XXI

Querido amigo,

A vida social regressou. No meu jogging matinal cruzei-me com o Dr. Viana e convidei-o, e à mulher, para tomar chá. Passei o resto do dia a dar um ar decente à minha toca, arrumando papéis e livros, limpando migalhas, lavando loiça.

Às cinco horas em ponto, chegaram com os seus sorrisos suaves e um bolo de laranja. Elogiaram a casa e o chá que lhes preparei, sentámo-nos e fizemos a conversa expectável de pessoas cosmopolitas e sofisticadas que somos. Os temas fluíam sem dificuldade. Ela é entusiasta e emotiva e ele tem humor e muita cultura. Contudo, basta mencionar o seu filho para que ocorra uma metamorfose. Isso faz-me suspeitar ainda de que ocorreu alguma coisa grave ou mesmo tremenda entre eles e o filho viajante. Se por um lado a mãe agradece qualquer oportunidade de palrar sobre o filho, por outro o marido parece vigiar o seu discurso chegando mesmo a interrompê-la e a mudar de assunto. É tudo um pouco edipiano e bizarro, o que me dá pena porque as migalhas de informação que ainda consegui sacar da mãe mostram um miúdo fascinante. Não só é um viajante à moda antiga como parece ter uma paixão por cartas quase tão febril como a minha. Perguntei se eles se importavam de que eu escrevesse ao seu filho. Ela sorriu e pareceu-me que ia responder de forma afirmativa, mas o marido interrompeu-a mais uma vez e, na sua forma suave e tranquila de falar, na sua autoridade de médico que descreve passo a passo o tratamento e os efeitos secundários, explicou-me a impossibilidade de eu me corresponder com o seu filho, pelo menos por enquanto. As razões que avançou eram todas, como seria de esperar, sensatas e justas. A própria mulher mudou de expressão e anuiu significativamente ao ouvi-las. Como consegues imaginar, tudo isto contribui para adensar o mistério e deixa-me morto de curiosidade.

O reverso da medalha é a especulação delicada que o casal Viana faz sobre o meu exílio. Também eles se apercebem de que existe toda uma história tremenda e também eles vão tentando, como se diz, tirar nabos da púcara. Eu tenho a vantagem de ser só um e de estar unido comigo mesmo, deflectindo as suas inquirições com facilidade, às vezes mesmo com gozo.

Por outro lado, quando eles se foram embora fiquei com alguma pena de que usemos todos estes subterfúgios, mentiras, máscaras. Pus-me a pensar em como seria se dissesse a verdade, se revelasse tudo o que aconteceu. Não só a eles mas também a Hector, ao senhor Joaquim e a quem mais desejar. Não duvido de que, tal como eu tenho as minhas imaginativas teorias sobre o que aconteceu entre o filho Viana e os seus pais, também correm por aí histórias mais ou menos sórdidas sobre mim.

O teu amigo psiquiatra escreveu-me. Também ele quer que eu fale sobre aquilo-que-aconteceu, mesmo que por carta. Pretende, por certo, um grande breakthrough, uma cena de choro no divã, a redenção pela revelação. Mas, se eu fizesse isso, como iria ele estender-me os lenços de papel para limpar as lágrimas? Qual é a maneira epistolar de fazer tal coisa? Contudo, não te preocupes: como forma de te agradecer (e espero que compreendas quão vasto é o agradecimento) e por respeito a um psiquiatra que tenta fazer diagnósticos e terapia por carta, responderei às suas cartas como respondo às tuas.

Em anexo segue uma pequena lista de livros e dois ou três nomes de pessoas de quem preciso de saber as moradas; sei que os teus fabulosos dotes detectivescos serão capazes de as descobrir. És o meu Sherlock sem Holmes, o meu Poirot desbigodado, o meu Padre Brown latino.

Muitas das nuances do meu lanche com os Viana ficaram por contar. Suspeito que não os consigo descrever adequadamente. Imagina-o como um aristocrata inglês com uma vida sexual verdadeiramente agradável, naturalmente não com a sua mulher mas com uma freira alemã de visita a Londres. E imagina-a como a Virginia Woolf a tentar desempenhar o papel de uma mãe de família americana numa sitcom. Mas mesmo assim não chega.

Fica para a próxima.

Espero que saibas que não me deito sem pedir a todas as divindades presentes na Enciclopédia Religiosa de Dias Garcia que façam todas as tuas horas leves e mantenham pão estaladiço na tua mesa e champôs com amaciador no teu duche, e que abençoem a tua família com mel, ouro, saúde e a certeza de que vivemos no melhor dos mundos.

Um abraço do fazedor de chá