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Verão de 2015. Os dias quentes de agosto sobrepõem-se; durante semanas, o céu mantém-se de um azul imaculado. Sobretudo do lado oeste, logo de manhãzinha, por cima da ruína da antiga torre, é tão profundamente azul que nos deixa tontos. Nesses dias ando muito a pé. Volto a rastrear todo o tipo de rotas por onde a prosélita judia podia ter chegado ao vale. Sigo o caminho no fundo do desfiladeiro até chegar à antiga Capela de Saint-Michel, escavada na rocha. É um lugar místico; aquela pequena e antiquíssima construção fica literalmente dentro de uma gruta. Nas velhas paredes, veem-se os baixos-relevos aí esculpidos bem como palavras gravadas por monges solitários, que entretanto se tornaram ilegíveis. Mesmo em frente, quase perdido por entre densos matagais, o Nesque não é mais do que um fio de água que corre. O cheiro é de rocha húmida e de pedra. Sento-me. Recordo-me de que Andy Cosyn, no seu livro Le Trésor de Monieux, apresenta alguns protagonistas setecentistas que ingenuamente acreditavam que aqui haveria um famoso tesouro para descobrir. O autor gosta de espicaçar a curiosidade do leitor. No livro, incluiu fotografias de uma gruta que descobriu algures e que continha caveiras. Estas estariam excecionalmente bem conservadas porque não havia ar na gruta até ele a abrir à picareta. Seriam as caveiras dos homens que vieram enterrar o tesouro e ficaram soterrados sob os escombros de um túnel que desabou. Ninguém acredita que seja mais do que mera especulação, mas enfim, sem darmos por isso, caminhamos novamente pelas veredas rochosas desertas e interrogamo-nos onde poderia então estar o tesouro.
Vale o que vale, mas presentemente estou convencido de que o velho mito se refere inconscientemente aos escassos bens da sinagoga de Monieux, que Joshua Obadiah e mais dois homens queriam pôr a salvo. Provavelmente alguns candelabros de cobre, talvez umas moedas de ouro… mas sobretudo os rolos da Tora, alguns filactérios e, tal como na gueniza do Cairo, a coleção de documentos que não podiam ser destruídos por conterem o nome de Javé. Por outras palavras: o maior tesouro de Monieux, se fosse descoberto, talvez nos deixasse estupefactos, pois não poderia ser senão uma gueniza. Aliás, a palavra gueniza surge no Livro de Ester, redigido em hebraico, com o significado de «sala do tesouro».
Se é que alguma coisa restou da coleção de manuscritos da gueniza de Monieux, não estará, na minha opinião, aqui no fundo desta fenda, mas algures num lugar chamado La Combe Saint-André, uma pequena e íngreme ravina lateral onde é impossível chegar sem equipamento profissional de escalada, mas onde outrora havia talvez uma escada de cordas suspensa. Conseguem ver-se duas cavidades na encosta rochosa, uma acima da outra, que se prestam perfeitamente para esconder bens e onde, vindo da sinagoga, se podia chegar rapidamente pelo Petit Portalet, a mais alta torre de vigia, situada na parte judia da aldeia.
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É bem provável que o velho Joshua Obadiah ainda tenha escrito um relato sobre a catástrofe. Porém, documentos escritos não terão sobrevivido neste clima duro e imprevisível, ao contrário do que aconteceu em Fostate. É igualmente possível que tenha mandado restaurar os bens da sinagoga e que tudo se tenha perdido num outro momento, séculos mais tarde. Também é plausível que ele se tenha esquecido do lugar exato onde enterrou os bens nessa noite infernal, afinal teve de correr pela vida quando o urso saiu da gruta. No entanto, é quase inimaginável que algo venha ainda a ser descoberto.
Decido descer em direção à encosta coberta pela vegetação, já fora da aldeia, o lugar em que algumas pessoas dizem ter sido o antigo cemitério judeu. Há pedras velhas debaixo da hera, de lírios e de cardos. Esforço-me para tentar virar algumas dessas pedras. O que vejo são só arranhões antigos e outros sinais de desgaste? Por mais que os quisesse encontrar, aqui não há mais vestígios. Se neste lugar ainda restarem antigas lápides judias, passados dez séculos elas estarão no mínimo soterradas um metro e meio abaixo do húmus sempre mutável desta encosta. O próprio cemitério ficou sepultado. O único vago indício é uma pequena parede em linha reta e três degraus em pedra, perdidos entre as folhas secas.
Selá. Fim do salmo.
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Só que não é o fim.
Há um pequeno lugar, nas ruínas mais acima da aldeia, onde durante verões consecutivos fui muito feliz. É um terrenozito com erva ressequida, os flocos que se libertam dos ramos secos de cerejeira esvoaçam no vento quente do verão como neve negra, alguns pousavam no meu cabelo e nas folhas do livro que estava a ler. Passava tardes inteiras a olhar despreocupado a luz que deslizava pela planície, ouvia o crocitar dos corvos ecoar na encosta rochosa sobre mim e escutava a música sublime de Sébastien de Brossard: «Ego sum pastor bonus» – Deus tranquiliza os moribundos e assegura que Ele é o bom pastor.
O terreno fica mais acima, no lado sul da aldeia medieval onde outrora se situaria o bairro judeu, logo abaixo e ao lado do Petit Portalet. Para lá chegar é preciso subir uns degraus antiquíssimos, pedras deslocadas pela força de ervas daninhas teimosas ao longo de séculos. Ao lado dos degraus, resta ainda um arco romano de uma cave parcialmente enterrada. A casa que aqui existiu deve ter sido espaçosa e imponente, as fundações são grossas e fortes. O facto de haver um poço muito fundo, para o qual só havia acesso pelo piso que ficava sobre a cave, foi o que me fez perceber que se tratava de uma construção muito especial. O perímetro das fundações também mostra claramente que era um edifício substancialmente maior do que uma casa particular.
Por cima do poço escuro foi colocada uma chapa ondulada. Por uma fresta vejo no fundo o brilho de uma poça de água fresca. Tiro a chapa. Para meu espanto não é apenas um poço, há também um banco primitivo esculpido na pedra. O poço forma vagamente um oito; no fundo, vejo um espaço que deve poder conter uns quinhentos litros de água. Só então percebo: isto é um recipiente para o banho judeu, um mikvá para o ritual de purificação. Preciso de me sentar para me recompor. Será mesmo…? Um mikvá num piso superior só podia existir numa sinagoga. Ou então na casa de um rabino. Até existem umas escadinhas para uma nave lateral, mais acima. Talvez a ala para as mulheres. Por outras palavras: o local onde passei anos felizes a ler é o mesmo lugar onde Joshua Obadiah e David Todros se debruçavam sobre os rolos da Tora. É o lugar onde Hamoutal desceu para o banho ritual. É o lugar onde ocorreu o cruel massacre. Subitamente, o pequeno e pacífico terreno transforma-se num espaço cheio de vozes que gritam, se queixam, insultam, um espaço de violência e de chacina, de desespero e de sangue. Aqui estou eu, encontro-me literalmente num local do passado deles. Shemá Israel. No dia a seguir ao pogrom, Hamoutal sucumbiu, desesperada, junto ao corpo mutilado do marido neste lugar preciso. O mesmo onde, nos seus últimos dias de loucura e miséria, se asilou e chorou noites a fio como um animal ferido.
Incrédulo e estupefacto, contemplo a minha descoberta.
Toco na borda do velho poço. Toco em Hamoutal.
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Chuvisca sobre o vale brumoso. Os caracóis deslizam vagarosamente pelos velhos pedregulhos das ruelas mais altas, embrenhados no seu jogo de amor onírico. Tenho cuidado com o sítio onde ponho os pés, que são propensos a entorses. Desço a ladeira, vou para casa de Andy Cosyn, que beberica com prazer o seu aperitivo. Conto-lhe o que descobri: provas materiais da existência de uma comunidade de judeus na época dos cruzados, a pedra angular de que Norman Golb precisava para comprovar definitivamente a sua tese de Monieux. Andy saca de imediato dos seus arquivos umas plantas antigas que datam da época pré-napoleónica. Procuramos aquela parcela: o edifício em questão, com o mikvá, revela ter sido a única casa na aldeia inteira com uma portinhola nas traseiras. A portinhola das traseiras da sinagoga. Dava para uma ruazinha estreita, agora desaparecida, que fazia um semicírculo que passava por aquele lado da aldeia e acabava no Portail Meunier, no lado sul. Olhamos um para o outro: terá sido por essa ruazinha que os homens fugiram com os objetos rituais da sinagoga.