XVIII

Queridos pais,

Estou perto de Florença a acampar com uns americanos. Alugaram um Pão de Forma (aquelas carrinhas Volkswagen dos anos 60) na Alemanha e estão a atravessar a Europa. São cinco. Um casal, que dorme na carrinha, e um trio dormindo numa tenda, dois rapazes e uma rapariga com o feliz nome de Stella. São quase todos estudantes de arte pelo que Florença é a sua Jerusalém. Conheci-os no átrio de uma igreja em Pisa quando uma chuva repentina nos tornou a todos refugiados. Passámos essa tarde num café dessa cidade cinzenta a conversar sobre viagens, estereótipos culturais europeus e hambúrgueres. Adoptaram-me sem hesitação.

O casal parece saído de um daqueles filmes de liceu, o rei e a rainha do baile de finalistas. Até os seus nomes soam melhor juntos: Dominic and Dalila. Ele estuda Ciências Sociais e ela História de Arte. São os dois loiros, altos e robustos. Exalam vitalidade e optimismo, terminam as frases um do outro, olham-se com ternura evidente e a sua piada recorrente é fingirem que ficam muito chateados quando discutem o nome dos futuros filhos. Do trio restante conheço mal os dois homens. O Bobby é baixo e peludo com óculos redondos de tartaruga. É o intelectual do grupo, quase sempre segurando um livro de um teórico francês, excedendo todos os outros na sua repulsa pelo provincianismo americano e exaltação da cultura europeia e irritando-se facilmente nas discussões, como um professor obrigado a alterar os seus planos para ensinar matéria em atraso a alunos preguiçosos. O Steve é uma incógnita. Nada na sua aparência ou comportamento se destaca, excepto, talvez, algum ciúme da minha proximidade à Stella.

A Stella. Acho que eras tu, mãe, que usavas petite para descrever algumas mulheres. Pois petite é o adjectivo ideal para a Stella. Apesar do nome americano (e lembro-me, pai, de que me levaste à Cinemateca a ver esse filme, lembro-me dessa tarde de sol em que pela primeira vez percebi porque tanta gente gosta do Marlon Brando), ela é a mais latina do grupo. Estuda Belas Artes e quer ser pintora. Ou já é pintora. Nunca sei se devo usar o futuro ou o presente a falar de artistas. É muito bonita, com uma boca grossa e voluptuosa, olhos de boneco animado japonês e cabelo longo e escuro, tão negro que, quando é directamente iluminado, parece prateado. É também a única que fala italiano (com um sotaque delicioso) e pretende estudar um ano em Itália; ainda indecisa entre Roma e Florença. Como devem suspeitar, estou encantado com ela.

Estamos acampados num vale a poucos quilómetros de Florença. Este é o quinto dia que estou com eles. Todas as manhãs levantamos o acampamento e seguimos, algo apertados, no Pão de Forma até à cidade dos Médici. O Dominic e o Bobby falam de Maquiavel, de Lourenço, o Magnífico, das intrigas, execuções e escândalos do Renascimento. Elas, Stella e Dalila, anseiam pela Galleria degli Uffizi, conversam sobre o David de Miguel Ângelo e a cúpula de Brunelleschi. Eu e o Steve dizemos pouco e saltitamos entre conversas.

Quando chegamos a Florença, formam-se duos. Dominic e Dalila, Bobby e Steve e, claro, eu e Stella. Ela discorre sobre arte com entusiasmo e erudição. Mostra-se também curiosa sobre mim e a minha vida, especialmente sobre os motivos das minhas viagens. Eu falo-lhe de vocês e do resto. Digo que ela tem de visitar Lisboa. Pode não ser Florença ou Roma, pode não ter Miguel Ângelos ou da Vincis mas tem outras coisas. E digo-lhe quais são.

Hoje sinto-me um pouco sufocado por arte e beleza. Foram cinco dias de museus, igrejas e palácios, de contemplar a Catedral e atravessar a Ponte Vecchio, de centenas de estátuas, Cristos, querubins, anunciações. Não vale a pena enunciar as obras-primas que vi, sempre acompanhado de Stella, explicando-me (por vezes com a ajuda de um livro) o que havia de maravilhoso, de original, de divino nas obras de arte à nossa frente, e que podia ser a forma como uma mão estava desenhada, o contorno de uma capa, as cores usadas para pintar o céu, a geometria da peça, certo pormenor anatómico ou outro detalhe ansiando ser notado.

Mas, mais do que tudo o que vinha assinalado nos livros, mais do que aquelas obras que já vi centenas de vezes em livros, em programas de televisão, em posters num café qualquer, o que mais me impressionou, o que me fez quase chorar foi uma sala na Galleria degli Uffizi que visitámos ontem.

No segundo andar há uma sala dedicada ao mito de Níobe e dos seus filhos. Penso que tu, pai, deves conhecer a história, mas como há muitas versões vou contar a que ouvi. Níobe era uma mulher mortal que deu à luz catorze filhos, feito que apregoava e do qual ela se orgulhava. Os deuses Apolo e Artémis decidem castigá-la matando-lhe a descendência. A sala está cheia de estátuas golpeadas pelos deuses ou prestes a sê-lo, com os corpos e os rostos muito parecidos com os das cenas de bombardeamentos dos filmes. A atmosfera é arrepiante, como se tivéssemos interrompido os deuses e as suas vítimas a meio de um acto de extermínio e a interrupção houvesse transformado tudo em pedra. O espantoso é a beleza de tudo aquilo, a possibilidade de a dor ser bela, talvez porque faz emergir nas feições o que de mais humano possuem. Níobe é representada ainda viva, tentando proteger a sua filha pequena e olhando para os céus com horror e súplica.

Pela primeira vez os comentários de Stella foram um pouco irritantes. Começou a dizer quais eram as melhores e as piores peças, qual teria sido a sua disposição original e que se via que não devia ter sido o mesmo artista a esculpi-las a todas, pois havia alguns pormenores grotescos em algumas das estátuas. Nada daquilo me interessava muito, pois eu estava plenamente absorvido na angústia que a sala emanava, a pensar na fortuna e nos caprichos dos deuses. Tive de lhe pedir para me deixar sozinho na sala, o que lhe desagradou e quase causava a nossa primeira discussão.

Fiquei mais de uma hora nessa sala. Senti ali aquilo que ouvi outros dizer que sentem perante o Guernica (e que eu não senti na minha passagem pelo Rainha Sofia). O horror não só da guerra, mas de todas as catástrofes inesperadas que os deuses, sem mais justificação do que a de alguém se ter orgulhado da sua fertilidade, causam. O que mais me chocou foi o rosto da Níobe. A dor de uma mãe que perde os seus filhos. O cliché de todas as reportagens sobre a guerra. Mas e todas as mães que os perdem sem ser na guerra? Não sei se há alguma coisa mais horrível do que olhar para uma mãe que perdeu um filho jovem. É uma visão que coloca tudo em causa, que questiona toda a estrutura do universo, que abala os pilares da existência.

A crueldade dos deuses. Era no Shakespeare, não era, pai? Qualquer coisa de os homens serem para os deuses como as moscas para os putos reguilas: matam-nas por diversão?

Saí da sala e fui ter com o grupo ao terraço do museu, onde fumavam e tomavam café. A Stella estava um pouco magoada. Isolámo-nos a um canto, com uma vista soberba sobre Florença. Tentei explicar-lhe o impacto que a sala tinha tido em mim. Acabámos a falar de vocês e de há quanto tempo não vos via. Ela perguntou se eu não vos estava a fazer o que Artémis fez, ao afastar a mãe (e o pai) dos seus filhos.

Talvez seja verdade. Talvez vocês sintam às vezes que eu desapareci para sempre. Talvez essa perda seja insuportável e estas cartas não façam mais do que atenuar a dor. Mas é possível a uma mãe recuperar o gosto pela vida quando os deuses levaram os seus filhos?

Quero acreditar que sim. Quero acreditar que o mundo é suficientemente vasto e belo para permitir o luto.

Não sei se ainda ficarei muito mais tempo por Itália, mas, esteja onde estiver, terei sempre papel para vos escrever.