XX
Ex.mo Senhor Dr. Pereira,
Devo começar de forma abrupta, e apresentar-me como certos narradores apresentam as personagens antipáticas-depois-simpáticas, fazendo-as, na sua primeira aparição, responder a qualquer frase cordata e formal com um comentário sincero mas chocante, mostrando independência de espírito, ironia e má-criação. Aqui vai a minha: apenas lhe respondo e apenas li a sua carta para acalmar o nosso amigo comum que teme pela minha vida e me supõe louco. Acredito que o senhor seja um profissional honesto, que tenha o ar limpo e sofredor dos terapeutas, aquele aspecto de padre sem vícios, que esteja treinado em ouvir os maiores horrores sem mostrar perturbação. Suponho até que a sua empatia (como vocês adoram esta palavra!) pelos seus pacientes seja sincera e genuína, que haja compaixão pelo sofrimento dos neuróticos borderlines psicóticos que o visitam. Penso também que não estarei muito longe da verdade quando adivinho crises de consciência, debates intelectuais, muitas horas gastas em opor corpo e mente, biologia e psicologia, medicação e interpretação, e em releituras de Freud com comentários à margem e talvez até palestras sobre a televisão e o narcisismo.
Além disso, aprecio a sua capacidade para escrever uma carta e enviá-la para a morada certa. Pode parecer insignificante, mas tão poucos o fazem que me convenci de que é uma das mais difíceis tarefas para o homem moderno, seja isso o que for. Pela gentileza epistolar mostrada e para bem do meu amigo, que tem feito por mim mais do que Buda fez em defesa do cabelo rapado, vou até responder a cada uma das suas questões:
De que tenho medo? De que as pessoas deixem de escrever cartas. De cavalos castanhos com manchas brancas no pescoço com a forma da Suíça. De ecrãs de televisão com estática. Das pessoas que escrevem livros ditados por divindades mas com má gramática. De homens que usam uma pala no olho sem ser preta. De palhaços com os pés pequenos. De vampiros mal vestidos. De canalizadores que assobiam Wagner. De relógios em que os ponteiros não se mexem mas que fazem tic-tac. De anões muito altos e gigantes muito baixos. De arranha-céus em que ninguém está apaixonado. E penso que chega.
O que me traz alegria? O atacador desatado de um miúdo de seis anos com um mau corte de cabelo. O cheiro dos livros. Quando um arroto acumulado durante meia hora finalmente se solta. A página 107 da edição da Penguin do The Heart is a Lonely Hunter. O ruído de um projector de cinema. A ideia de que o Charlie Chaplin existiu mesmo, da mesma maneira que eu agora existo. Um homem que beija uma mulher depois de ela lhe dar um estalo. Horóscopos demasiado específicos («terça à tarde cuidado com os dentes»).
Como era a minha relação com a minha mãe? E com o meu pai? Imagine um casal de classe média sem nada de peculiar. O marido ama a mulher, a mulher ama o marido. Ambos amam os seus filhos. Ambos vêm de famílias onde foram amados. Como em todas as famílias, existem alguns desequilíbrios. Há quem se sinta menos amado, quem se sinta menos apreciado, quem se sinta pressionado. Mas a vida continua. Como burgueses que são, preocupam-se com a boa educação, a higiene e a cultura, sem achar que qualquer destas deva ter predomínio sobre as outras. Eu cresço como as outras crianças que andam na escola comigo. Os meus pais são parecidos com os pais deles. Vemos os mesmos programas de televisão, brincamos com os mesmos brinquedos e visitamo-nos uns aos outros. As nossas mães fazem os mesmos lanches de limonada e sandes de fiambre e queijo. Eu cresço e os meus pais vêem-me crescer. Não intervêm nem a mais nem a menos. Respeitam as minhas decisões mas não deixam de criticar ou louvar quando acham necessário, indo as ocasiões e a forma como o fazem de encontro ao que eu esperaria que eles fizessem. Serve para si?
O que me faz triste? Paragens de autocarro vazias à chuva. Quando morre um cão cujo dono é uma criança. A página 107 da edição da Penguin do The Heart is a Lonely Hunter. Pensar na vida sexual dos bibliotecários com bexigas na cara. O Mi bemol tocado num piano de cauda. Pensar na vida espiritual dos managers de hedge funds. Balões rebentados no asfalto. A irreversibilidade do tempo. Que o café seja servido frio.
Espero tê-lo esclarecido. Espero que informe o meu amigo da minha saúde mental. Espero que tenha sorrido ao ler esta carta.
Com cumprimentos que não são os melhores mas são muito bons