XI
Ex.mo Senhor Dr. Pereira,
Como está? Como lhe corre a vida? Espero que bem. Espero que muito bem. Não tome a minha ironia por animosidade. Não tome, aliás, a minha ironia por ironia. Sou mais verdadeiro quanto mais exageradas e impossíveis soam as coisas que digo. Quero agradecer-lhe a sua carta. Mostrou-me ser um homem cortês e desenvolto, um homem que numa visita a um circo, por pedido do anfitrião, seria capaz de sair dos seus sapatos e colocar umas andas. Gostei de ver que apreciou a minha carta, gostei das suas referências ao Buster Keaton e gostei, acima de tudo, da sua persistência em contribuir para a paz de alma do nosso amigo comum. Como eu, o senhor sem dúvida vê nele o zénite da bondade e da gentileza. Agora, caríssimo doutor, terei de recusar a sua proposta para que eu visite um colega seu, mesmo que este seja «uma alma literária, apreciador de Bach, Cervantes e T. S. Eliot». Sejamos sinceros, o que se pretende, com essa minha visita, não é que eu discuta esses ou outros nomes, que se fale de sinfonias, ou se recite poemas, mas que se avalie o risco de eu cometer alguma loucura, ou melhor, de cometer um tipo particular de loucura, um tipo definitivo de loucura. Suponho, também, que pode estar escondida uma vontade de me medicar, de tentar controlar, opor, conter essa loucura com comprimidos misteriosos que irão mudar as inclinações químicas do meu cérebro. Nada tenho contra essas pílulas, aventuras cerebrais ou variantes, sendo que nem me oporia, se a situação o justificasse, a electrochoques, vendo mesmo algo de poético na passagem de uma corrente eléctrica adicional pelo interior do meu crânio. Porém, a situação não justifica tais intervenções. Vou tentar explicar-lhe.
Outro dia estive num centro comercial. Veja lá, numa ilha cheia de lugares paradisíacos e eu, num dos poucos passeios que dei, fui a um centro comercial. A certa altura passei junto às salas de cinema. Não duvido de que, quando o senhor falou com o nosso amigo comum sobre mim, a importância do cinema na minha vida, não só pela questão profissional, mas por todos os outros motivos, tenha sido abordada. Desde pequeno que vi numa sala de cinema, mesmo nas salas mais minúsculas, o lugar mais amplo do mundo. Nenhuma praça, nenhum porto, nenhum cume de montanha me ofereceu tantas visões do paraíso como um ecrã de cinema. Mais do que beleza ou transcendência, o que eu procurei no cinema foi a multiplicação da vida. A ficção, nas suas melhores encarnações, permite a resolução de uma das questões mais difíceis da nossa existência. Permite-nos superar os constrangimentos da nossa narrativa e viver outras vidas. Os teóricos falam da «suspensão da descrença», da ideia de que, para se poder apreciar certas obras de ficção, temos de nos permitir acreditar no mundo ficcional. Simplificando, suspensão da descrença é ser capaz de ver o super-homem voar sem pensar «como é que ele voa?», é acreditar que um vagabundo de bigode e chapéu de coco é mesmo capaz de causar o caos sem sofrer penalizações mais graves do que uns pontapés no rabo, é ver surgir um vampiro e não questionarmos a sua dificuldade em arranjar um dentista, e é acreditar que o amor é mesmo o destino, e que supera todos os obstáculos, especialmente os cómicos. Ora, quando eu me sentava na sala escura, o que eu queria, o que eu às vezes conseguia, era bem mais do que a suspensão da descrença. Era a suspensão do eu. Nos filmes abençoados, as angústias e sonhos dos heróis substituíam os meus, eu deixava de ser eu e tornava-me um com as almas encarnadas naqueles rostos enormes, brilhando por detrás dos olhos em close-up, e sofria com eles, e chorava por eles e extasiava-me com os seus triunfos e vivia, no espaço de duas horas, uma outra vida.
Já alguém deve ter feito esta comparação, tão óbvia e clara. Sair de um filme é um pouco como nascer. Do escuro, de um mundo uterino que nos parece só nosso, sai-se para um caos de luz e gente, onde o sentimento de espaço e de tempo é diferente. Se no cinema, como no útero, tudo nos é dado, e só temos de nos deixar levar pela história, fora dele, o espectador torna-se narrador e personagem. A passividade já não chega; é preciso iniciativa, é preciso procurar, é preciso decidir e arriscar. Eu sentia este contraste de forma ainda mais intensa quando saía do cinema a meio da tarde, como fiz muitas vezes, e daquele espaço escuro onde só a tela é iluminada, saía para as ruas encharcadas de sol. Não era raro, então, que durante alguns minutos eu visse as coisas ao contrário, suspeitando da ficção do mundo real e ansiando pela realidade do cinema, pelo regresso ao mundo do filme.
Ora, na última vez que fui ao cinema este regresso ao mundo real foi ainda mais brutal, mil vezes mais brutal, milhões de vezes mais brutal. Espectador responsável que era, desligava sempre o telemóvel assim que entrava na sessão. À saída, naqueles primeiros passos num mundo sem director de fotografia, cenógrafos ou realizadores, um dos meus gestos quotidianos era ligar o telemóvel, gesto simbólico que me ligava de novo ao meu eu real, ao meu eu que fora abandonado durante o filme. Como o mundo não se suspende durante os filmes, enquanto eu vivia outras vidas, contidas numa tela, a vida mais ampla continuava a desenrolar-se lá fora. O tic seguia-se ao tac que era seguido por um outro tic, o dominó da existência derrubava as suas peças, acontecia a sucessão ininterrupta das coisas, gestos que causam gestos que causam outros gestos.
Cá fora, na luz inclemente das quatro e meia da tarde, chegou então, com aqueles ruídos electrónicos, tão ofensiva na sua banalidade, uma mensagem. Esta mensagem era a queda da primeira peça de dominó que faria com que tantas outras caíssem. Era o princípio de uma vida nova. De uma vida à qual seria arrancada a principal razão de viver. De uma vida tão diferente da vida anterior àquela sessão que não pode ser a mesma. Era como se, enquanto eu estava a ver aquele filme, um deus infinitamente cruel tivesse substituído o universo. Antes de entrar naquela sala escura, eu vivia no melhor dos mundos, num universo onde as coisas faziam sentido, a beleza servia um propósito e a felicidade era possível. O universo que encontrei à saída, anunciado pelo som de pechisbeque da mensagem de telemóvel, era um universo que, apesar de parecer semelhante ao outro, apesar de conter também árvores e nuvens e pessoas, havia sido esvaziado da hipótese de felicidade.
Desde então não voltei a entrar numa sala de cinema.
E contudo, quando outro dia passei junto às bilheteiras, o cartaz de um filme chamou-me a atenção. Nele via-se uma fotografia de um funâmbulo num cabo que ligava dois prédios. Na parte de baixo do cartaz estavam algumas frases de críticos elogiando o filme. Através delas percebi que os prédios eram as torres gémeas. E foi então que me ocorreu, foi quase imperceptível, uma microemoção (se existe tal coisa… diga-me o doutor, que é o especialista), um germe de pensamento, um sussurro quase inaudível pronunciado no meu interior: «Tenho de ir ver isto!» Como antigamente, como todas as vezes em que um cartaz ou uma apresentação me provocava uma onda de entusiasmo e me fazia pensar «tenho de ir ver isto». E repare no «tenho». Na necessidade da coisa.
Claro que, de imediato, me lembrei de que já não era essa pessoa que «tinha» de ir ver filmes, e me lembrei do porquê e me afastei com pés pesados de tristeza da zona dos cinemas e do seu cheiro a pipocas.
Por isso, como vê, não há motivos para se preocupar. Eu vejo nesse sussurro do meu antigo eu um sinal de que vai tudo correr bem. Embora bem no sentido reconfigurado da palavra, o bem depois de aquilo-que-aconteceu, se me faço entender. Provavelmente, não. Desculpe.
Devo confessar-lhe que tenho ainda dias maus. Que, embora não sofra de alucinações, me perco em mundos imaginários. Construo cosmos inteiros na minha mente e depois custa-me regressar ao aqui e agora, ao espaço em redor do meu corpo, ao tempo ancorado naquilo que o relógio da cozinha afirmar. E confesso-lhe também que, nas cartas que escrevo ao nosso amigo comum, omito certos pormenores e exagero outros, contando-lhe uma vida um pouco diferente da que vivo aqui, massajando alguns factos para tornar a história mais próxima do que sinto.
Termino pedindo-lhe que, caso o nosso amigo comum o contacte preocupado comigo, o tranquilize, e lhe garanta, como eu também tenho tentado fazer, que, apesar de eu viver num mundo incomparavelmente mais pobre do que o mundo de antes de aquilo-que-aconteceu, não tenho nenhum intenção de o abandonar.
Com cumprimentos de elevado calibre