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Querido amigo, rei dos perdoadores,

Irei de joelhos até ao cume do Kilimanjaro pela aflição que te causei. Peço-te que me perdoes, não só por te ter assustado com aquela maldita carta de autocomiseração, mas também pelas duas semanas de silêncio que se seguiram. Não te censuro por teres pedido ao senhor Joaquim para subir até minha casa e me convencer a ir falar contigo ao telefone. A nossa curta conversa terminou há pouco mais de meia hora e, como te acabei de prometer, vou escrever-te de imediato com todos os detalhes e justificações para o silêncio.

Já não pego em papel e caneta desde essa madrugada confusa. Porquê? Porque não me apeteceu, porque não tive forças, por todos esses singulares motivos que mantêm os deprimidos à margem da vida. Talvez tenha sido isso, talvez tenha querido ficar à margem da vida. Não me bastava mudar-me para os Açores, deixar de ver televisão, abandonar a Internet e o telefone.

Passei a maior parte da minha vida tentando colocar-me no centro do rio, no local onde a corrente é mais forte e onde eu sentia que tudo fluía ao meu redor. Aos poucos fui-me apercebendo de que é inútil. Um fluxo não se agarra. A vida passa por nós onde quer que estejamos e não é o nosso movimento que a torna mais ou menos fluída, mais ou menos segura, mais ou menos rica. Ou, pelo menos, não é o nosso movimento externo.

Sim, bem sei, começo a soar um místico instantâneo, daqueles a quem basta juntar meio copo de água e mexer com uma colher. Mas hoje, nesta carta, alarga ainda mais a tua paciência e recebe com amizade todos estes disparates que, apercebo-me agora, preciso de vomitar.

No princípio era a luz viajando pelo espaço ou na ponta da língua de Deus. E a mente divina imaginou um cosmos onde um dia existissem cidades cheias de contabilistas e restaurantes de fast food e museus de design e lojas de descontos e cinemas e jardins com escorregas e bancos recatados onde casais apaixonados trocassem carícias. E Deus imaginou que nesse mundo existiria vida acima e abaixo da terra, dentro e fora do mar e que essa vida teria as mais variadas formas e seria exuberante em cor, som, textura e propósito. Anjos percorreriam esse mundo disfarçados: encarnariam poetas, agentes de seguros, músicos desempregados, jardineiros, um alemão chamado Bach, crianças disléxicas, empregadas de balcão ou pedreiros. E haveria uma forma de vida diferente de todas as outras, porque consciente, porque capaz de se rir dos filmes do Chaplin, porque capaz de fazer piadas sobre genitais, porque predestinada, milhões de anos antes, a inventar pianos.

E assim se fez segundo a sua vontade. E assim foi que também eu me vi envolvido no meio desta história, com vida acima e abaixo de mim, com mais cores e sons e texturas ao meu redor do que as que poderei em toda uma vida experimentar. Assim foi que, na marcha do tempo, do antes para o depois, fui descobrindo coisas, aprendendo coisas, crescendo, mudando, acumulando e perdendo, cruzando-me não só com a vida mas também com a morte. A vida é o contrário do cinema. No cinema a nossa mente cria a ilusão de movimento a partir de uma série de imagens paradas. A vida é como um filme ininterrupto que nos esforçamos por parar, por fixar numa só imagem, num fotograma que possamos arquivar e pôr numa moldura na mesinha-de-cabeceira da nossa alma.

A vida é movimento ininterrupto, mudança perpétua, e temos de utilizar a ilusão para criar a ideia de que existem coisas estáticas: identidades, corpos, amores, lares, momentos. Achamos que podemos regressar a quem fomos, estar de novo onde estivemos, amar o que amámos. Mas não, nada é exactamente igual, nós não somos nunca nós, mas uma outra versão, mesmo que a diferença seja ligeira.

É apenas uma ilusão, inversa à do cinema, que nos permite sentir que estamos, que somos. Mais correcto seria se disséssemos que passamos e que fomos e seremos.

Em relação ao que tive e já não tenho, não há nada a fazer. Tal como não posso voltar a ser o que fui, por muito que o deseje. Tenho de me inventar de novo. Tenho de descobrir uma forma de estar e uma forma de ser. Já não estou tão preso ao desespero como há duas semanas atrás. Confundi um mamífero de toneladas com a redenção. Mas a redenção não precisa de vir em epifanias acompanhada de uma orquestra melodramática. Quero acreditar que também pode ser construída pouco a pouco, como um muro ou um relatório de contas. Lucros na coluna da esquerda, prejuízos na da direita.

E para te provar o quão determinado estou em combater a tristeza, vou dizê-lo pela primeira vez. Vou escrevê-lo pela primeira vez, e, como sabes que não conseguirei escrever mais nada depois disso, despeço-me já. Um último pedido de perdão, e um abraço terno de agradecimento. Tenho lágrimas nos olhos e tremo como uma criança assustada, mas aqui vai: O meu amor morreu.