VIII

Querido amigo,

Espero que estejas bem e que os anjos velem a tua cama, e que o teu filho não se tenha irritado ou exasperado demais com a carta que lhe enviei.

Por aqui foi a semana dos regressos. Hector está de volta, e com o braço partido. Pouco me falou do seu desaparecimento ou das causas do braço engessado; só me disse que esteve na Alemanha a tratar de uns assuntos e que escorregou a carregar caixotes. Almoçámos no senhor Joaquim numa tarde que parecia já de Verão. A minha pequena praia começa a ter banhantes durante a semana, com as suas toalhas, cestos e parafernália variada. Por um lado, oferecem-me um espectáculo fascinante; por outro, parecem fazer pouco do meu isolamento e tornar o meu desterro num capricho de louco.

O almoço fez-me rir muito, o que já não acontecia há demasiado tempo. O alemão voltou a salgar demasiado a comida, a falar aos berros e a contar histórias incríveis com muitos gestos. O sotaque dele é tão bizarro que parece saído daqueles filmes de Hollywood passados num país exótico, em que os actores americanos tentam falar um inglês estranho, como se a sua primeira língua fosse outra. O efeito cómico foi aumentado pelo braço ligado ao peito, que o forçou a comer só com uma mão. No fim do almoço, Hector lançou-me um desafio. Dada a sua limitação actual, ele precisa de alguém que o ajude a conduzir o barco. Garantiu-me que me explicará tudo e que, na verdade, só há uma ou duas coisas no barco que ele não consegue fazer só com uma mão. Marcámos para amanhã. Estou curioso para perceber que faz ele nestas saídas. Será que vislumbrarei o tal tesouro?

Entretanto, a Teresa Viana bateu-me à porta há dois dias. Trazia um sorriso cansado e uma caixa com scones. Acolhi-a com agrado. Não sei o que se passou naquela casa nas últimas semanas, mas a senhora queria falar. Falar como só as mulheres conseguem fazer. Pouco depois de nos sentarmos para comer os scones e beber um chá que eu preparei de forma exímia, ela iniciou um dilúvio de palavras que não vou tentar reproduzir. Falou sobre ter estado adoentada, que os seus problemas de saúde por vezes atacam sem aviso, que lhe dão enxaquecas tão fortes que ela é incapaz de fazer mais do que se deitar no escuro e contar inspirações. Falou-me da melancolia, de uma tristeza que a assalta sem motivo, apesar da sua vida abençoada, apesar do seu marido dedicado, apesar do seu filho encantador e viajante que lhe escreve as cartas mais bonitas do mundo. Aproveitei para lhe perguntar por ele, e consegui levá-la a falar-me das discussões entre o marido e o filho. Disse-me que, apesar de se amarem, havia vezes em que se desencontravam e discutiam, sendo que certa ocasião, há alguns anos, a discussão foi tão crispada que só a recordação desse conflito lhe dava arrepios. Falou-me de como o marido era um homem generoso, que sabia tudo – foram estas as suas palavras: «ele sabe tudo!» – e que passava os dias a ler e a escrever no seu escritório. A escrever o quê, perguntei. «Ah, não sei, artigos médicos, essas coisas.» Intrigado, questionei há quanto tempo ele não exercia medicina, mas ela não me foi capaz de responder com um número certo. Aliás, notei em todo o seu discurso alguma confusão com datas. Durante aquele monólogo, com direito a breves interrupções para as minhas perguntas, toda ela era irrequietude, os seus olhos piscavam e saltitavam por todo o lado, as mãos nunca paravam quietas, agarravam-se uma à outra, e de imediato se largavam para se segurarem ao vestido ou à cadeira, os pés nunca ficavam completamente assentes no chão, dançando um bailado escondido, esticando-se, fazendo pontas, sapateando. Fiquei um pouco preocupado e tentei perceber até que ponto esta inquietude, juntamente com as enxaquecas e a confusão, não podiam ser sintomas de alguma coisa grave. Não tive sucesso. Apesar da emotividade excessiva e de algumas confusões, ela quando quer é perita em mudar de assunto.

Aproveitei para lhe dizer que tinha gostado muito de ler as cartas do seu filho e perguntei-lhe se não havia a hipótese de ler outras. Nesse momento, ela sorriu de forma quase demencial. «Ahhh! Mas foi isso mesmo que vim cá fazer.» Tirou então da carteira uma carta de várias páginas. Fora enviada de Paris, por altura do Natal, o que só percebi durante a leitura já que, tal como as outras, não tinha data nem vinha num envelope. Pediu-me para a ler de imediato, pois tinha medo de que o marido desse pela falta das cartas e descobrisse que ela mas mostrava. Lembrei-me do seu olhar horrorizado quando, apenas algumas semanas para antes, me preparava para ler uma carta do filho diante dela, e registei uma mudança. Se este nosso segredo fosse um adultério, esta seria a fase em que fazíamos amor na cama do marido.

Sem demoras, li a carta sob o olhar atento dela, o olhar satisfeito de uma mãe que vê o filho fazer uma habilidade em público e que constata a admiração das outras pessoas. Percebi que o objectivo não era apenas dar-me a conhecer o filho, mas ver a minha reacção às palavras dele. Felizmente, não tive dificuldades em felicitá-la pela carta, embora me tenha parecido um pouco fantasiosa. Começo a pensar que o propósito do filho talvez seja tornar-se um escritor de viagens, ou mesmo publicar as cartas que escreve aos pais. Esta pareceu-me demasiado pensada, as peripécias exageradas, os pormenores mais estudados do que observados… mas posso estar a sofrer de falta de imaginação. É possível que todas estas coisas literárias e mirabolantes aconteçam ao filho dos Viana. Se assim é, estamos perante esse caso raríssimo do viajante que encontra a viagem desejada, do homem que obtém o destino que sonhou.

Depois da leitura, ela partiu, não sem antes se esquivar a mais perguntas minhas. Começo a ficar frustrado com estas conversas com os Viana. Pedia-te que investigasses se ele exerceu medicina em Lisboa, e, se sim, onde e até quando. Já te imagino a torcer o nariz ao meu pedido, e a começares mesmo a acreditar que estou louco. Sei que não preciso de o fazer, e que a tua gentileza se imporia sempre sobre as dúvidas, mas vou dar-te uma pequena recompensa. O teu psiquiatra, ou melhor, o psiquiatra que tu recomendaste, respondeu à minha carta, o que, admito, me surpreendeu. O homem talvez não seja assim tão negligenciável enquanto correspondente, como cheguei a pensar. Por cortesia e pela nossa amizade, irei responder-lhe. E tu, meu caro, não queres fazer de Watson deste teu Sherlock desterrado?

Abraços detectivescos