IV

Querido amigo,

Para que possas perceber que o meu dia-a-dia não é tão desolado ou enlouquecido como julgas, vou-te fazer o relato desta passada semana.

Segunda-feira

Dei por mim a passear por um pequeno centro comercial perto da marginal. Alguma coisa me consolou na existência daquelas lojas iguais a tantas outras, onde se vai comprar jornais, camisolas e sandes de frango com alface. Talvez tenha sido, mais do que as lojas em si, a ideia de um mundo onde as pessoas ainda sentem vontade de trocar de camisa, ler as notícias ou provar um panini de mozarela. Acabei por fazer o mesmo: comprei roupa, o que só havia feito uma vez desde que aqui cheguei (acho que já mencionei as minhas camisolas largas). Não te tenho falado disso, mas emagreci bastante. A roupa que trouxe para cá já me estava a ficar muito larga. Por vezes sentia que quem me observasse com atenção suspeitaria que eu era um presidiário acabado de se evadir, envergando com desconforto as roupas do primeiro infeliz que encontrara fora dos muros da prisão. Admito que obtive um ligeiro prazer quando vesti, ainda no corredor do centro comercial, uma das camisolas novas. Comecei a sentir que era como as pessoas que andavam por ali, que os meus infortúnios não lhes seriam estranhos, nem os seus triunfos me pareceriam incompreensíveis. Quis prolongar essa sensação. Comprei um jornal e fui para a zona da restauração. Escolhi um menu num restaurante chinês e sentei-me a comer e a ler perto das outras pessoas. Custou-me um pouco ter interesse pelas notícias do jornal. Não tenho facilidade em interessar-me pelos pormenores de uma guerra longínqua, de um caso de corrupção ou das propostas para legislar o sistema financeiro. Rapidamente a minha atenção passou do jornal e do prato de galinha à não sei quê (do qual apenas comi algumas garfadas) para a gente que me rodeava. Notei que havia muitas crianças espalhadas por aquelas mesas, comendo hambúrgueres, sandes ou gelados. O episódio da praia, onde ofereci gelados para que os miúdos me chutassem a bola à cara, despertou a minha vontade de conviver com crianças. Apeteceu-me ir falar com elas. Imaginei-me a abordar os pais e a pedir se podia brincar um pouco com os seus filhos. Seria curioso observar a reacção dos miúdos, bem como a dos pais, o horror com que me olhariam… e, contudo, não fez sempre parte da vida dos adultos o convívio com crianças? Tem de ser uma característica dos adultos o desinteresse pelo mundo interior de todas as crianças que não sejam seus descendentes?

Terça-feira

Após o jogging matinal passei por casa dos Viana. Ao contrário do que sempre tinha acontecido, quando toquei à campainha ninguém respondeu. Como sabia que eles se encontravam em casa – o carro estava estacionado a três metros de mim –, voltei a tocar. Devem ter passado quase uns cinco minutos até que o médico, meio ofegante e muito irritado, me abriu a porta, olhando-me com alguma antipatia. Não só não me convidou para entrar como me perguntou o que eu pretendia num tom distante da cortesia. Surpreendido pela recepção, disse-lhe que gostaria de falar com a mulher dele. Ele informou-me que ela estava doente e que era uma má altura. Apercebi-me de que devia ter interrompido uma discussão. De imediato mostrei a minha preocupação para com a mulher dele e expressei o desejo de melhoras rápidas. Para justificar a minha visita («vim cá para tentar saber mais sobre o vosso filho» não ia servir) disse que viera pedir a receita do bolo de laranja.

– Tenho a certeza de que, quando a Teresa estiver melhor, terá todo o gosto em passar por sua casa com a receita – disse, despachando-me sem cerimónias.

A frustração deste encontro deixou-me um pouco irritado. Há qualquer coisa de muito estranho com este casal, sem dúvida. Regressei a casa e tentei escrever, mas não saiu nada. Continuava a pensar nos Viana e queria discutir o seu comportamento com alguém. Meti-me no jipe e fui a casa do alemão. Bati com o nariz na porta, a segunda visita falhada do dia. A frustração acumulava-se e aumentava a minha necessidade de falar. Dirigi-me à cidade. Estava determinado. Antes do dia acabar, eu haveria de ter uma conversa.

Não foi fácil. As conversas talvez sejam como o amor: só se encontram quando não se está à procura delas. Comecei no supermercado. Abordei com a máxima delicadeza as mães que faziam compras. Fiz piadas sobre iogurtes, pedi ajuda para escolher detergente da loiça, disse várias vezes «não sou daqui» com um ar de cachorro abandonado, pedi receitas e sugestões. Ninguém foi indelicado comigo. Todas as pessoas me responderam de forma cordial, naquele sotaque sinuoso que percorre as palavras portuguesas com os mesmos ziguezagues das estradas desta ilha. Algumas despacharam-me com a cortesia que se pode esperar das pessoas civilizadas enquanto compram manteiga e papel higiénico, outras esticaram essa cortesia, respondendo com paciência às minhas várias, e tolas, questões.

– Bom dia. Desculpe, eu não costumo fazer compras… acha que esta é uma boa marca? – começava eu, segurando uma embalagem de plástico cheia de um líquido cor de limão radioactivo e sorrindo como um turista atrapalhado numa grande cidade.

– Sim, serve muito bem – sorria-me de volta a dona de casa.

– E já agora, desculpe lá, mudei-me há pouco para aqui… e gostava de cozinhar peixe… – e aqui começava a notar logo alguma impaciência na minha interlocutora –, mas não sei qual será o mais fresco...

– Aqui é tudo fresco…

– Ah, óptimo. Mas qual será o mais saboroso?

– Mmmm – e por esta altura as mulheres já mostravam todos os sinais de querer terminar a conversa: – Isso depende do seu gosto… – e o sorriso esbatia-se, as rodas do carrinho iniciavam a sua marcha e, sem subtileza, elas desviavam os olhos de mim para as prateleiras.

– A senhora, o que recomendaria? – insistia eu ainda.

– Talvez o robalo. Bem… tenho compras para fazer… bons cozinhados…

– Obrigado – respondia eu à figura que se afastava de mim naqueles corredores cheios de embalagens e números.

Mais frase banal, menos frase banal, foram estes os diálogos. Tentei falar com os poucos homens que andavam pelo supermercado, mas também não pegou. Recomendaram-me um vinho ou outro e foi isso. A sequência de falhanços aumentava ainda mais a minha necessidade de conversar.

Pus-me a andar pelas ruas. Acho que devo ter parecido um pouco louco. Olhava para as pessoas olhos nos olhos e sorria-lhes. Senti-me pronto a agarrar alguém e a pedir-lhe, suplicar-lhe para conversar um pouco comigo. Abordei várias pessoas com perguntas sobre direcções, recomendações para restaurantes, locais a visitar. Até que alguém me disse «Oh amigo, mas se quer saber essas coisas, o melhor é ir ao posto de turismo». Claro! Óbvio! Quase beijei o senhor apressado que me fez essa sugestão. Iniciei a curta caminhada para o meu destino e, na certeza de que poderia ter uma conversa de mais do que cinco minutos, as ruas pareceram-me mais belas, as pessoas mais felizes e o céu menos cinzento. O posto de turismo era uma sala com algumas cadeiras, dois balcões e muitos posters. Atendeu-me uma rapariga de uns vinte anos.

Hello! – disse-me ela.

– Olá! – sorri-lhe.

– Ah, desculpe – e logo nesta palavra vibrava todo o sotaque açoriano, com o u a enrolar-se como uma onda. O sorriso dela era sincero, acho que até corou um pouco.

A nossa conversa foi longa. Ela abriu um mapa da ilha e começou a fazer sinais e a escrever sugestões. Eu fiz tantas perguntas que foi necessário recorrer a um segundo, e mesmo a um terceiro mapa. Várias vezes fomos interrompidos por idosos de outras partes do mundo. Eu deixava-os falar com a Maria – o nome da rapariga – e aguardava, fingindo que estudava os sinais que ela fizera nos meus mapas. A rotina era sempre a mesma: abria um mapa legendado na língua dos seus interlocutores, fazia meia dúzia de círculos, entregava-lhes folhetos sobre as expedições para ver as baleias ou os passeios às furnas, respondia a uma ou duas questões e desejava-lhes uma boa estadia. Senti, com alegria, que Maria os despachava para voltar a falar comigo. Depois sorria-me e tornava a falar do melhor local para comer cozido, das horas em que era mais interessante visitar as fábricas de chá, de onde se podia comprar boas hortênsias. E entre estes temas eu ia perguntando por ela, se estudava, o que pretendia do futuro, se já visitara Lisboa, onde é que as pessoas da idade dela iam à noite, que praias preferia, de que sítios gostava tanto que nunca os recomendava aos turistas. A conversa durou duas a três horas. No fim agradeci-lhe a paciência que tinha demonstrado para um chato como eu. Maria sorriu, coquete, e disse-me que, se todas as pessoas que lá entrassem fossem como eu, o seu trabalho não seria tão aborrecido.

– Volte sempre que quiser! – foi como se despediu. Na altura, senti uma ligeira picada numa parte de mim adormecida há muito. Interpretei aquele comentário, que pode muito bem ter sido inocente, como uma abertura a outro tipo de conversa, onde as palavras não têm o significado normal ou até são mesmo desnecessárias. Foi uma sensação muito rápida, durou nem um segundo, mas fez-me olhar para Maria e ver não uma miúda muito mais nova do que eu, mas uma mulher que me desafiava. Senti que devia andar resoluto na sua direcção e beijá-la, ou mesmo tomá-la ali, sobre a secretária ou contra a parede. O momento passou, felizmente. Sorri-lhe, desejei-lhe um bom dia e saí.

Andei devagar de volta ao jipe. Sentia-me culpado por ter sido surpreendido pelo desejo. E sentia-me cansado do dia. Voltei para casa. Uma chuva miúda começou a cair. Quando me sentei na sala e espalhei os mapas na mesa, a chuva já era forte e o ar vibrava com o seu som ritmado.

Num dos mapas, em que ela havia assinalado o seu jardim preferido, notei que o marcara com o símbolo de uma cara sorridente. Não percebo bem porquê, mas isso fez-me sentir uma pontada de ternura, a que se seguiu uma melancolia líquida. Peguei numa caneta e desenhei uma cara triste ao lado do sorriso. Olhei para a janela e para a chuva que caía. Uma das coisas boas dos Açores é que o tempo parece acompanhar o meu estado de espírito.

Quarta-feira

Choveu todo o dia. Fui correr, mesmo assim. Li, escrevi, cozinhei, comi. Ao fim da tarde, quando a chuva amainou, desci até ao mar. Estavam lá os dois barcos. Perguntei-me por Hector, onde estaria e o que andaria a fazer. Acho que vi uma alforreca ao longe, mas pode ter sido ilusão de óptica. O que faria uma alforreca aqui nesta esta altura? Também lhe aconteceu alguma coisa e saiu de onde estava para vir escrever cartas para os Açores? Serei eu uma alforreca? Serei venenoso ao toque? Gelatinoso de aparência? Estarei ao sabor das marés?

Quinta-feira

O sol voltou. Deixei-me ficar na cama a observar a forma como a luz ia habitando o meu quarto. Imaginei que a luz era feita de partículas individuais que se pareciam com bonecos brancos irradiando luz do seu peito. Só me levantei quando já tinha o quarto cheio de bonecos luminosos. Almocei no restaurante da praia onde também almoçou um grupo de pescadores especialmente ruidoso e divertido. A seguir, fui até casa de Hector mas ele não estava lá, nem o seu carro. Pode ter tido que regressar à Alemanha. Não percebo porque não me avisou.

Voltei para casa e, pouco tempo depois de ter entrado, apareceu-me o Dr. Viana à porta com um ar cansado e a receita do bolo de laranja nas mãos. Convidei-o para tomar chá. Iniciámos a nossa conversa, que mais pareceu uma batalha. Eu procurei perceber o que se passava com a mulher dele e descobrir tudo o que podia sobre o seu filho. Ele esquivou-se às questões de forma subtil, ziguezagueando por entre as minhas abordagens. Além de querer compensar a antipatia do nosso último encontro, ele vinha, cedo o percebi, falar da Croácia. Trouxe o tema quase por acaso e, se não tivesse sido a insistência durante o jantar, eu não teria achado tão estranho o seu interesse pelo assunto. Dei-lhe o que ele queria. Falei da minha viagem, das praias cheias de pedra e de italianos, dos restaurantes em Dubrovnik com pizzas do tamanho de discos voadores, dos ferrys entre as ilhas, dos sinais de proibição de armas à entrada dos cafés, e de uma série de outras coisas. Falei com o prazer da nostalgia, embora com pequenas picadas de dor, por motivos que podes facilmente compreender. Não sei como ele o faz, que talento tem, se frequentou algum curso de psicoterapia ou ouviu confissões numa qualquer religião, mas a certa altura senti que contava a minha vida ao mais interessado dos biógrafos. Parecia não haver nenhum detalhe na narrativa que fosse demasiado insignificante, nenhuma descrição excessivamente pormenorizada ou aborrecida, nenhum acontecimento a mais. Durante o relato tentei várias vezes mudar de assunto, mas, sem grande alarde, de forma quase gentil, ele manteve-me a falar da minha viagem até que, talvez por já saber tudo o que pretendia, se pôs a falar dos Açores e, desta vez já sem subtileza, a averiguar sobre o meu exílio. E eu respondi-lhe, mas fi-lo da mesma forma que ele falou do filho ou da mulher, proferindo frases que, apesar da sua estrutura correcta, apesar de utilizarem as palavras pretendidas pelo interlocutor, não lhe diziam nada do que ele queria ouvir.

Estávamos envolvidos nesta conversa absurda quando ele me perguntou se me sentia triste. Fui surpreendido pela pergunta, tão pessoal e directa, depois de uma longa conversa onde se falou muito e disse pouco. Sorri um daqueles sorrisos de embaraço. Quis responder mas percebi que havia sido desmascarado, como se ele tivesse reconhecido sem dificuldade um sotaque que eu me esforçara por esconder e que acreditara ser imperceptível. O meu rosto traíra-me. Desviei o olhar, pois ele agora observava-me com um ar quase de piedade, e pus-me a contemplar o mar em silêncio. Ficámos assim algum tempo, se segundos ou minutos, não sei, mas o tempo suficiente para o silêncio deixar de poder ser percebido como uma pausa na conversa e se tornar na conversa em si.

Voltei a olhar para o médico que, como eu havia feito, se pusera a contemplar o Atlântico. Havia nele um cansaço tremendo, aquele tipo de cansaço que impele não ao sono mas ao movimento perpétuo. Imaginei que ele era o único detentor das chaves de todos os quartos de um gigantesco hotel, percorrendo os corredores infinitos de olhos baixos, abrindo e fechando portas, sem saber se era manhã ou noite. Comovi-me e pensei em contar-lhe. Pensei em aproveitar esta melancolia morna em que nos afundáramos os dois e contar-lhe aquilo-que-me-aconteceu. Contar tudo, com o detalhe com que contei a minha viagem à Croácia. Comecei a pensar por onde começaria e bastou isso para que me assolasse uma tristeza violenta. Pigarreei para não chorar. Nunca percebi porque é que isso resulta, mas resultou. Levantei-me de imediato e levei as chávenas para a cozinha. Ele também se levantou e vi de novo no seu rosto o cansaço do funcionário de hotel destinado a trabalhar sem fim abrindo portas para os outros. Agradeceu o chá e estendeu-me a mão. Apertei-a com força procurando expressar nem sei bem o quê, qualquer coisa entre o agradecimento, o sinal de alerta e o pedido de ajuda. Já com a porta aberta, não resisti:

– Sente muito a falta do seu filho?

Ao contrário de mim, ele não se surpreendeu pela pergunta directa e íntima. Olhou-me nos olhos como um professor que quer assegurar-se de que o aluno compreende a sua explicação:

– Mais do que do meu filho, sinto a falta da vida com ele.

Vi-o a andar devagar em direcção à sua casa. Era fim de tarde, todas as nuvens haviam abandonado o céu que agora ganhava cores de fogo e de magma, a brisa que soprava do mar era amena, as flores explodiam no auge da Primavera e as ondas rebentavam numa valsa lenta. Aquele bocado do mundo estava perfeito e eu fechei-lhe a porta, corri as cortinas e deixei-me levar numa enxurrada de choro.

Isto foi ontem. Hoje acordei um pouco mais leve e até fui capaz de apreciar a Primavera durante a minha corrida matutina. Depois passei o dia em casa a escrever-te esta carta. Só parei para fazer o bolo de laranja. Está agora no forno. Espero que fique bom.

Abraço-te

P.S.: O bolo ficou maravilhoso.