XIX

Querido amigo,

Quatro dias de silêncio absoluto. Sem visitas, encontros ou conversas. A vida resumida a uma dúzia de verbos: dormir, sonhar, correr, cozinhar, comer, cagar, mijar, lavar, ler, escrever, lembrar, chorar. Cada vez mais afeiçoado à minha gruta, à sala ampla com vista para o mar, à lareira quase sempre acesa, à poltrona que já tem uma mossa na almofada de lá passar horas e horas a ler ou apenas a segurar um livro nas mãos ou contra o peito. Li o Beached Whales duas vezes. Contemplo as fotografias com um fascínio que podes achar mórbido, mas que não o é, de forma alguma. Nada me tem parecido mais belo do que os corpos gigantescos das baleias mortas na praia. Estou cada vez mais encantado com esse animal soberbo. Leio relatos de antropólogos que falam de tribos onde as baleias são consideradas deuses vivos, os últimos dos seres divinos coabitando com os humanos. E tal parece-me verdade, a mim, o mais ateu dos religiosos, o mais religioso dos ateus. Mesmo os seus nomes são belos: leviatã, cetáceo, baleia. O seu canto atravessa metade do planeta e há pouco mais de um século o seu esperma iluminava as cidades europeias. OK, chega de elogio às baleias, até porque ainda não vi nenhuma. Daqui a duas semanas ou pouco mais, começa a época e os barcos vão sair com turistas em busca dos últimos deuses vivos. E eu estarei lá. Pronto para me desiludir, porque é melhor assim. Preparado para uma experiência sem alma, para ver talvez apenas uma cauda de cachalote a umas centenas de metros e não sentir fulgor nessa visão. Mas estarei lá. Chega de cetáceos.

Mostraste surpresa e curiosidade pelo que ocorreu após o meu Verão de idílio, que de forma tão, como hei-de dizer, tão nua – e, pecado mortal para qualquer narrador: sentimental – te descrevi na minha carta. Como dizia Salinger, a felicidade é um sólido mas a alegria é um líquido. E é um líquido que não pode ser contido, porque flui continuamente.

E assim foi. O Verão passou com a velocidade com que os verões alegres passam. O Outono chegou. O regresso às aulas. O amor não acabou aí, não acabou então, apenas terminou a sua invencibilidade, a deliciosa ideia errada de que poderia superar tudo. E o que aconteceu depois é o que acontece em muitas histórias semelhantes e que não vou narrar com mais pormenor do que isto, não só por ser inútil, por poderes facilmente imaginar o lento sufoco dos sonhos adolescentes pelo mundo adulto, como por não ser o tipo de memórias que quero trazer à luz. Nestes últimos tempos eu, ou a minha mente, ou alma, ou seja o que for, é uma floresta encantada. Sempre que entro na floresta não tenho a certeza de que consiga alguma vez sair de lá. Por vezes encontro unicórnios sublimes ou pequenas fadas guardando lagos encantados, com quem partilho chocolate quente e canto canções de infância. Por vezes converso com duendes burocráticos vestidos de fato e gravata com relatórios anuais de contas numa mão e calculadoras noutra. Por vezes fujo do lobo mau, do ciclope, de um ogre niilista ou de um professor de liceu que uma vez me chamou medíocre. Não quero entrar na floresta à procura do que correu mal no meu primeiro amor, ou em qualquer outro. Espero que me compreendas.

Quanto à insistência do Carlos Domingues sobre se não é mesmo possível retomar as crónicas sobre cinema: não e não e não e não e não. Já não vou ao cinema. Embora sinta falta do escuro de uma sala de cinema, da amplitude divina do ecrã onde um dia julguei que podia caber toda a existência, nunca passei tanto tempo sem ver um filme. Agora que penso nisso, surpreende-me um pouco que passe tão bem sem televisão e cinema, sem contemplar imagens móveis a duas dimensões. Mas, se penso em tudo o que deixei para trás, o cinema e a televisão são apenas pormenores, notas de rodapé na lista das coisas que arderam no fogo.

Noto que esta carta está demasiado cinzenta e cheia de gotas de chuva descendo lentas numa janela. Não quero que me aches deprimido. Podem ser breves e raros, mas ainda há momentos em que exulto de alegria. Um deles ocorreu esta manhã. Estava a colocar ratoeiras no sótão quando decidi explorar um baú velho e poeirento debaixo da pequena janela. Fiquei desiludido quando não encontrei barras de ouro ou um esqueleto. Apenas tralha, quinquilharia, objectos mais ou menos partidos, guardados, imagino eu, por serem símbolos tácteis de dias singularmente felizes. Algumas bonecas de porcelana, meia cana de pesca, uma manta esburacada, um candelabro e, surpresa das surpresas, uma caixa de música. Dei-lhe corda e esperei pela melodia, mas não funcionou. Trouxe-a comigo para a sala e passei a manhã a tentar arranjá-la.

Estive hora e meia, ou mesmo mais, completamente absorvido em cada roda dentada, arame e peça. Consegui arranjá-la substituindo um arame partido. Quando finalmente lhe dei corda e ela tocou a sua melodia (o Für Elise de Beethoven), senti-me, como se diz nos seminários de auto-ajuda, profundamente realizado. Naqueles minutos divinos com o plinc ploc metálico reproduzindo a música que o austríaco havia imaginado séculos antes, esqueci-me por absoluto da floresta encantada. Não pensava nem em ogres nem em unicórnios, nem em memórias do cinema ou de Lisboa. Não me assaltavam dúvidas, remorsos ou lamentos. Fora da sombra da morte, eu apenas contemplava a caixa de música, o seu interior nu, a sua manivela prateada, e escutava com uma atenção total cada nota, sentindo uma alegria indescritível na sua cadência.

E depois passou.

Adivinho já o que pensas desta historieta e a tua preocupação com a minha, como dizes, «obsessão com a redenção». Não te iludas. Não houve nada de redentor na caixa de música. Foi apenas um momento fora do tempo, um desvio breve por águas límpidas na travessia de um rio lamacento. Mas eu sei que haverá mais desvios destes.

Abraço-te