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Ao boxeur Matias Vilanova,

Li no jornal que acabou de perder o seu trigésimo segundo combate consecutivo em trinta e dois combates disputados, sendo que nunca atirou a toalha. O tom do artigo era pseudocómico, uma daquelas peças destinadas a explorar a schadenfreude dos leitores e fazê-los sorrir da desgraça alheia (é possível que o meu amigo desconheça a palavra schadenfreude, pedindo-lhe eu desde já perdão pela arrogância intelectual subjacente ao seu uso, e passando a explicar que é um termo alemão que significa, aproximadamente, alegria pela desgraça dos outros). Além de talento literário, percebe-se que faltou ao jornalista decência, compaixão, mesmo ternura. E faltou uma capacidade fundamental para poder estar no mundo como Homem, e que, lamentavelmente, é cada vez menos estimulada, apreciada e praticada: imaginação. Faltou-lhe a imaginação para procurar perceber o que o leva ao ringue após trinta e uma derrotas. A imaginação para antever os momentos anteriores ao combate, os minutos finais no balneário em que, apesar de tudo e todos tomarem como certa a sua derrota, apesar de mesmo o próprio Matias ter poucas dúvidas de que será derrotado, havia ainda uma parte de si que queria lutar, uma parte que acreditava que talvez esse fosse o dia. Um homem desejoso de socar o destino nas fuças. Faltou ao jornalista a imaginação para tentar perceber o que leva um homem a continuar a investir o seu tempo e esforço numa empreitada para a qual nunca mostrou talento, da qual nunca obteve resultados, que lhe exigiu tudo e nunca lhe deu nada, que lhe causou dor e humilhação. No artigo citam o Matias justificando a sua persistência. Quando lhe perguntaram se ia voltar aos ringues depois de mais uma derrota, respondeu: «Eu vou para o ringue como um advogado vai para o escritório»; e, perante a pergunta jocosa sobre se acreditava ser possível alguma vez ganhar um combate, «Entro em todos os combates para ganhar. Dou tudo o que tenho e faço o que sei e posso». Quero dar-lhe os parabéns por essas respostas, tão sábias quanto comoventes.

Não consigo pensar no Matias sem utilizar palavras antigas como nobreza e dever. Qualquer freira ou comentador social teria pena de si e assumiria o discurso número 33 do Manual do Moralista, condenando a sociedade por exaltar o triunfo, exacerbar a competitividade e, tratando-se de boxe, com certeza haveria algumas frases sobre o quão básico, primário, primitivo e misógino é este desporto violento, que deveria ser banido, acrescentariam com esgares de indignação e dedos em riste.

Não é o que penso. Não o considero uma vítima, mas um herói. Um exemplo de persistência, perseverança e determinação. Um homem que não se verga nem à opinião dos outros, nem aos resultados, nem mesmo ao senso comum. Um homem que acredita em si mesmo, que procura o triunfo e está preparado para a derrota. Que «dá tudo o que tem». Que «faz o que sabe e pode». Já diziam as escrituras que quem dá o que tem, a mais não é obrigado. Eu acredito que o Matias durma tranquilo, que o seu sono seja o sono dos justos, e que ande na rua de cabeça erguida como o campeão que é.

Que a glória vá para o vencedor é compreensível, mas a honra deve ser partilhada com o derrotado. Atribuída não como consolo mas por admiração. Porque ergueu as luvas, encaixou os socos, e nunca deixou de procurar uma abertura, um momento de menor alerta por parte do superior adversário que lhe permitisse o soco da reviravolta, o murro da redenção. Porque como Heitor, em Tróia, não fugiu ao seu dever. Porque se recusou a aceitar que o destino de um homem já está escrito, que a sociedade, a cultura, os genes, a forma como a mamã o amamentou ou o papá com ele jogou à bola, o meio socioeconómico em que cresceu, o PIB do seu país, o número de livros que tem em casa, a personalidade dos seus melhores amigos, a sua altura ou peso, os seus resultados escolares, o seu treino, a sua dieta, o número de horas que dorme, as suas relações afectivas, o número de vezes que foi derrotado, as estatísticas pré-combate, que todas estas coisas, por mais ou menos peso que tenham, determinem o que lhe vai acontecer.

Beckett dizia «Ever failed. No matter. Try again. Fail again. Fail better». Na nossa língua: «Já falhou? Não faz mal. Tente outra vez. Falhe outra vez. Falhe melhor.» E é isso que o Matias tem feito de forma soberba.

Por isso, Campeão, os meus parabéns. Espero que tenha uma carreira longa e que as vitórias cheguem. E se um dia chegarem, mesmo que seja só uma, imagino que sentirá o que os Muhammad Alis e Mike Tysons nunca sentiram, pois só quem atravessou um deserto conhece o verdadeiro sabor da água.

Espero que continue de punhos levantados, que saia sempre do balneário com coragem e determinação, que aprecie o ringue. Que aceite cada derrota com honra e orgulho.

O boxe sempre serviu de metáfora fácil para tudo e mais alguma coisa. Para mim, o seu caso lembra-me os românticos falhados, a quem o amor derrota vezes sem conta e que, apesar da dor e do desespero, e das feridas profundas no mais importante músculo do corpo, se voltam a levantar, erguem de novo os punhos e estão dispostos a apaixonar-se e a acreditar que, da próxima vez, sim, da próxima vez serão eles que terão o braço levantado, da próxima vez o amor triunfará.

De um admirador agradecido