes são mencionados: David bar […], Samuel bar Jacob, Iusta. Jacob e Iusta correspondem aos nomes dos filhos de Hamoutal, os outros dois quase correspondem aos dos maridos. Sempre seguidos de: falecidos. Será que o documento T-S 12.532 nos mostra que os filhos de Hamoutal tinham morrido? Então qual a razão de ela estar no Norte de Espanha? Terá Obadiah de facto escrito também esta carta? Será que se trata mesmo de Hamoutal? Examino as letras estranhas, embatendo sucessivamente nos cantos frustrantes onde o texto é interrompido. Fico sem resposta às minhas perguntas.

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Entrego a caixa 12 no balcão, recebo a caixa 16. Abro-a e vejo o brilho de uma pilha ainda maior de documentos, protegidos com micas de plástico. A pasta começa com o número 1; tenho de virar todas as folhas com cuidado nas argolas metálicas até chegar ao último, ao centésimo documento: T-S 16.100. É um dos documentos mais bem conservados, além disso muito bonito. Assim, embrulhado em plástico, é difícil saber se se trata de pergaminho, como supõe Norman Golb, ou de uma espécie de papel feito à mão, embora na época ainda praticamente não existisse esse tipo de papel. As letras são de cor sangue de boi, o manuscrito é entre o creme e o branco-acinzentado, com alguns tons mais escuros aqui e ali. Procuro a mais pequena abertura no plástico fechado por uma costura, enfio a pontinha do meu dedo na ranhura, durante um instante toco a extremidade do documento que Hamoutal carregou junto ao corpo. O silêncio na sala é tal que consigo ouvir a minha respiração.

Com a ajuda da lupa, examino a sua superfície, cada detalhe, cada pequena ruga – sobretudo nas partes mais frágeis e desgastadas, onde há vestígios de acontecimentos que não mais poderão ser reconstruídos. O documento esfarrapado apresenta quatro buracos de diferentes tamanhos; três nitidamente causados por humidade, desgaste, deterioração do material. Mas em cima, junto da linha nove, está um monstruoso buraco precisamente onde o material é forte e não apresenta desgaste; parece que um pedaço foi arrancado. Vejo agora com mais nitidez que na parte superior deste grande buraco as letras hebraicas mem, nun, yud, vav estão parcialmente legíveis: וינמ. MNYW. Onde e quando terá sido feito o buraco? Terá alguém arrancado qualquer coisa propositadamente? Terá Hamoutal deixado o documento prender-se em alguma coisa? Ter-se-á danificado dentro da bolsa com os tefelin de David? O rasgão terá tido origem nas profundezas da gueniza, algures naqueles nove séculos de escuridão? Quando, em 1864, Jacob Saphir visitou a sinagoga e pediu acesso à gueniza, o guarda assegurou-lhe de que no espaço escuro havia apenas serpentes e demónios. A humidade que corroeu o material tanto pode ter sido suor como sangue, água do mar ou bolor. Só então me lembro de virar com muito cuidado o documento armazenado na sua bolsa transparente. Para meu espanto, deteto dois grandes vincos no verso: o documento não tinha sido guardado enrolado, como sempre supusera, mas dobrado ao alto em três. São dobras bem vincadas, de ter estado dobrado durante muito tempo. Portanto, Hamoutal também pode tê-lo escondido nas suas roupas. É estranho que os vincos não sejam visíveis no lado da frente. Também a mancha de humidade é acastanhada no verso. Esta carta molhou-se e não apenas com a água do Nilo. Debruçado sobre o documento, dou outra vista de olhos atenta. Além disso, ao dobrar a carta desta forma, em três, o buraco grande ficava do lado de dentro. Um mistério inexplicável. Que terá acontecido? O documento T-S 16.100 permanecerá para sempre um enigma. Volto a fazer uma cópia desta pele sensível à luz coberta com letras. Tiro apontamentos. Fico sentado a olhar por mais algum tempo. Sei tão pouco.

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Norman Golb ficou tão fascinado com o caso que visitou Monieux duas vezes, em dezembro de 1966 e em 1967. Os seus artigos eram acompanhados de fotografias que ele próprio tirava. A seguir ao famoso ensaio de 1969, publicou um artigo em 1978, na revista franco-judaica L’Arche, onde volta a defender de forma sucinta e convincente a tese de Monieux. Em 1979, na mesma revista publicou uma breve carta de resposta de um leitor em que se refere à existência do chamado cimetière aux Juifs de Monieux, bem conhecido dos habitantes. Possuo uma cópia de uma fotografia antiga onde se vê a família Golb num banco em frente à casa onde escrevi este livro.

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Em abril de 2016, Golb publicou um novo artigo no website do Instituto Oriental da Universidade de Chicago intitulado «Monieux or Muño?», baseado na informação que eu lhe fornecera relativamente aos artigos de Yahalom e Engel mais a minha própria pesquisa feita em Monieux. Também ele chega à conclusão de que nada pode ser afirmado com certeza em relação à interpretação de MNYW, nem à ligação entre os dois manuscritos. No entanto, por razões de ordem topográfica, afirma explicitamente acreditar menos na alternativa de Muño e preferir a tese de Monieux. Além disso, parece-me muito improvável que o rabino de Narbona tenha enviado os dois fugitivos em direção a Muño, situado no caminho para Santiago de Compostela, intensamente percorrido por cavaleiros normandos naquela época. Monieux é uma alternativa muito mais sensata, tendo também em conta que nessa época a Provença ainda fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico. O facto de o hebraico de Joshua Obadiah revelar influências espanholas parece lógico se nos lembrarmos de que ele provavelmente terá estudado em Narbona, onde na altura se falava sobretudo espanhol, e quase de certeza terá convivido com o rabino Todros. Apesar de Edna Engel ter razão do ponto de vista filológico, a sua conclusão é, quanto a mim, errada.

Seja como for, o documento T-S 16.100 é conhecido como a história da prosélita de Monieux. Na sua extensa obra A História dos Judeus, Simon Schama chama-lhe claramente «A Prosélita de Monieux» e dedica-lhe um breve parágrafo. Até a Jewish Virtual Library, baseada na Encyclopaedia Judaica, menciona «um manuscrito em Cambridge, segundo todas as evidências com origem em Monieux, na Provença».

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Aqui termina a minha busca. É difícil para mim deixar a silenciosa sala de leitura. Mais tarde, volto a andar pelas ruas desta antiquada e pacífica cidadezinha. No Fitzwilliam Museum decorre uma exposição sobre rituais funerários egípcios. Deambulo, distraído, pelas salas escurecidas com sarcófagos e vasos canópicos e lembro-me do Cairo e das noites nas margens do Nilo. É como se um ciclo se fechasse. Ao voltar à rua, noto que cai uma chuva quase invisível de um céu luminoso e quente.